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CAPÍTULO VI A INTERMIDIALIDADE ENTRE O ROTEIRO LITERÁRIO E AS TELAS DO

6.1 CABRA-CEGA O ROTEIRO DE DI MORETTI

6.1.1 A ekphrasis e o espaço/tempo em Cabra-cega

O primeiro tratamento, cena 01, inicia com Rosa arrumando o aparelho em que Thiago ficaria instalado, paralela à cena, uma mulher em off conta uma história infantil. Rosa fecha as cortinas, fecha a porta do quarto, tranca a porta de saída. Inicia a cena 02 com a música de Ronnie Von “Tranquei a vida”. Esses elementos já indicam o espaço- tempo em que ocorrerá a narrativa: o apartamento, ou aparelho, como é chamado pelos militantes da luta armada na qual Thiago teria de ficar trancado, encerrado, isolado do mundo

Já no roteiro técnico – versão final, a história começa com uma perseguição da polícia aos revolucionários pelas ruas de São Paulo no início dos anos 70. Seriam cenas

de ação que exigem grande preparação, como apontamos anteriormente. De acordo com o diretor Toni Venturi, esse tipo de sequência é raridade no audiovisual brasileiro. A demanda técnica implicada expõe um variado leque de carências que as nossas produções sempre enfrentaram – da falta de equipamentos a pessoal especializado, tudo agravado pela intrínseca ausência de tradição e experiência no ramo. Na película que chegou às salas de cinema, só restaram cenas de ação nos flashbacks, construídos principalmente na pós-produção. Logo no início do roteiro, na versão 03, permanecendo até o roteiro técnico, Di Moretti criou a seguinte cena:

CENA 06 – INTERIOR - MANHÃ – SALA DO APTO. DA R. PRESIDENTE PRUDENTE Dia: ATEMPORAL - Hora: 08:00hs – Luz Mágica

DETALHE de um pardal pousado no lustre da sala do apartamento.

O pássaro voa por entre os objetos e os móveis da sala. O alçar de voo da ave permite a entrada dos CRÉDITOS PRINCIPAIS.

A pequena ave se vê acuada e com ânsia de liberdade começa a se jogar contra os vidros da janela tentando sair deste seu cárcere involuntário. Entra TÍTULO:

CABRA-CEGA (MORETTI, 2005, p. 52).

Essa cena foi criada pelo roteirista para servir como um contraponto simbólico à história de Thiago, um homem que vai viver confinado. Tinha a função de prenúncio poético e seria a imagem que ficaria ao fundo dos créditos. A cena foi filmada, mas foi eliminada na montagem.

Segundo Venturi, um dos motivos para a subtração foi que, ao ver o filme montado, o sentimento simbolizado pelo pardal tentando voar para fora do apartamento estava presente em todo o filme. A alegoria do cárcere ficaria excessiva. Afinal, é latente no início da narrativa a agonia do protagonista em manter-se preso, longe da luta por seus ideais, distante de seus companheiros. Eis que se apresenta o cárcere privado de Thiago.

Figura 53. 1ª rachadura indicadora do tempo em Cabra-cega

E em relação ao tempo, em um cárcere fechado, o que mais demora a passar é o tempo. É criada a partir da versão 02 uma rachadura no teto do quarto em que Thiago dorme para alegorizar sua passagem. Essa rachadura, bem como a sua respectiva evolução, permanece até a realização fílmica. Segundo o diretor, o destaque é dado porque esse elemento será usado, no decorrer da história, como medida de tempo atrelada ao desenvolvimento dramático do protagonista confinado e à lógica interna do filme. Trata- se de uma metáfora imagética responsável por sugerir o recrudescimento do ambiente em torno do personagem.

Todas as cenas do roteiro foram datadas com dia e horário de acordo com uma cronologia interna, estabelecida pelo “núcleo duro”. Este artifício tem por objetivo dar subsídio de passagem de tempo, dentro da história, aos atores, direção de Arte, continuidade, figurino e outras partes do time de profissionais. A marcação, portanto, foi feita para orientação da equipe, e não aparece no filme. A ausência de informação temporal ao expectador é um recurso usado pela direção para dar maior amplitude à trama e dramaticidade ao confinamento do personagem principal. (MORETTI, 2005, pp. 33-34).

