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CAPÍTULO I A FRUIÇÃO ESTÉTICA DAS OBRAS

1.1 DA ANESTESIA À ESTESIA

Hans Robert Jauss (1979), em seu texto “O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e katharsis”, empreende uma abordagem histórica para retomar os três conceitos da tradição estética ocidental e readaptá-los à sua concepção de experiência estética. Poiesis (criação) é o prazer que ante a obra nós mesmos realizamos – a retirada da dura estranheza do mundo exterior e sua conversão em obra de arte. A aisthesis (sensação) compreende a recepção prazerosa do objeto estético como uma visão

intensificada ou através do estranhamento. Por fim, a katharsis (purificação) liberta o espectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer do outro, para a liberdade estética da sua capacidade de julgar.

A partir da produção ou da poiesis (ou do prazer ante a obra realizada, a satisfação do autor pela coisa bem-feita) elencamos alguns elementos pertinentes a esse conceito em Central do Brasil (1998). Em entrevista ao Cine-jornal da Globo TV, Walter Salles relata que o filme surgiu a partir do seu próprio documentário lançado em 1994 e intitulado “Socorro Nobre”. O documentário aborda as cartas trocadas entre o artista plástico Frans Krajcberg e a presidiária Socorro Nobre. Durante as filmagens e os depoimentos de ambos, Salles percebeu que as correspondências foram cruciais para a vida de ambos. Dessa constatação surgiu a questão: e se as cartas não fossem enviadas?

A partir desse questionamento, Salles queria ainda descobrir o Brasil depois dos anos Collor: “quem somos nós, para onde vamos?” Sua intenção era fazer cinema humanista, em busca do pai, da própria identidade. O autor começou a escrever a história, exatamente pensada para Fernanda Montenegro protagonizar, afinal, segundo Salles, ela potencializou o enredo. A atriz, na publicação da obra escrita, atribuiu o sucesso do filme ao resultado do excelente roteiro feito por Walter Salles.

Ao creditar o sucesso do filme a Salles, Fernanda acaba por demonstrar que o prazer estético envolve participação e apropriação, uma vez que, diante da obra, ela, além de leitora do roteiro e protagonista do filme, exerce sua atividade criativa de recepção da vivência alheia, pois atua no papel de crítica ao reconhecer a excelência da produção escrita. A experiência estética consistiu na experiência de sentir e saber que “seu horizonte individual, moldado à luz da sociedade de seu tempo, mede-se com o horizonte da obra e que, desse encontro, lhe advém maior conhecimento do mundo e de si próprio”. (AGUIAR, 1996, p. 29). A experiência estética, portanto, compreende prazer e conhecimento; e, por meio do diálogo entre o roteiro e a atriz, a criação fílmica atua sobre um público oferecendo padrões de comportamento e, ao mesmo tempo, fazendo-o conhecer a si próprio e ao outro.

Lançado no ano de 1998, primeiramente, o roteiro de Central do Brasil projetou o cinema brasileiro para o exterior depois de décadas de uma produção esvaziada pela falta de investimentos no setor. O cerne para a produção do longa-metragem e, posteriormente, o próprio resultado dele: a obra cinematográfica conquistou prêmios relevantes, como o

Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim, e o de melhor roteiro no Festival de Sundance. Este último, nas próprias palavras de Robert Redford, foi o catalizador para ajudar Salles a começar a produção do filme.

Portanto, primeiramente, o roteiro foi premiado e só depois de reconhecido internacionalmente, é que se tornou filme. Esse é justamente o cerne de nossa pesquisa: a presença estética na produção do roteiro. Tal presença transforma o roteiro em algo bem maior do que uma simples receita , pois se verte em arte da palavra.

A partir da explanação da produção ou da poiesis em que tanto o diretor Walter Salles quanto a protagonista Fernanda Montenegro explicitam a satisfação em trabalhar com o roteiro, partimos para a segunda concepção de experiência estética postulada por Jauss: a aisthesis (sensação), que não deixa de estar entrelaçada com as demais.

Aisthesis equivale ao prazer estético da percepção ante o imitado. A compreensão da leitura literária pelo viés da fruição estética, ou seja, pelo efeito de estesia8 gerado no

sujeito da leitura, parte do reconhecimento de que o espaço de re(a)presentação criado pela escritura de textos ficcionais constitui um lugar de linguagem, ou seja, um lugar no qual a palavra – “puro” signo linguístico – adquire uma materialidade verbo-visual que concede à literatura o seu estatuto de Arte Verbal. Em nossa realidade, vivemos uma espécie de anestesia, pois passamos por fatos ou objetos sem prestar atenção ou vê-los. Saímos desse torpor, dessa anestesia, quando nos deparamos com a arte. Somente essa dimensão nos impele a mostrar o algo a mais que há em nosso cotidiano.

