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6 O PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO DE AQUI, AÍ, ALI E LÁ

6.4 OS PARÂMETROS DE GRAMATICALIZAÇÃO

Como foi apontado na seção 3.2, os parâmetros de gramaticalização propostos por Lehmann (2002) foram concebidos para verificar o grau de gramaticalidade, isto é, de gramaticalização de um item ou de um conjunto de itens na língua. Para o autor, há uma correlação inversa entre autonomia (que, segundo Lehmann, refere-se à liberdade de utilização dos signos) e gramaticalidade: quanto mais gramaticalizado for determinado item menos autônomo ele será, e vice-versa. Conforme Lehmann, o grau de autonomia e, consequentemente, de gramaticalidade de um item apresenta três aspectos principais: peso, coesão e variabilidade.

Os parâmetros podem ser separados em dois grupos de critérios, de acordo com os eixos básicos das operações linguísticas – o eixo da seleção (paradigmático) e o eixo da combinação (sintagmático). No Quadro a seguir, retomado da seção 3.2, apresento os parâmetros e sua relação com os aspectos da autonomia do signo e os eixos das operações linguísticas.

Quadro 3: Os parâmetros de gramaticalização Eixo

Parâmetro Paradigmático Sintagmático

Peso integridade escopo estrutural

Coesão paradigmaticidade ligação

Variabilidade variabilidade paradigmática variabilidade sintagmática Fonte: LEHMANN, 2002, p. 110.

Nas subseções que seguem, discuto, concisamente, a gramaticalização de AÍ, LÁ, ALI e AQUI à luz dos parâmetros retrocitados.

6.4.1 Parâmetros paradigmáticos

6.4.1.1 Integridade

A integridade de um signo é o seu tamanho no âmbito fonológico e semântico. No decorrer do processo de gramaticalização, podem ocorrer processos que diminuem a integridade de um signo, a saber: a atrição (ou erosão) fonológica – a perda sucessiva de traços fonológicos; a dessemantização ou redução semântica – perda gradual de traços semânticos; e a degeneração morfológica – perda da habilidade de se flexionar.

No caso dos marcadores sob enfoque, em seu atual estágio de gramaticalização, não se pode falar ainda em perda de traços fonológicos, uma vez que AÍ, ALI e AQUI permanecem dissílabos, sem haverem perdido sua tonicidade, ao passo que LÁ, embora seja formado por apenas uma silaba, constitui um monossílabo tônico. Entretanto, destaco que ainda há a necessidade de se realizarem testes fonético-fonológicos com o intuito de verificar se tais itens apresentam um acento mais fraco do que os outros elementos do SN, ou não, e se esse acento difere daquele que apresentam quando funcionam como advérbios locativos.

No âmbito semântico, porém, é possível afirmar que houve uma perda no significado espacial original de AQUI (= neste lugar, local próximo ao falante), AÍ (=

nesse lugar, local próximo ao ouvinte), ALI (= naquele lugar, local distante do

falante e do ouvinte) e LÁ (= naquele lugar, local ainda mais distante do falante e do ouvinte), quando esses itens desempenham a função de marcadores de especificidade, já que eles deixam de apontar para um local do mundo real, passando a apontar algo ou alguém no plano discursivo, especificando-o.

Quanto ao plano morfológico, AÍ, LÁ, ALI e AQUI marcadores de especificidade se gramaticalizaram (ou pelo menos estão em processo de gramaticalização) a partir de advérbios, uma categoria linguística que não se flexiona em português. Desse modo, não é possível falar de degeneração morfológica no que concerne a esses itens. Todavia, cabe destacar que eles migram de uma categoria mais ampla e difusa (a dos advérbios) para uma mais restrita e menos abrangente (a dos marcadores de especificidade, mais especificamente a subcategoria dos marcadores de especificidade emergentes).

6.4.1.2 Paradigmaticidade

O parâmetro da paradigmaticidade preconiza um maior grau de autonomia aos itens linguísticos participantes de paradigmas mais abrangentes, e maior grau de gramaticalidade aos participantes dos mais restritos. Em outras palavras, a tendência natural do processo de gramaticalização é a redução do tamanho do paradigma: segundo Lehmann (2002), em um cenário de gramaticalização fraca, os paradigmas tendem a ser formados por muitos membros, ao passo que, em um quadro de gramaticalização forte, a tendência é a de que a quantidade dos membros de determinado paradigma diminua. Assim, as categorias mais gramaticalizadas de uma língua normalmente constituem um paradigma formado por dois membros apenas, constituindo uma oposição binária.

