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6 O PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO DE AQUI, AÍ, ALI E LÁ

6.1 A EMERGÊNCIA DE NOVOS MARCADORES DE ESPECIFICIDADE

Conforme comentei na seção 3.1.1, a proposta de Hopper para a gramática é a de que esta deve ser encarada como um fenômeno social, online e temporal, cuja estrutura “é sempre adiada, sempre em um processo, mas nunca chegando, e, portanto, emergente” (HOPPER, 1987, p. 141 – grifos meus). Dessa forma, o autor destaca o caráter provisório da gramática, sempre sujeito a mudanças e a importância da gramaticalização nesse processo. Hopper (1987) também enfatiza o papel da repetição (= frequência de uso) na constituição da linguagem e, consequentemente, da gramática.

Quanto aos marcadores de especificidade de SN indefinidos AÍ, LÁ, ALI e AQUI, minha proposta é a de que esses itens emergiram/estão em processo de emergência no português brasileiro em graus diferentes. Se considerarmos a importância da frequência na verificação da gramaticalização, AÍ deve ter sido o primeiro desses marcadores a emergir no domínio funcional da especificação nominal e é o mais gramaticalizado dentre eles, seguido por LÁ. Reforça esse argumento a distribuição dos dados na amostra analisada, uma vez que encontrei 129 ocorrências de AÍ marcador de especificidade contra 99 de LÁ e apenas 16 de ALI e 5 de AQUI. Além disso, de acordo com o que foi discutido no capítulo anterior, AÍ apresentou uma distribuição mais diversificada do que LÁ, tendo aparecido em mais tipos de construção do que LÁ, já que aquele ocorreu em seis tipos, enquanto este, em cinco. Com relação à existência de material interveniente entre o marcador e o núcleo do SN,42 embora tenha havido uma leve predominância de dados com

LÁ, perfazendo uma frequência de 7%, contra 6,2% de dados com AÍ, ressalto que houve maior diversidade no tipo de material interveniente entre AÍ e o núcleo do SN, com quatro tipos de material (adjetivo, locução adjetiva, advérbio+adjetivo e pronome), ao passo que, nos SN com LÁ, ocorreram apenas três – adjetivo, locução adjetiva e pronome.

No caso da ocorrência dos marcadores junto a nomes humanos e a nomes não humanos,43 os resultados mostraram que os quatro marcadores emergentes predominam em sintagmas nominais em que o substantivo é um nome não humano, o que pode ser tomado como um indício de que esse deve ter sido um dos contextos de emergência desses itens. Todavia, com relação à especificação de nomes humanos, AÍ foi mais frequente do que LÁ: 33% dos types e 35,2% dos tokens aos quais AÍ se adjungiu correspondiam a nomes humanos; no caso de LÁ, porém essa distribuição foi mais baixa, vez que apenas 20% dos types e 24,2% dos tokens aos quais LÁ se ligou eram nomes humanos. Esse resultado pode ser mais uma evidência de que AÍ é mais gramaticalizado do que LÁ, por atuar com mais frequência na especificação de nomes humanos do que este.

Com relação ao status informacional predominante entre os marcadores emergentes, embora o novo tenha sido o prevalecente, a distribuição de AÍ em SN com status informacional velho, que possivelmente estaria associado a um maior grau de gramaticalização, é maior do que a de LÁ, pois, enquanto este apresentou uma frequência de 19,2%, aquele obteve um resultado de 25%. No âmbito das implicaturas conversacionais, os contextos de uso de AÍ permitiram a verificação de seis implicaturas, ao passo que os contextos de uso de LÁ autorizaram somente cinco, o que também pode indicar que os contextos de uso de AÍ são mais amplos do que os de LÁ e, consequentemente, do que os dos outros marcadores emergentes.

Uma outra provável evidência de que AÍ é o mais gramaticalizado dentre os marcadores emergentes é a sua presença em textos escritos que procuram representar a fala informal.44 Aliás, os dados mais antigos a que tive acesso com AÍ

43 Cf. seção 5.1.3.2.

44 Pintzuk (2003) afirma que pesquisadores afiliados à linguística histórica geralmente defendem que

as inovações chegam à escrita de acordo com a ordem em que surgiram na fala, mas com uma defasagem de tempo indeterminada. Em outras palavras, para tais pesquisadores, os textos escritos tendem a refletir a fala de épocas mais antigas da língua.

((01)-(03) a seguir) vieram da tradução para o português do romance As vinhas da ira (The grapes of wrath), do escritor norte-americano John Steinbeck, realizada por Ernesto Vinhaes e Herbert Caro e publicada em 1940. De acordo com Tavares (2003), os tradutores se valeram das marcas do dialeto das classes populares do estado do Rio Grande do Sul, dos arranjos e rearranjos gramaticais lá em voga por volta de 1940, a fim de manter o tom de oralidade do original e o destaque à presença de traços de língua não padrão na fala dos personagens, uma vez que, sendo integrantes das classes socioeconomicamente desfavorecidas, eles utilizam a “[...] linguagem chã dos homens de sua condição” (STEINBECK, 1940, p. 10).

