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PERNAMBUCO INDÍGENA E AS RETOMADAS

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No Nordeste e em Pernambuco, os novos cenários construídos nas décadas de 1970 e 1980 desencadearam um processo de autoafirmação étnica dos povos indígenas, tratados como “ressurgência”, “visibilidade”, “emergência”, “etnogênese”, quando diversos pesquisadores – João Pacheco de Oliveira, José Augusto Sampaio, Vânia Fialho – discutiam esses conceitos, buscando explicar como diversas etnias reaparecem, muitas delas tidas como extintas, resistiram em uma região com então quase 500 anos de contato com a colonização europeia, onde estão e como estão. Suas identidades, e expressões socioculturais que os tornam o que são perante o Estado-nação e a chamada sociedade nacional, que insistia na ideia de aculturação e na “[...] integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional...” (BRASIL, Lei 6001, Estatuto do Índio, 1973).

Os povos indígenas, por sua vez, ao debaterem este fenômeno afirmam a resistência sociocultural, étnica e sociopolítica, o que vários pesquisadores relatam

30 Sobre a visão indígena da educação, ver: Baniwa, Gersem. O índio brasileiro: o que você precisa saber

sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, MEC/Secad; Museu Nacional/UFRJ, 2006. Gersem pertence a etnia Baniwa, de São Gabriel da Cachoeira (AM). Graduado em Filosofia, tem Mestrado e Doutorado pela UNB. Foi secretário municipal de educação de São Gabriel da Cachoeira, co-fundador da COIAB e da FOIRN. Foi membro do Conselho Nacional de Educação e atualmente é professor do curso de Licenciatura Específica Formação de Professores Indígenas da UFAM.

31 O termo “retomadas” é comum aos povos indígenas do Nordeste, podendo ser traduzido como o ato

coletivo de uma determinada etnia de “tomar” de volta um território tradicional usurpado de seus ancestrais pelas oligarquias locais.

como uma nova epistemologia na qual deixam evidente que sempre estiveram presentes, resistindo por meio de diversas estratégias construídas em situações de fugas, enfrentamentos, aldeamentos e não reconhecimento. Ao pesquisar os Xucuru do Ororubá, Fialho (1996) formula uma configuração que pode ser percebida do mesmo modo em outras etnias em Pernambuco:

O fenômeno da etnicidade tal como percebido no universo Xukuru, abstraído do comportamento observado dos atores, reafirma o seu caráter político, assim como ressaltou VINCENT (1974) quando trata da estrutura da etnicidade. As identificações étnicas são ampliadas quando uma grande mobilização étnica é requerida, como por exemplo, para garantir o território Xukuru; da mesma forma também são restringidas quando a situação assim o requer (FIALHO, 1996, p. 83).

Tempos depois, em 2003, no I Encontro dos Povos em Luta pelo Reconhecimento Territorial, promovido pelo CIMI em Olinda-PE, os povos indígenas da Região na Nordeste afirmaram: “Não somos ressurgidos, nem emergentes, somos povos resistentes”.

Os povos indígenas em Pernambuco passaram então a promover, com apoio dos novos aliados, CIMI, CCLF, universidades e pesquisadores, diversos encontros, reuniões, assembleias e articulações, nos quais debatem sobre os novos cenários e criaram gradativamente agendas e estratégias reivindicativas e propositivas comuns. Com isso, suas mobilizações deixaram de ser apenas localizadas e circunscritas a povos, passando a ter um caráter regionalizado e estadualizado em função de diálogos e dos apoios de pesquisadores, universidades e organizações indigenistas citadas, bem como de intercâmbios históricos interpovos tendo, nas práticas rituais comuns, principalmente o Toré32, uma convergência étnica que é marcante para esta categoria, “índios no nordeste”.

As mobilizações por reconhecimento em Pernambuco, que implicando primordialmente a demarcação de seus territórios, ganhou grandes proporções e acirrou os ânimos de latifundiários e fazendeiros invasores. Os povos indígenas cansados da inoperância da agência indigenista oficial tomaram iniciativas de autodemarcação de

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O Toré é uma tradição indígena comum aos povos indígenas no Nordeste, sendo praticado de diversas formas pelas diferentes etnias desta Região. Como dança ritual, é um elemento de afirmação étnica e identitária, tendo também um forte sentido político, na medida em que articula novos sujeitos políticos nas arenas de disputas políticas com o Estado e setores políticos oligárquicos na Região.

seus territórios e posteriormente de sua desintrusão33. As “retomadas”, permitiram reocuparem faixas de terras invadidas e incorporadas aos latifúndios locais, ao custo de várias mortes e aumento das violências e discriminação contra esses povos. Desafiando oligarquias locais, enfrentando pistoleiros e “capangas”, bloqueando estradas e caminhos em condições precárias, os povos indígenas em Pernambuco estavam determinados a reocupar os territórios onde seus antepassados fincaram resistência, quando não havia mais para onde fugir.