Podemos elencar vários elementos em Central do Brasil (1998). Aisthesis é a percepção prazerosa, sensorial, pelo conhecimento de algo novo, a fruição do reconhecimento perceptivo. No cinema, pode-se inferir, inclusive, sobre a frase hermenêutica a partir da chamada intriga de predestinação.

A intriga de predestinação consiste em apresentar, no início do filme (e do roteiro), o essencial da intriga e a solução ou, pelo menos, a solução esperada. Alguns ditam cartas para entes queridos na mesinha de escrevedora de cartas Dora, personagem de Fernanda Montenegro, sempre solitária e endurecida pela vida. Porém, há o que Barthes (apud Vernet, 2012) chama de “frase hermenêutica”, que consiste em uma sequência de etapas-

8 Como observou Landowski (2005), foi em Da Imperfeição que Greimas renovou as perspectivas da

semiótica ao introduzir um conceito-chave até então totalmente ignorado, que foi o da estesia. A dimensão estésica de nossa relação com o mundo é a que se dá por meio do experimentar (éprouver), do sentido como presença, sustenta Landowski (2004). Em um artigo anterior, “Viagens às Nascentes do Sentido” (1996, p. 35), esse mesmo autor já sublinhava que “[...] é bem nosso corpo todo que, lê, ou, de qualquer forma, que se implica na construção do sentido.”

paradas que nos leva da colocação do enigma à sua solução por meio de pistas falsas, engodos, suspensões, revelações, desvios e omissões. A trajetória de Dora muda quando decide cuidar do menino Josué, depois de ele presenciar a morte trágica de sua mãe. A partir de então, o filme vira um road movie, e os dois partem em busca do pai de Josué.

A estética que toca o espectador e o faz visualizar essa história de redenção, de conversão de Dora, ou melhor, a partir de sua mudança de caráter, desponta após essa frase hermenêutica colocada por Salles na narrativa. Ela era uma pessoa cínica que enganava as pessoas e a partir da tragédia de Josué, todos esses desvios de caráter serão trabalhados ao longo da busca dela e de Josué pelo pai do menino. A consolidação desse processo se dá após a grande aglomeração popular em prol de uma festa religiosa em que ela acorda outra. Em suma, são vários aspectos que ganham verossimilhança diante do espectador, tocando-o e fazendo com que o mesmo “sinta” a história. Dora torna- se apequenada diante do mundo, diante de Josué. É como se a personagem precisasse ir ao chão e morrer e dela renascesse uma nova mulher.

Chegamos, enfim, à terceira concepção de experiência estética postulada por Jauss: a katharsis, resultante do ato de ler um livro, contemplar uma tela ou ver um filme. É o depois do ato artístico: no nosso caso, da leitura do roteiro de Central do Brasil (1998).

De acordo com Jauss, é no plano da catarse que transcorre o processo de identificação, que impele o espectador a não apenas sentir o prazer, mas ser motivado a agir, a rever ideias e tomar novas posturas, completando, assim, o ciclo de comunicação. Essa é a parte final do roteiro. Nesse instante, a emoção estética chega a seu ápice. Dessa forma, percebemos a katharsis como o “prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua psique” (Jauss, 2002). É a instância que corresponde à experiência comunicativa fundamental da arte, e permite explicitar a sua função social, ao inaugurar ou legitimar normas e também libertar o espectador de sua rotina comezinha, a fim de levá-lo ao encontro com a liberdade estética do prazer de si no prazer do outro.

Enfim, mesmo sendo a transcriação literal do filme, na leitura de um roteiro bem escrito, o espectador se sensibiliza com todo o drama vivenciado pelos personagens. Aqui ilustramos com o roteiro de Central do Brasil (1998), mas há vários outros que prosseguem poéticos, mesmo sendo publicados após a exibição fílmica.

Quando saímos do cinema e o filme, de alguma forma, nos marca, levamos a narrativa dentro de nós. E vale acrescentar: apenas a partir de um bom roteiro é que esse filme pode fazer parte de nossa vida. Afinal, somente é possível acessarmos a inequívoca emoção da sétima arte a partir da grande emoção produzida pelo roteiro. Mesmo tendo sido publicado depois da estreia do filme, o roteiro de Central do Brasil (1998) foi premiado antes de sua produção. São vários os motivos, como desdobraremos adiante, para as mudanças procedidas no roteiro literário, mas a sua essência permanece. Caso contrário, o próprio roteirista se negaria a assiná-lo.

CAPÍTULO II