Juntamente com o aparecimento dessa primeira rachadura, Thiago apaga e acende o abajur e, ao mesmo tempo, ouve-se o tedioso “tic-tac” do relógio, ruído que prossegue presente, insistente no decorrer da narrativa. O tempo na narrativa começou de modo linear, mas, na cena 12, justamente após o aparecimento da primeira rachadura no teto do quarto, ocorre o primeiro flashback. Para Deleuze (2007, p. 64):

A questão do flashback é esta: ele deve haurir sua própria necessidade de outra parte, exatamente como as imagens-lembrança devem receber de outra parte a marca interna do passado. É preciso que não seja possível contar a história no presente. É preciso, portanto, que alguma outra coisa justifique ou imponha o flashback, e marque ou autentique a imagem- lembrança.

E, nesse ponto, apresenta-se como necessária a inserção desse recurso na narrativa. No roteiro, Moretti dispõe em palavras os momentos da fuga de Dora e Thiago, enquanto, na tela, atesta-se o imperativo da utilização de outros aparatos para transpor tanto a intensidade quanto a emoção das cenas com câmeras e efeitos de cor e som para salientar a adrenalina do momento. Até esse momento, o espectador não sabia como Thiago havia ido parar ferido no atual aparelho. Como Deleuze afirma acima, não é possível contar a história no presente sem esse retorno ao passado.

Outro atributo trazido por Deleuze sobre o flashback emprestado de Borges, em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, é a bifurcação. No flashback não é o espaço, mas o tempo que se bifurca, segundo Deleuze. Porém, na verdade, há uma bifurcação espaço- temporal, afinal Thiago está na cama deitado, ouvindo o tic-tac do relógio, ligando e desligando o abajur, quando, de repente, abre-se uma bifurcação no tempo e Thiago se flagra em suas imagens-lembrança de luta com o poder repressivo e punitivo da ditadura que ressurgem com o barulho dos seus passos misturados aos passos de Dora e com os tiros a ecoar na mente como um trauma do passado.

De volta ao aparelho no presente, a angústia daquele espaço confinado vai-se revelando no decorrer da narrativa. Thiago marca, com passadas, cada cômodo. Cada janela possui cortinas pesadas. Seja no roteiro, seja no filme, roteirista e diretor se empenham em demonstrar o deslocamento daquele militante acostumado nas ruas, na luta, no seu desarranjo e inadequação dele com aquele espaço confinado. O personagem é orientado a, de maneira alguma, entrar em contato com o mundo exterior. Passa o tempo. Novamente, aparece a rachadura – mais longa e ramificada:

CENA 31 – INTERIOR – TARDE – QUARTO DE THIAGO

Dia 7 – Hora: 16:00hs (Thiago não fuma) Thiago está deitado em sua cama. O quarto iluminado apenas pela luz do abajur.

Olhos bem abertos, ele começa a ouvir outros SONS que vão se mesclando aos do relógio, RUÍDOS do mundo externo como cachorros, gatos e pássaros cantando.

Ele coloca as mãos sobre os ouvidos e olha fixamente para o teto. (MORETTI, 2005, pp. 110-111).

Nessa cena, devido à angústia de Thiago, a direção percebeu, na montagem, que seria bastante apropriado inserir o último flashback do filme. A lembrança foi antecipada para essa cena.

A mudança teve ainda outra função. Neste ponto, aos 30 minutos de filme, se encerra o primeiro ciclo de Thiago, em que ele está em conflito interno, retraído. A partir de então, o militante passará por um crescimento, se expondo ao mundo e às pessoas, como à Dona Nenê e à Rosa. Fecha-se a apresentação do contexto dramático, histórico e dos personagens do filme. (MORETTI, 2005, p. 111).

Figura 54. Fotograma da 2ª rachadura que aparece em Cabra-cega

Figura 55. Fotograma do filme Cabra-cega: “(...) em passadas largas, mede o quarto longitudinalmente...”

Figura 56. Fotograma de Cabra-cega: o tempo e o mundo

Há, na obra, uma grande preocupação em mesclar e revestir de ênfase a questão do espaço e do tempo. No fotograma 03, a câmera nos mostra uma panorâmica do quarto de Thiago. O recinto se encontra bagunçado, pequeno, escuro, assim como Thiago se apresenta naquele claustro. A medição do espaço com as passadas mostra a pequenez asfixiante, angustiante em que se encontra. No fotograma 04, há três elementos que chamam a atenção: o relógio que não para de fazer ruído, o espelho e o globo terrestre. O relógio, tal qual a rachadura do teto, representa o tempo que se arrasta, mas que, aos poucos, progressivamente, vai passando.

