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CAPÍTULO VI A INTERMIDIALIDADE ENTRE O ROTEIRO LITERÁRIO E AS TELAS DO

6.1 CABRA-CEGA O ROTEIRO DE DI MORETTI

6.1.2 A ekphrasis e o personagem Thiago

Para a realização fílmica, faz-se necessário também a eleição do “ponto de vista” e do “ponto de foco” da narrativa. O roteirista Di Moretti fez recair o principal foco da atenção do seu narrador sobre o personagem Thiago e suas ações. Com isso, ele se tornou o personagem principal da narrativa de Cabra-Cega. A partir dessa eleição, o leitor/espectador convive com o “drama” do personagem principal e sua inexorável impotência diante dos fatos: de esperar e sobreviver, ou de fugir e colocar a sua vida e a de seus companheiros em risco.

Di Moretti divide o roteiro de Cabra-Cega em três atos ou ciclos. Em seu primeiro ato (primeiro terço do filme), o roteiro apresenta as peças do jogo e suas motivações: Pedro, o arquiteto simpatizante, que empresta seu apartamento para acolher o herói ferido. Rosa, a enfermeira militante, que cuida da saúde e da segurança de Thiago. Matheus, o experiente estrategista, que dirige a organização e que prepara a saída de Thiago. E o próprio Thiago, o líder guerrilheiro, que precisa ser “fechado” para ser preservado da onda de extermínio que se abate sobre os jovens ativistas da luta armada. Esse ciclo se encerra aos trinta minutos do filme, na Cena 31. “Thiago está em conflito interno, retraído. A partir de então, o militante passará por um crescimento, se expondo ao mundo e às pessoas, como à Dona Nenê e à Rosa. Fecha-se a apresentação do contexto dramático, histórico e dos personagens do filme”. (MORETTI, 2005, p. 111).

No segundo ato, conforme divisão do autor, o conflito se estabelece. O projeto original começa a sair do prumo, as regras vão sendo quebradas. Não só as regras de isolamento do militante ameaçado, como as regras do coração e da convivência. É quando o mundo exterior ameaça invadir aquele apartamento-aparelho inexpugnável. O telefone toca, a campainha range, a vizinha bisbilhoteira bate à porta.

Thiago atinge o seu segundo ciclo no filme. O militante vai se soltando, o mau humor deixa de ser endêmico e começa a reparar à sua volta, inclusive em Rosa. Não está mais focado nos seus fantasmas interiores e em suas lembranças. Passa a mirar a realidade, talvez às vezes de forma distorcida, o que fica bem claro na atuação de Leonardo Medeiros. (MORETTI, 2005, p. 118).

O terceiro e último ato revela o destino final desses jovens que optaram por reagir ao obscurantismo por meio da luta armada. Eles chegam a este último portal transformados, transfigurados. Thiago desconfia de tudo e de todos, inclusive de suas próprias certezas até então assumidas como absolutas.

Aqui vale um comentário sobre a construção da linha dramática do personagem principal. Thiago passa por três ciclos bem distintos. No primeiro, está mal consigo mesmo. No segundo, se volta para o exterior e inicia o processo de enternecimento. Porém também aí se vê impotente, espremido por um mundo que está fechando o cerco. No terceiro, que começa aqui, na cena 71, Thiago parte para a ação. Diante do iminente fracasso da luta da qual faz parte, ele passa a agir por conta própria. Por um lado, se arma para o inevitável enfrentamento com a polícia, na posição de franco atirador. De outro, abre o coração para Rosa. Trata-se do momento em que o filme ganha velocidade, com as músicas de época e a sucessão rápida de acontecimentos. Venturi afirma que descobriu, durante seu trabalho em Cabra-Cega, a importância da estrutura narrativa ter uma trajetória crescente, que culmina numa explosão, produto de uma evolução emocional. (MORETTI, 2005, p.213-214).

Aliás, essa configuração do roteiro cinematográfico em três atos já foi citada por Field (1995), após análise de vários roteiros para selecioná-los à produção cinematográfica, ou não. Para o autor, se o roteiro fosse uma pintura pendurada na parede, é assim que ele se pareceria:

Início meio fim

Ato I Ato II Ato III

________________________________________________________________________ apresentação confrontação resolução

págs. 1-30 págs. 30-90 págs. 90-120

Em Cabra-cega podemos perceber claramente desde o princípio que o filme se move a partir de um conflito. Conflito, de acordo com Comparato (2009, p. 57), designa a confrontação entre forças e personagens por meio da qual a ação se organiza e vai se desenvolvendo até o final. É o cerne, a essência do drama. Sem conflito, sem ação, não existe drama.