Como resultado de intensas mobilizações e articulações, as representações indígenas se consolidaram e ampliaram, com o apoio de indigenistas, suas pautas e áreas de atuação. Em 1985, foi realizada na aldeia do povo Xokó, em Sergipe, o primeiro encontro que reuniu diversos povos, habitantes na Região Nordeste. Esse encontro ocorreu como início a uma aproximação e colaboração entre os povos na Região e nos estados, onde foi determinante a percepção de desafios comuns que estavam colocados nas diversas situações de enfrentamento: as mobilizações pelos territórios, a pobreza que comprometia a subsistência das famílias nos diversos grupos étnicos, as violências de grupos políticos que eram ao mesmo tempo fazendeiros/latifundiários, bem como os serviços básicos como saúde e educação e por fim, a inoperância da agência indigenista governamental, Funai (BARBALHO, 2007).

Nesse contexto, em 1990, foi construída a Comissão de Articulação Indígena Leste/Nordeste, que proporcionou a continuidade das formas e arranjos criados pelos povos indígenas na Região Nordeste, com exceção do Piauí e Maranhão, e de Minas Gerais e Espírito Santo, para consolidarem suas articulações e laços colaborativos e políticos. Em 1995, na IV Assembleia Geral, em Belo Horizonte, foi criada a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), que com a participação do Piauí, atualmente mobiliza 64 povos indígenas (OLIVEIRA, 2010).

Verificou-se, ao longo deste processo, que a institucionalização de organizações indígenas não seguiu uma lógica de hierarquização e representação, mas sim de “articulação”, preservando dessa forma os percursos históricos e políticos específicos dos povos, ao mesmo tempo em que se representam coletivamente como etnias “articuladas” em função de objetivos comuns frente ao Estado-nação e a sociedade

33 Este termo foi usado por diversos povos, para explicar a necessidade de outras ações, após as

retomadas, que implicavam a indenização de latifundiários e fazendeiros, para legitimar a posse formal de faixas de seus territórios reconquistados.

nacional, apropriando-se dos meios legais para obter os direitos que o arcabouço jurídico do Estado lhes confere, exigindo que sejam reconhecidas “[... todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.”, conforme recomenda Artigo 1o, 1.b) da Convenção 169 da OIT, em 1989.

A recuperação territorial, realizada ao longo dos anos 1980 e 1990, mesmo que não totalmente concretizada, reacendeu nos povos indígenas a esperança existente durante séculos fazendo com que outras demandas fossem percebidas. Os territórios retomados passaram a ter uma nova significação, em que amparados por preceitos constitucionais e legais, a construção de futuro ganhou novas possibilidades, e com isso as experiências educacionais escolares tomaram novos sentidos, como de afirmação étnica, efetivação de direitos e autonomia.

Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Marés (1998) afirma:

O direito brasileiro constituído passou a reconhecer o direito dos indígenas de continuarem a ser índios sem a necessidade de integração na sociedade nacional e lhes reconhece titularidade de direitos coletivos (MARÉS, 1998, p.2).

Dialogando com Foucault (1996), observei que os discursos proferidos no campo normativo, desde a Colônia até a primeira metade dos anos 1980, trazem nos seus enunciados a gramática dominante do poder e do saber, pondo em funcionamento o domínio de uma sociedade fundada no eurocentrismo sobre sociedades étnicas nativas. Por meio das práticas que os discursos dominantes enunciam, moldaram comportamentos, individuais e coletivos dos povos indígenas, seja através da “salvação” e da “civilização”, como também pela “comunhão do índio à sociedade nacional”. Esses enunciados se atualizam dentro de um tempo histórico e espaço que se pretende democrático, mantendo sua “matriz discursiva”: “Todo sistema de educação é

uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 1970, p. 44).

Os discursos sobre a educação para os povos indígenas enunciados nos períodos da Colônia, Império e República não ocultaram o binômio poder-saber nele explícito, evidenciando o lugar e a função que estes povos teriam no futuro da empreitada colonial, ao mesmo tempo em que se buscava dar sentidos de benevolência e cuidado com os povos indígenas, civilizando-os como camponeses pobres, revelando com isso

que, em qualquer das situações, índios aculturados ou camponeses sem terra, seriam reserva de mão de obra.

Com a nova Constituição, na qual a participação dos povos indígenas e indigenistas enuncia outros sentidos e significados ao legislar sobre os direitos indígenas, ocorrem alguns rompimentos: “[...] tabu do objeto, o ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”(FOCAULT, 1970, p. 9). Dessa forma, a “interdição” foi rompida com a participação desses povos, com um contradiscurso, proclamado por esses novos sujeitos que falam e, com isso, produzem novos enunciados, dentro de um espaço e tempo circunstanciado, conquistado.

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