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CAPÍTULO V – A CRIAÇÃO LITERÁRIA EM O PAI DA RITA

5.2 DA CANÇÃO AO FILME – DE A RITA A O PAI DA RITA

5.2.1 A ambientação musical em O pai da Rita

Di Moretti apresenta O pai da Rita como uma comédia dramática que aposta no lirismo e no bom-humor para contar uma história de busca de paternidade e reconciliação em um universo muito especial: o meio do samba paulistano. Tal apresentação se deve à presença dos dois subgêneros: comédia e drama. A história é um drama da vida dos nossos três personagens, composta de forma cômica: Pudim e Roque, ex-compositores da escola de samba Vai-Vai, descobrem, aos 60 anos, que um deles pode ser o pai de Rita, uma jovem enfermeira que chega desavisadamente no Bexiga. Rita logo se torna, ao mesmo tempo, uma nova motivação na vida deles e uma grande disputa pela paternidade, que abala a relação de amizade de mais de 50 anos entre eles. Essa desunião se reverte quando descobrem que existe um possível terceiro pai de Rita, o cantor e compositor Chico Buarque, autor de “A Rita”, música composta e gravada em 1965 e que configura tema motivador do roteiro:

A Rita (Chico Buarque - 1965) A Rita levou meu sorriso No sorriso dela

Meu assunto

Levou junto com ela E o que me é de direito Arrancou-me do peito E tem mais

Que papel! Uma imagem de São Francisco E um bom disco de Noel

A Rita matou nosso amor De vingança

Nem herança deixou Não levou um tostão Porque não tinha não

Mas causou perdas e danos Levou os meus planos Meus pobres enganos Os meus vinte anos O meu coração E além de tudo Me deixou mudo Um violão

Algumas pesquisas24 que analisam a música “A Rita” estabelecem comparações entre a canção e a ditadura militar, levando-se em conta a data da música. Em uma leitura alegórica, Rita, a ditadura, tira tudo do jovem músico sonhador de 20 anos. Porém, em nossa análise, tomaremos a dimensão literal, já que foi esse sentido que Di Moretti usou em sua transcriação para o roteiro cinematográfico.

Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, Cilene Margarete Pereira, em seu artigo publicado na revista eletrônica Recorte, no segundo semestre de 2017, também faz uma análise literal da canção. A pesquisadora faz um paralelo a partir da capa de lançamento do disco em que A Rita foi lançada:

Esta capa retrata um Chico Buarque duplo, ora sorridente, ora sério. Seria um prefácio do que estaria por dentro? Um retrato do duplo existente em suas composições, talvez. Quem é Rita? Uma mulher apaixonante, que deixara o eu lírico mudo e ao mesmo tempo, o seu duplo, mulher dura, vingativa? Mulher que abandonara o eu lírico, levando tudo...

24 Entre as pesquisas, citamos a de Graziela Mota (2014), na qual faz uma análise semiolinguística do discurso na

canção; Janaína Rufino (2006), apesar de nomear sua dissertação sobre “as mulheres de Chico Buarque”, aborda Rita como a ditadura militar; e Manuel Bastos (2014), que baseia a sua tese nos traumas sociais brasileiros a partir da música “A Rita” de Chico Buarque.

25 Disponível em: https://www.allmusic.com/album/chico-buarque-de-hollanda-vol-1-mw0000424409. Acesso em: 07

de ago. de 2018.

25

Essa é a versão machista do eu lírico tal como veremos no roteiro, no papel de Pudim. O personagem-sambista acusa Rita de abandoná-lo, mas no decorrer do enredo, o leitor percebe que, na verdade, Rita larga o malandro por causa da sua vida desregrada. Porém, esse malandro também possuía o seu duplo. Apesar de todas as aventuras amorosas, o grande amor de sua vida sempre fora a passista.

A canção “Rita” marca que mais que o ser amado, a personagem feminina é convertida numa espécie de musa inspiradora, que ao levar, no sorriso dela, o sorriso do eu lírico, leva também seu assunto, deixando-o mudo. É interessante apontar, no entanto, a ambiguidade dessa mulher musa, visto que esta, na “visão masculina”, é colocada, segundo observa Synval Beltrão Jr., no “campo do sagrado, abrangendo um endeusamento, uma adoração” porque tratada como “mulher ideal” (BELTRÃO Jr., 1993, p. 48). No caso da personagem da canção de Chico, isso não ocorre, ainda que possamos entendê-la, conforme a perspectiva do eu lírico, como musa, uma vez que Rita vai sendo caracterizada, na visão masculina, como uma mulher devastadora (em desacordo, portanto, com a imagem sacralizada da mulher). (PEREIRA, 2017, pp. 10-11).