(01) Todos com quem tenho falado têm tido razões mais do que boas pra se meterem na estrada. Mas onde é que o país vai parar desse jeito? Um homem já não pode ganhar a vida decentemente. Nem as terras se pode cultivar mais. Eu lhe pergunto: como é que isto vai acabar? Não faço a menor ideia. E ninguém, dos que interroguei a respeito, soube me dizer nada. Um sujeito AÍ quis vender até os sapatos pra poder ir mais umas milhas adiante. Francamente, não sei, não compreendo nada (STEINBECK, 1940, p. 131-132).

(02) – Tem muita gente que quer saber o que seja isso. – Ele riu. – Um dos nossos rapazes descobriu a coisa. – Alisava cuidadosamente a terra com a pá. – Tem um

sujeito AÍ que se chama Hines. É o dono de uns trinta mil acres de terra, com

pêssegos e uvas, e tem uma fábrica de frutas em calda e uma cantina. Bem, êle vive gritando o tempo todo contra “uns danados duns vermelhos” (STEINBECK, 1940, p. 318).

(03) – Tu não vai ao baile? – perguntou Mãe.

– Vou, sim – disse Tom. – ‘Tou num comité. A gente ‘tá preparando um brinquedinho pra uns caras AÍ.

– Mas tu chegou agora e já ‘tá num comité? – admirou-se Mãe (STEINBECK, 1940, p. 360-361).

Esses dados fornecem uma pista de que o processo de gramaticalização de AÍ como marcador de especificidade, no português brasileiro, deve ter se iniciado pelo menos na primeira metade do século XX. Possivelmente, tal uso também pode ter influenciado a emergência, por analogia, dos outros advérbios locativos LÁ, ALI e AQUI como marcadores de especificidade. Os dados a seguir são reveladores da expansão dos usos de AÍ em vários gêneros e suportes: em (04), ele aparece em uma tirinha publicada em um jornal de grande circulação nacional; (05) e (06) foram recolhidos de telenovelas, um gênero híbrido, uma vez que o texto é escrito para ser encenado, e os autores usualmente procuram representar, na fala de seus personagens, a linguagem falada no dia a dia; (07) é oriundo de um livro de contos em forma de cartas, muitas delas apresentando um tom coloquial; e (08) foi coletado

de um livro didático de língua portuguesa, mais especificamente de uma atividade que procurava simular uma situação em que um advogado se dirige a um juiz fazendo uso de um variedade linguística extremamente coloquial.

(04) A: Orelha, seu sumido! Faz tempo que não aparece!

B: Sei lá, tenho andando ocupado, fazendo umas paradas importantes AÍ (Folha

de São Paulo, 03/07/2001).

(05) A: Você quer jantar?

B: Eu jantei com um amigo. Tínhamos que conversar sobre um negócio AÍ que tá pintando (Novela Páginas da Vida, 10/07/2006).

(06) A: Você anda tão tenso, né?

B: Tô tendo uns problemas AÍ, mas vai passar (Novela Malhação, 13/04/2007). (07) Velho, fiz uma coisa que não é do meu feitio. Procurei uma mulher AÍ, uma tal que

recebe espíritos e psicografa cartas dos que se foram. Você imagina eu num lugar desses? (MEDEIROS, 2007, p. 98).

(08) Dr. Geraldo entra esbaforido na sala de audiência e se dirige ao juiz:

– Ó meu! Desculpa o atraso, tá? Mas eu estou paradão num mulherão AÍ e ela não me dava bola. Hoje, justo quando eu estava vindo para a audiência, ela me ligou. Num deu pra deixar pra lá, você entende, né chapa? (TRAVAGLIA; ROCHA; ARRUDA-FERNANDES, 2009, p. 94).

Com relação a ALI e AQUI, os poucos dados coletados desses marcadores parecem sugerir que esses itens iniciaram seu processo de emergência posteriormente a AÍ e LÁ, pois há pouca diversidade em seus contextos de uso: ALI e AQUI só apareceram em dois tipos de construção – as construções prototípicas e as existenciais; esses marcadores também predominaram junto a substantivos concretos, com uma frequência de 87,5% para ALI e 100% para AQUI; ALI apareceu em SN que codificavam apenas três funções sintáticas – objeto direto, absolutivo e adjunto adverbial –, ao passo que AQUI apareceu em SN que codificavam apenas duas funções – objeto direto e absolutivo; ambos os marcadores predominaram em SN com status informacional novo, com uma frequência de 87,5% para ALI e 100% para AQUI.

Por fim, acredito que o estatuto de ALI e AQUI entre os marcadores de especificidade ainda não parece estar plenamente assegurado, visto que seu processo de emergência ainda me parece bastante incipiente, podendo vir a se intensificar no futuro, ou não. Talvez a utilização em maior escala de AÍ e LÁ possa desestimular o uso desses itens como marcadores de especificidade. No entanto, essa hipótese ainda necessita ser testada com base em dados mais recentes e/ou em testes de atitude com falantes.