De um ponto de vista didático, o autor distingue três tipos de conflito de personagem: a personagem pode estar em conflito com uma força humana, com outro homem ou grupo de homens; com forças não humanas, a natureza ou outros obstáculos; e consigo mesma, com uma força interna.

Comparato explica ainda que não se trata de compartimentos estanques. Por vezes aparecem misturas e combinações desses três conflitos. Em Cabra-cega, Thiago, o protagonista, está em conflito com o sistema. Ele é a representação histórica da luta armada contra o sistema ditatorial do poder. Há ações violentas e confrontos entre as partes em defesa dos ideais subjacentes. Nesse caso, percebemos a predominância do primeiro conflito elencado por Comparato. Porém, junto a esse conflito, há o conflito de Thiago com ele mesmo, com as ordens a serem seguidas do aparelho – com a necessidade de recuar versus a vontade de lutar. Esse conflito com sua força interna está presente em todo o roteiro, desde a primeira versão do roteiro literário até o roteiro técnico. Vejamos, abaixo, um excerto da Cena 22, Versão 3 do roteiro literário, que ilustra esses conflitos internos: primeiramente do protagonista consigo mesmo, depois deixando-se transparecer no diálogo com Mateus (grifos nossos):

CENA 22 – INTERIOR - ENTARDECER - SALA

Thiago, sentado no sofá, folheia o livro de Capote. Ele não consegue concentrar-se na leitura, não se desliga do ambiente, vez ou outra, olha em torno. Os RUÍDOS da rua, latidos, freadas, vendedores de biju, cantos de pássaros chamam sua atenção. Ele está tenso com tanta ociosidade e olha para as sombras das árvores que se projetam na cortina da janela da frente e parecem dançarem graciosamente. (MORETTI, 2005, p. 91-92). Tudo naquela situação inquieta Thiago. A quietude, a solidão, o trancamento, aquele espaço, o ócio, os ruídos. A redenção só ocorre no final no qual ele e seus dois companheiros entram não na escuridão da morte, mas no clarão da luz da luta armada por seus ideais, por seu país, pela liberdade.

Nesse ínterim, Thiago se sente em completo torpor diante da realidade. Na publicação do roteiro, na Cena 27, Matheus entra na sala da casa de Pedro e flagra Thiago dormindo, o livro aberto, com As portas da percepção, de Adouls Huxley. Thiago acorda e Mateus sugere que ele pare de viajar e que leia algo mais produtivo. Como o próprio Di Moretti afirma, nenhum elemento é disposto no filme ao acaso. Aldous Huxley, em sua obra As portas da percepção, relata a sua experiência sob a influência de uma droga muito comum nas décadas de 1940 e 1960, a mescalina. Huxley, conhecidamente um entusiasta de experiências místicas, busca na mescalina uma forma de entrar em contato com esse universo. Nesse ponto, torna-se interessante analisarmos a presença dessa obra no filme e sua relação com a luta de nosso militante:

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas, mas são crucificados sozinhos. (...) Por sua própria natureza cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias - tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação cada grupo humano é uma sociedade de universos singulares.

(...)

A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos, e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios por superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. (HUXLEY, 2002, p. 07).

Esses são trechos do livro lido por nosso protagonista. Nele, os sentimentos acima expostos justificam a utilização de drogas para o preenchimento do vazio e da solidão tão inerente à existência humana. Porém, sem a utilização dessas drogas, apenas do cigarro (Thiago fuma muito), os sentimentos de Thiago são os mesmos relatados por Huxley. Somado a isso, vem, em seguida, a constatação de Mateus de que eles, como militantes de esquerda, não tinham conseguido nem ganhar o povo para a causa que defendiam. Apesar de Thiago defender que tem um compromisso com os que morreram pela causa, Mateus se contrapõe, afirmando que a luta não é uma questão pessoal. Thiago precisa preocupar-se com o coletivo. Na sequência desse diálogo entre Mateus e Thiago da Cena 27 e nos reportando às referências intermidiáticas citadas por Irina Rajewsky (2012, p. 28), que abordam o aparecimento na literatura, em nosso caso, no roteiro literário, tanto o caráter “como se” das referências intermidiáticas quanto uma qualidade específica, são capazes de formar a ilusão de outra mídia, o filme.