No entanto, como Pereira (2017) bem salienta, no início da segunda estrofe, o ato de levar praticado por Rita vai sendo, sutilmente, desconstruído pelo eu lírico, visto que contextualizado. Ele diz: “A Rita matou nosso amor / De vingança”. Estes versos, associados aos dois primeiros que abrem a canção (“A Rita levou meu sorriso / no sorriso dela”), propõem que o assassinato do amor tem uma causa, não apontada, mas sugerida pelo eu lírico. Isto é, a ação de Rita é impulsionada por algo que está fora dela, mas circunscrita em sua relação amorosa com o eu lírico. Seria, então, um ato punitivo por parte da mulher ao homem sambista malandro. E esse ato punitivo de certa forma, provoca prazer em Rita que sai sorrindo e ainda leva consigo o sorriso do eu lírico.

No que diz respeito aos aspectos formais, a canção é composta por duas estrofes: a primeira é constituída de onze versos e a segunda de treze, diluídos em versos brancos (os quais não apresentam rimas regulares ou encadeadas) que exploram a aliteração do “r”, desde o título até a sucessão de palavras, “retrato”, “trato” e “prato”.

Em relação à sua tematização, notamos que a canção se apresenta, explicitamente, como uma história que conta a separação de um casal. Nessa narrativa, a desunião é relatada sob o ponto de vista do cônjuge, que reclama do abandono da personagem Rita. Ao contar a história em primeira pessoa, o narrador assume o estatuto de narrador- personagem que relata, por meio de uma peça fictícia, a sua própria história de vida.

Rita é a mulher que levou bens materiais do eu lírico: imagem de São Francisco, o disco de Noel, seu retrato, seu trapo, seu prato, evidenciando a cisão do casal e uma espécie de partilha não muito justa, atitude observada pelo eu lírico com ironia: Que papel!. O texto principia com uma debreagem actancial enunciativa, quando nele se estabelece a actante do enunciado, Rita26. Os verbos levar, arrancar, matar, deixar e causar no pretérito perfeito do indicativo informam as ações efetuadas por Rita ao eu lírico da canção. O tempo é, como o próprio verbo anuncia, um passado próximo. O espaço é sugestivo, não explícito, porém, pelos objetos elencados, infere-se que é a casa e a vida do eu lírico.

Essa debreagem enunciativa cria dois grandes efeitos de sentido: de subjetividade e de objetividade, instâncias imbricadas na canção. Na subjetividade, há o conflito que, por envolver o próprio narrador, vem permeado de emoções ao longo dos versos. A tristeza sentida pelo eu lírico é exposta indiretamente ao afirmar que a amada levou seu sorriso, seu assunto e tudo o que era seu por direito – ela arrancou do peito. Esse sujeito quer expor sua dor e, ao mesmo tempo, assujeitar o leitor/ouvinte para o drama que está vivendo. Juntamente com a subjetividade, a objetividade das ações da actante ao levar os objetos e deixar somente o violão.

A música perpassa toda a narrativa do roteiro “O pai da Rita”. Vernet (2012, p. 106) esclarece que a narrativa é o enunciado em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega da história a ser contada. Porém, esse enunciado que, no romance, é formado apenas da língua, na música compreende também a melodia e, no roteiro, imagens, menções escritas e, no caso da obra em análise, a canção de Chico Buarque e os sambas da Vai-vai. Essa plêiade acaba por tornar a organização da narrativa no roteiro mais complexa. A música, em “O pai da Rita”, verte-se em elemento narrativo do texto, como podemos observar em alguns excertos do roteiro.

