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2 ESTADO DA ARTE

2.1 UNS TRABALHOS AÍ

2.1.1 Martelotta (1994)

O primeiro estudo a abordar esse item a que tivemos acesso é o de Martelotta (1994). Nele, o autor investiga, à luz dos postulados do funcionalismo linguístico norte-americano, o processo de gramaticalização dos operadores argumentativos AÍ, LOGO, DEPOIS, ENTÃO, AINDA e JÁ, descrevendo seus principais usos e suas funções no português brasileiro. Para tal, utiliza dados provenientes de alguns corpora orais, a saber: Censo de Variação Linguística, Competências Básicas do Português e NURC.

Com relação ao operador argumentativo AÍ14, Martelotta (1994) propõe que

esse item originou duas trajetórias de gramaticalização diferentes, ambas partindo do mesmo ponto inicial: o uso dêitico espacial de AÍ. Na primeira dessas trajetórias, AÍ dêitico espacial dá origem a AÍ anafórico e a AÍ sequencial que, por sua vez, engendra os usos AÍ introduzindo informação nova e AÍ conclusivo, conforme atestam os dados a seguir.

(01) E: Eu nunca fiz pudim de leite. E como se faz? Nunca fiz. Estou falando sério, Glorinha.

I: Bom, então eu vou dar, heim! Vê lá heim! Uma lata de leite condensado... mas não vai escrever pelo menos, ora? Lógico, pega AÍ o lápis, Tereza.

E: Manda fundo, vai fundo, vai lá.

I: Uma lata de leite condensado, cinco ovos... (MARTELOTTA, 1994, p. 108).

(02) I: Eu sonho com muitas viagens, não é? Eu gostaria sim de viajar, ir a Europa, passear, não é? Correr... conhecer o mundo aí afora. Isso no caso que o dinheiro desse.

E: E a terra de seus pais?

I: Também. Essa AÍ também (MARTELOTTA, 1994, p. 110). (03) E: Onde você gostaria mais de cantar?

I: Eu queria no Povo na Tevê.

E: E no Sílvio Santos você iria cantar?

I: É, porque AÍ eu já era cantora, não é? Não ia ser vaiada (MARTELOTTA, 1994, p. 111).

(04) I: Era uma vez uma formiguinha que estava andando. AÍ a cigarra tocava violão. AÍ ele falou assim: “vai vim o inverno aí, cigarra, por que você não procura comidinha para você?”. AÍ ela: "Ah, não, o inverno está muito longe. Não vou procurar não, porque eu não vou ficar perdendo tempo. Eu vou tocar minha viola. AÍ o inverno chegou, estava frio, procurando comida. AÍ as formiguinha tudo cantando na casa dela. Bebendo, comendo. AÍ ela bateu na porta. AÍ as formiguinha pegaram ele, botaram o pé dele na água quente. AÍ ele bebeu, dançou, tocou a viola. É só isso (MARTELOTTA, 1994, p. 112).

(05) E: E diz uma coisa... assim que você não gosta quando está passando na televisão e você sai: “Ih, isso eu não quero ver”.

I: É quando dá repórter. Ih, eu não gosto de ver. E: Você não gosta não? Vai fazer o quê? Vai brincar?

I: É. AÍ, quando começa a novela, eu venho... e vejo um pouquinho, depois vou brincar (MARTELOTTA, 1994, p. 115).

(06) E: Qual o personagem que você mais gosta no Sítio? I: Eu gosto da Emília, mais.

E: Da Emília, por quê?

I: Porque ela é mais engraçada, porque ela fala as coisa muito bonitinha, AÍ eu gosto mais dela (MARTELOTTA, 1994, p. 117).

14 É oportuno ressaltar que, por não ser este o foco desta pesquisa, não serão sumarizadas as

Em (01), a informante, ao empregar AÍ, indica o posicionamento espacial do lápis – próximo de seu interlocutor. Trata-se do uso tipicamente dêitico desse item. Já em (02) e em (03), AÍ faz alusão anafórica a elementos mencionados previamente no discurso: a terra dos seus pais, em (02), o que codificaria um uso anafórico espacial; em (03), segundo o autor, uma leitura anafórica temporal do operador AÍ é evidenciada pela presença do elemento JÁ na sentença. Nesse caso, a informante estaria implicando a seguinte leitura: neste momento eu já seria cantora. Em (04), AÍ é empregado para sequenciar os eventos da narrativa contada pelo informante. De acordo com o autor, em alguns casos, AÍ sequencial não é usado propriamente para organizar a sequenciação de eventos perfectivos, mas em uma função sequencial mais ampla, qual seja: introduzir trechos de discurso que expressam informação nova. Dessa forma, em (05) não é o elemento AÍ que indica o momento em que ocorre o evento, mas a oração temporal que o sucede. Em outras palavras, o operador argumentativo AÍ não funciona, nesse dado, como marcador temporal, mas como uma espécie de continuador do discurso, que abre espaço para que novas informações sejam acrescentadas, independentemente da sua relação semântica com o enunciado anterior. Já em (06), o operador argumentativo AÍ inicia um trecho discursivo que expressa consequência em relação ao que foi dito anteriormente. Assim, nessa ocorrência, se o elemento AÍ fosse substituído por uma conjunção conclusiva, o sentido pretendido pelo informante seria mantido: ela fala as coisa muito bonitinha por isso eu gosto mais dela.

Na segunda trajetória, o operador argumentativo AÍ passa a fazer parte do sintagma nominal. AÍ dêitico espacial tem o sentido de “nesse lugar” e aponta para algo próximo ao ouvinte (cf. (01)). O primeiro fenômeno ocorrido nessa trajetória de gramaticalização de AÍ, de acordo com Martelotta (op. cit.), é a perda da indicação de proximidade em relação ao ouvinte, passando o AÍ a indicar espaço de maneira mais genérica, mais abstrata. A amostra (07) ilustra bem esse fenômeno, já que, tanto na fala do entrevistador quanto na do informante, AÍ se refere não apenas a um local próximo ao ouvinte, mas ao bairro onde o informante reside e onde informante e entrevistador estão, assumindo o sentido de “pelas redondezas”.

(07) I: ... então, sei lá, estou acostumado, sabe? Como o ambiente, conhecimento, tudo aqui.

I: Eu nasci aqui, não é? Vi essas casas todas nascerem, essas ruas nascerem, pracinha, igreja. E a maioria que tem AÍ eu conheço tudo mocinha, está casado. Então, elas passam AÍ na praça: sabe quem é essa? É filha de fulano, é neta do beltrano, e tal. Porque o Grajaú é um bairro que o pessoal nem liga muito, sabe? O pessoal vem pra cá... agora, tem muita gente nova, muito edifício de apartamento, e tal... (MARTELOTTA, 1994, p. 115).

Em seguida, AÍ deixa de assumir o seu valor dêitico prototípico, atingindo um ponto mais alto de abstração com relação à noção de espaço a que se refere. Nesse ponto, conforme Martelotta (op. cit.), a medida espacial expressa por AÍ é a própria realidade dos fatos que se apresentam ante os interlocutores (08). A partir desse ponto, AÍ passa a atuar como elemento modificador de substantivos, segundo a classificação adotada pelo autor, integrando o sintagma nominal e deixando de apresentar, na codificação dessa função, sua mobilidade de advérbio espacial.

(08) I: ... tem até uma piada americana AÍ, que diz que o garoto falou: "Poxa o meu pai é bacana, não sei o que, papai me deu uma bicicleta". "Quem é teu pai?". "O fulano de tal". "Ah, foi meu pai no ano passado e tal" (MARTELOTTA, 1994, p. 116).