Usando os meios específicos das mídias à sua disposição, o autor de um texto não pode, por exemplo, “verdadeiramente” fazer um zoom, editar, dissolver imagens, ou fazer uso de técnicas e regras reais do sistema cinematográfico; ele necessariamente permanece dentro de sua própria mídia verbal, isto é, textual. Nessa impossibilidade de ir além de uma única mídia, uma diferença midiática se revela – uma “fenda intermidiática” – que um texto intencionalmente esconde ou exibe, mas que, de qualquer forma, pode ser transposta somente no modo figurativo do “como se”. (RAJEWSKY, 2012, p. 28).

Esse é o trabalho de toda a equipe no set de filmagem – a transposição das mídias. Da mídia – roteiro literário – para a mídia filme. Porém, como já abordamos, a possibilidade de transformação de uma narrativa ou roteiro literário para o cinema comporta diferentes interpretações, apropriações e redefinições de sentido. O escritor e o cineasta possuem sensibilidades e propósitos diferentes.

Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película, suas crenças, seus objetivos e sua estilística. Assim, eles buscam ou aproximar, ou traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao cinematográfico, observando as possibilidades de imbricamento de um meio com o outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar (CURADO, 2007, p. 2-3).

Após essas observações sobre transposições intermidiáticas, vamos observar como foi transposto um trecho do roteiro cinematográfico para as telas de Cabra-Cega:

(...) Thiago vai para o outro lado da sala.

Tem um montão de coisa pra fazer lá fora. Arranjo trabalho, faço fachada... Me mudo pro Rio... Lá sou desconhecido, vou ter mais segurança. Posso me juntar com o Lucas e montar um novo grupo de ação...

MATEUS (tom mais alto)

Thiago! (Pausa) Não tem mais o pessoal do Rio.

Thiago congela. Parece ter recebido um soco na boca do estômago. (MORETTI, 2005, p. 102 – grifo nosso).

Figura 62. Fotograma de Thiago conversando com Mateus do outro lado da sala

Figura 63. Fotograma da expressão “Thiago congela”

Nesse trecho, percebemos como transcorre a diferença midiática do “como se” na escrita para a imagem na tela. Ao invés de Parece ter recebido um soco na boca do estômago, pode-se ler Como se tivesse.... O roteiro literário utiliza o seu instrumento de comunicação, isto é, a linguagem para descrever narrativamente a sensação que Thiago deve desenvolver através de imagem diante da notícia enunciada por Mateus. Para transpor essa reação de “soco no estômago” e “congelamento” há mais instrumentos utilizados pelo cinema. Além da reação corporal de Thiago, como podemos observar nos fotogramas acima, há o ponto de vista apresentado pela câmera.

No fotograma 01, Thiago se apresenta sob o olhar subjetivo de Mateus. Nele, podemos observar os detalhes do apartamento de Pedro.: quadro, grandes janelas com cortinas, almofadas, discos e um violão. Um apartamento descolado de um homem jovem e solteiro. Os pés de Thiago estão cortados, o que, de acordo com Jullier e Marie (2009, p. 24), pode indicar maiores aspirações do que a realidade proporciona, e isso se confirma quando ele quer ir para o Rio continuar seus projetos audaciosos e revolucionários. A mudança brusca se dá no momento em que Matheus fala em tom alto para Thiago que não há mais pessoal do Rio. Há, nesse momento, o zoom in, o qual não é um movimento, mas uma variação da distância focal. Ao se aproximar de Thiago, a câmera capta o seu sentimento diante da revelação de Mateus. Suas expressões associadas à variação focal da câmera procuram externar, desse modo, o “soco no estômago” descrito no roteiro.

Na sequência, Thiago bate à máquina de escrever debaixo dos cobertores no quarto para abafar o som. Essa cena foi inspirada no depoimento de Robêni Costa, ex-guerrilheira da ALN, responsável pela gráfica que imprimia o jornal da organização. Ela e o seu companheiro utilizavam, sem sucesso, cobertores visando a reduzir o ruído das máquinas. Com essa cena, procurou-se “retratar o nível de apreensão em que viviam os guerrilheiros muitas vezes dissociados do limite entre a realidade e a fantasia”. (MORETTI, 2005, p. 164).

Vale registrar que o roteiro desenvolvido por Di Moretti e Venturi, com a assessoria de Alípio Freire (jornalista e ex-militante da Ala Vermelha) se baseou numa pesquisa na qual foram entrevistados 11 ex-guerrilheiros da época retratada no filme. Esse trabalho teve como resultado a realização do documentário No Olho do Furacão, finalizado em 2003.