Na cena primeira, por exemplo, ao descrever o Bairro do Bexiga e assim caracterizá-lo, Moretti acrescenta a “música de rodas de samba”. O samba da Vai-vai também encerra a cena – canção e dança se entrelaçam no bairro entre os personagens. Verificamos, neste trecho, o poder sedutor da música na trama:

26 Uma vez que a enunciação é a instância da pessoa, do espaço e do tempo, há uma debreagem actancial,

uma debreagem espacial e uma debreagem temporal. A debreagem consiste, pois, em um primeiro momento, em disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não eu, um não aqui e um não agora. (FIORIN, 1995).

Pudim olha admirado para a intensa movimentação. O SOM da bateria é ensurdecedor e totalmente contagiante.

(...)

Ainda embasbacado, Pudim olha para a ala dos repeniques e dos tamborins. Ele começa a acompanhar a MÚSICA e o RITMO do samba com o corpo, parece enfeitiçado, enlevado. Seus pequenos gestos parecem fazer parte da melodia do samba. De repente, ele pára e observa uma componente da escola em especial. (MORETTI, 2008, p.02).

Na extensão acima, percebemos que, aliada à canção, há outra arte inserida no roteiro: a dança. Ao apontar “o ritmo do samba com o corpo”, Moretti demonstra a importância da dança para um bairro no qual nasceu a grande Escola de Samba Vai-vai. Siqueira (2006, p.4) afirma que a dança é uma manifestação social e um fenômeno estético, cultural e simbólico que expressa e constrói sentidos através dos movimentos corporais. Como expressão de uma cultura, insere-se em uma rede de relações sociais complexas, interligadas por diversos âmbitos da vida. No final dessa primeira cena:

PONTO DE VISTA DE PUDIM: Descortinada pelos corpanzis dos ritmistas da bateria surge RITA, 08 anos, negrinha graciosa e malemolente, sambando no pé, descalça. Ela perpassa a escola com graça e leveza, parece flutuar por entre os componentes.

Roque e Pudim esperam a escola passar e a seguem, sambando e brincando.

MONTAGEM DE PLANOS revela SÉRIE DE NEGROS ALTIVOS, com diferentes compleições físicas, feições e cores TOCANDO seus instrumentos de percussão com paixão. (MORETTI, 2008, p. 03).

Música e dança se complementam, entrelaçam-se na narrativa, criando uma ambientação alegre, sedutora e descontraída, típica de um bairro como o Bexiga. Desse modo, o corpo dos personagens adquire “significado por meio da experiência social e cultural do indivíduo em seu grupo, tornando-se a respeito da sociedade passível de leituras diferenciadas por atores sociais distintos” (Siqueira, 2006, p.42). A segunda cena começa com a continuação do ruído de bateria que, segundo o roteirista, ainda ecoa no ar. Nesse ponto percebemos um plano sequência de uma cena para outra.

Ainda no final da segunda cena, Pudim, no restaurante de Pietro, começa a tamborilar o samba “Tradição (Vai no Bexiga pra ver)”, de Geraldo Filme. Os amigos da velha guarda da Vai-vai o acompanham com diversos instrumentos. A letra da música retrata a presença e a dimensão do samba no Bexiga:

Quem nunca viu o samba amanhecer Vai no Bexiga pra ver

O samba não levanta mais poeira Asfalto hoje cobriu o nosso chão Lembrança eu tenho da Saracura Saudade tenho do nosso cordão Bexiga hoje é só arranha-céu E não se vê mais a luz da Lua Mas o Vai-Vai está firme no pedaço É tradição e o samba continua27

O saudosismo presente nessa canção de Geraldo Filme traduz a mesma sentida na leitura do roteiro. A narrativa é baseada na história de supostos personagens da velha guarda do Bexiga, componentes da Vai-vai, que, a todo momento, ressentem-se do progresso e das mudanças ocasionadas. O Bexiga respira canção, daí o eu lírico recorrer, na primeira estrofe, à metáfora de que para ver o “samba amanhecer” tem de ir ao Bexiga “pra ver”.

Na segunda estrofe, também é utilizada outra figura de linguagem, a prosopopeia, que conforma a afirmação deque o samba não levanta mais poeira e, na sequência, a lamentação pelo asfalto e os arranha-céus que tomaram conta do bairro. Apesar de toda essa lamúria, como no roteiro, a alegria de se ter a Vai-vai que continua firme e é tradição no Bexiga. Veremos na análise que haverá lamentações também pelas mudanças ocorridas dentro da própria Escola de Samba no decorrer dos tempos.