No âmbito da especificação nominal, o paradigma emergente é composto por quatro marcadores – AÍ, LÁ, ALI e AQUI – com frequências de uso díspares, como foi evidenciado na análise quantitativa. Enquanto AÍ e LÁ foram os marcadores emergentes mais produtivos na amostra analisada (este com 99 ocorrências, aquele com 128), ALI e AQUI apresentaram uma distribuição discreta (16 e 05 ocorrências, respectivamente). Esse fato, a meu ver, é passível de dupla explicação: (i) ALI e

AQUI estão ainda em um processo incipiente de integração ao paradigma dos marcadores emergentes, o que poderia explicar a baixa frequência na ocorrência desses itens; (ii) mesmo estando ainda em fase de constituição e regularização, o paradigma dos marcadores pode já estar passando por um processo de

paradigmatização, isto é, redução no tamanho do paradigma, o que o reduziria às

formas AÍ e LÁ somente. De qualquer forma, parece-me ainda precipitado tecer especulações a respeito do futuro desse paradigma.

6.4.1.3 Variabilidade paradigmática

A variabilidade paradigmática diz respeito à possibilidade de, em um dado paradigma, se poder alternar entre um signo e outro(s). Ao longo de uma trajetória de gramaticalização, pode ocorrer um processo de obrigatorificação, mediante o qual a liberdade de escolha entre os constituintes de um paradigma é sistematicamente restringida, fazendo com que um deles se torne amplamente obrigatório nos contextos de uso daquele paradigma.

No que tange ao paradigma emergente da especificação nominal, parece-me prematuro atestar a ocorrência desse processo, uma vez que o paradigma emergente parece ainda estar em um estágio de consolidação, já que há uma distribuição desigual entre os seus membros.

6.4.2 Parâmetros sintagmáticos

6.4.2.1 Escopo estrutural

O escopo estrutural de um item gramatical é o tamanho da construção da qual ele faz parte. De acordo com Lehmann (2002), esse escopo tende a diminuir conforme a gramaticalização avança, por meio de um processo denominado

No caso de AÍ, LÁ, ALI e AQUI, quando atuam como advérbios, seu escopo é a própria oração. Entretanto, quando eles agem como marcadores de especificidade de SN indefinidos, seu escopo é o núcleo do sintagma ao qual eles se referem e ao qual acrescentam um traço de especificidade, o que indica que, na trajetória de gramaticalização de cada um desses itens – de advérbio a marcadores de especificidade – eles passaram pelo processo de condensação, tendo seu escopo estrutural diminuído.

6.4.2.2 Ligação

A ligação, consoante Lehmann (2002), refere-se ao grau conexão de um signo com outro com o qual mantém uma relação sintagmática. Essa conexão pode variar da simples justaposição à amalgamação. Dessarte, em um cenário de gramaticalização fraca, certo item linguístico pode ser livremente deslocado, ao passo que, em um estágio de gramaticalização forte, a ligação entre dois signos aumenta mediante um processo denominado coalescência.

No que concerne à gramaticalização de AÍ, LÁ, ALI e AQUI como marcadores de especificidade emergentes, acredito que a ligação desses itens com o núcleo do SN aumentou se comparada com a relação que eles estabelecem quando atuam como advérbios locativos, já que esses itens tendem a normalmente seguir o núcleo do SN, revelando uma tendência de forte integração com ele, conforme pode se depreender da análise quantitativa que apresentou o seguinte resultado: 93,8% das ocorrências de AÍ, 93% das de LÁ, 87,5% das de ALI e 80% das de AQUI se dão em SN em que há essa integração.

Todavia, ainda é necessária a realização de testes prosódicos, a fim de que seja possível determinar com precisão se essa integração dos marcadores com o núcleo do SN também se verifica no âmbito fonológico, isto é, se os marcadores apresentam um acento mais fraco em relação ao núcleo do SN, o que os caracterizaria como clíticos.

6.4.2.3 Variabilidade sintagmática

A variabilidade sintagmática de um signo é a possibilidade de deslocá-lo ao longo da construção da qual ele é parte integrante. De acordo com Lehmann (2002), a variabilidade sintagmática diminui conforme a gramaticalização aumenta. Dessa forma, quanto mais gramaticalizado estiver um item linguístico, mais fixa será sua posição em uma determinada construção. Lehmann chama esse processo de

fixação.

No que diz respeito a AÍ, LÁ, ALI e AQUI, esses itens, ao se gramaticalizarem como marcadores de especificidade, perdem a mobilidade típica dos advérbios – que podem ocorrer no início ou no fim da oração – e ganham uma posição relativamente fixa no interior do SN: após o núcleo do sintagma, nunca o contrário (cf. seção 6.5, a seguir). Tal fato corrobora o chamado ajuste posicional: de acordo com Lehmann (2002), conforme a variabilidade sintagmática de um item gramaticalizado diminui, sua ligação com determinada classe gramatical que passa a ser modificada gramaticalmente por ele se torna mais estreita. Além disso, conforme apresentado na seção 5.1.2, e retomado na seção anterior, ainda que, em algumas ocorrências na amostra, esses itens permitiram a existência de material interveniente entre eles e o núcleo do sintagma, a tendência é a de que eles se liguem diretamente ao substantivo.