O roteiro do filme parte, portanto, de histórias reais, o que dá legitimidade aos ingredientes usados na proposta de se apresentar um olhar de dentro do aparelho. A imagem de Thiago batendo à máquina no próprio quarto contém, admite-se, algo de exagero. No entanto, ela pode ser interpretada como uma alegoria à perturbação em que mergulhava o personagem. (MORETTI, 2005, p. 163).

No fotograma acima, percebemos, de modo exacerbado, a bagunça do quarto de Thiago. Essa desordem ilustra o mesmo rol de sentimentos contraditórios que atravessam o interior do protagonista. Escrever simboliza a fuga daquele espaço, um modo de externar seus sentimentos perturbadores de revolução e luta. Detalhe do personagem fumando dentro da cabana. O cigarro é seu companheiro constante naquele isolamento. Antes desse momento, Thiago havia zapeado no prédio vizinho, espionando a intimidade vivida pelos moradores. São os atos de quem anseia pela liberdade que conferem a sensação de poder sair daquele claustro em que se encontra.

No roteiro, procurou-se delinear um Thiago guerreiro, porém inconformado com a situação a que se encontra: prisioneiro, sem lutas, sozinho. Tal situação, por vezes, mexe com a personalidade de um guerrilheiro. Em decorrência disso, na Cena 30, o roteirista coloca umas falas agressivas do protagonista dirigidas à Rosa, mas que foram suprimidas na edição. A retirada foi feita em consideração à má-impressão que causou a um grupo de ex-guerrilheiros que assistiu ao filme em uma das sessões-teste promovidas pela

produção, antes da finalização da película. Essa atitude demonstra a grande preocupação de conservar, ao máximo, a fidelidade tanto em relação às personagens quanto a seus sentimentos. Segundo os espectadores seletos, naquele contexto não seria verossímil uma grosseria desse tipo, ainda mais cometida por um comandante de “grupo de fogo”.

Há ainda uma sequência de fatores que ocorrem e desencadeiam mais solidão e desilusão em Thiago. Roteirista e diretor tiveram o cuidado de inserir vários elementos que caracterizam a ditadura militar. Perdas, mortes, resgates de combatentes – tudo concorre para que seja feita a ambientação da época.

CENA 61 – INTERIOR – MANHÃ – SALA DE ESTAR Dia: 14 – Hora: 07:00hs

P.V de Thiago: A sala está vazia. Thiago está novamente sozinho no apartamento.

PLANO PICADO o revela pequeno na imensidão da sala de estar. (MORETTI, 2005, p. 196).

Figura 66. Fotograma retratando a solidão de Thiago na imensidão da sala

“Thiago descola o olho da porta e fica bastante abalado e confuso”. (MORETTI, 2005, p. 185).

“Thiago recosta-se na poltrona atônito. Introspectivo e perplexo com a notícia, ele explode para dentro.” (MORETTI, 2005, p. 197).

Esses fatos foram abalando ainda mais o líder revolucionário. Segundo Thiago, a morte estava rondando. Rosa até tenta alegrar os dias de Thiago. Para isso, transcreve no quadro negro um poema de Ho-Chi-Minh35 que fala sobre liberdade além das paredes. Dona Nêne, sua mais nova amiga, morrera de solidão. O ex-capitão Carlos Lamarca fora morto na Bahia, intitulado na mídia como terrorista, líder da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. “Aos 34 anos, Lamarca transformou-se no inimigo número um do regime militar, praticando assaltos, sequestros e assassinatos”. (MORETTI, 2005, p. 197). Após

35 Ho-Chi-Minh (aquele que ilumina) combateu pela independência do Vietnã. Envolveu-se em movimentos

socialistas na França e ajudou a fundar o Partido Comunista Francês. Em 1923 foi para Moscou onde aprendeu táticas de guerrilha e entrou para o Comintern, braço internacional do Partido Comunista da União Soviética. Dois anos depois foi enviado para a China, onde foi preso por atividade subversiva e escreveu “Os diários da prisão”.

Mia Couto cita uma fala de Ho-Chi-Minh que se converteu em um lema em sua conduta e que poderia servir de exemplo a Thiago: Quando Ho-Chi-Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana, ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”.

Figura 67. Fotograma da reação de Thiago à morte de Dona Nêne

Figura 68. Fotograma com a expressão de Thiago à notícia da morte de Lamarca

esses acontecimentos, o roteirista descreve Thiago como melancólico, quase catatônico e com o olhar perdido, largado e depressivo.