O espelho constitui uma janela aberta para um mundo estranho, para um personagem alheio ao próprio personagem. Assim, acompanha o aparecimento do seu duplo todo distorcido. Não era mais aquele guerrilheiro sonhador que queria salvar o país; tornara-se um espectro de ativista, fugitivo, sem bandeira e fechado. Esse é o ponto culminante na caracterização de Thiago, obrigado a se manter circunscrito àquele aparelho. Poderíamos ler a cena conforme as colocações de Araújo (2010, p. 1), quando afirma que “[...] hoje o espelho reflete e fragmenta, projeta nem sempre o legível, destrói a dialética sujeito/objeto, despe as máscaras que se interpunham entre o espelho e a coisa representada”. E, por fim, o globo, o mundo, a liberdade, a luta, o externo, o fora daquele ambiente pesado, fechado. O fora de si e de todos os sentimentos que o incomodavam. O fora que naquele instante é representado pela campainha tocada por dona Nêne (Bri Fiocca), uma das ameaças à clausura necessária ao guerrilheiro.

Dessa forma, a clausura começa a ser desmontada a partir do momento que Thiago começa a se abrir para Rosa e dona Nenê. São as ações do personagem influenciando o ambiente. Há a revelação no jantar para Dona Nêne. Porém, a verdadeira sensação de liberdade vem quando Rosa o leva até a cobertura do prédio. Nesse momento, ocorre o clímax do filme. Thiago sai da escuridão, migra da clausura para a claridade, a liberdade e a música. A canção “Eu quero é botar meu bloco na rua” ,de Sérgio Sampaio, fornece ao filme e ao próprio espectador uma emoção indescritível. Segundo Moretti, essa sensação acometeu e envolveu a própria equipe de filmagens, pois permaneceram dias apenas na clausura do aparelho. No roteiro, havia muitos diálogos na cena do terraço, que foram suprimidos em prol desse sentimento de liberdade. A um ponto na narrativa cinematográfica, esse sentimento se expressa muito melhor nas entrelinhas, gestos e ações do que nas palavras.

Thiago se livrava, definitivamente, de sua armadura emocional e deixava respirar a energia vital do homem libertado. A sinergia adquirida pelo time que participou desta filmagem permitiu um momento de grande intensidade dramática e liberdade artística. Devaneios libertários de Glauber Rocha pareciam impregnar a atmosfera do terraço. A música escolhida, Eu quero é

botar o meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio, foi uma sugestão do

consultor informal do filme Carlos Eugênio Paz – ex-comandante da ALN, ouvido no documentário No Olho do Furacão. Ele contou ao diretor que vibrava com este hit da época em seu fusca quando seguia em missão da organização, naqueles tempos. Esta é uma canção que se conecta aos sentimentos da juventude rebelde dos anos de chumbo. (MORETTI, 2005, pp. 224-225).

Figura 58. Fotograma de Cabra-cega: Thiago é conduzido com os olhos vendados ao terraço por Rosa

Figura 59. Fotograma de Cabra-cega: Thiago e o prazer pelo sentimento de liberdade

Thiago larga seu corpo na cama. De repente, uma nuvem de poeira de cal começa a cair sobre sua cabeça.

Ele está com a cabeça enterrada no travesseiro, olhos bem abertos e fixos no teto.

63ª – P.V. THIAGO: A rachadura (3ª) do teto parece ter aumentado muitas vezes. (MORETTI, p. 199).

Nessa cena, a rachadura já aumentou bastante. No roteiro, a indicação para a equipe fílmica é a de que se trata do 16º dia. Há, portanto, uma aceleração na deterioração do forro. Isso indica ao espectador um tempo cronológico muito maior do que o apresentado à equipe. Aqui poderíamos juntar esse aspecto do tempo com o que Deleuze (2007) teoriza a respeito da imagem-cristal, por ser bifacial, atual e virtual, em um tempo

Figura 60. Fotograma da 3ª rachadura no teto do quarto de Thiago

Figura 61. Fotograma da poeira de gesso da rachadura no rosto de Thiago

simultaneamente atual e virtual. Há apenas uma imagem real: uma grande rachadura que representa o virtual, a morosidade do tempo, a sua passagem da primeira à terceira rachadura e o cal caindo sobre o rosto de Thiago, como se estivesse sendo subjugado, submetido, sem direito a escolhas, à espera passiva pelo transcurso arbitrário dos dias e noites.

Tais elementos, caracterizadores e constitutivos do personagem naquele ambiente, sustêm Thiago e abrangem todo o espaço. Ao eleger o aparelho e o respectivo confinamento como peça principal da trama, o sentimento de clausura e de morosidade não são vistos e sentidos apenas por Thiago, mas há um transbordamento estético no qual a ambientação é mais do que vista, produzida, (re)produzida e repetida, entre instantes, diante de silêncios e ruídos, entre sua sensação e decifração formal.