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4 CRISES E EMERGÊNCIAS PARADIGMÁTICAS NA E DA EDUCAÇÃO FÍSICA

4.4 A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

A esta altura de nosso discurso, parece ser evidente a emergência de uma nova educação física escolar, decorrente de diversas fontes, tanto aquelas expressas pelas legislações a vigor em nosso país, que a caracterizam como uma área de conhecimento presente na escola, tanto por aqueles novos argumentos delineados por diferentes estudiosos da área, que denunciam a insuficiência de uma abordagem tradicional de educação física, baseada em um modelo moderno de ciência, de conhecimento, de currículo, de educação, de corpo, de corporeidade.

Assim, no que se refere a esta última evidência, surgem propostas como a educação motora ao invés da educação física, enquanto ramo pedagógico da ciência da motricidade humana, em Manuel Sérgio, ou, mesmo sem a mudança de termo, a necessidade de estruturá-la em um paradigma “neomoderno” ou da “razão comunicativa”, em Paulo Evaldo Fensterseifer, com a ajuda, neste caso, da concepção crítico-emancipatória de Elenor Kunz.

O que parece existir em comum a quase todas as novas perspectivas para a vertente pedagógica da educação física é o questionamento do conceito de homem, que se torna elemento central: a necessidade de se partir de uma idéia de sujeito dualista/dicotômico estruturado numa ciência moderna e num currículo moderno, que privilegia a cognição e a mente em detrimento da corporeidade e do corpo, em direção a um conceito complexo de ser humano, que leva em consideração a complexidade corpo-alma-natureza-sociedade, pautado mais nas rupturas científicas e curriculares emergentes do que em suas versões modernas, solidificadas e cristalizadas cultural e socialmente falando. Nesse sentido, Moreira (1995) aponta que a educação motora só será possível no contexto da educação escolar a partir de uma revisão de valores que chame a atenção para:

• o corpo-objeto da educação física ceda lugar para o corpo-sujeito da educação motora;

• o ato mecânico no trabalho corporal da educação física ceda lugar para o ato da corporeidade consciente da educação motora;

• a busca frenética do rendimento da educação física ceda lugar para a prática prazerosa e lúdica da educação motora;

• a participação elitista que reduz o número de envolvidos nas atividades esportivas da educação física ceda lugar a um esporte participativo com grande número de seres humanos festejando e se comunicando na educação motora;

• o ritmo padronizado e uníssono da prática de atividades físicas na educação física ceda lugar ao respeito ao ritmo próprio executado pelos participantes da educação motora (MOREIRA, 1995, p. 101-102).

Do questionamento de um corpo-objeto, de um sujeito dicotômico hiperdicotomizado no ambiente escolar, em que a educação física sim se preocupa com o corpo – físico, biológico, naturalizado, para o desvelamento de uma nova concepção de corpo, um corpo-sujeito, que corre o risco de se tornar-se corpo mercadoria e corpo-rascunho com o advento da pós-modernidade (COELHO; SEVERIANO, 2007), para o bem e para o mal, a educação motora reivindicaria sua

presença no contexto escolar, supondo transcender a educação física tradicional pela transcendência do e no conceito de sujeito e de corpo.

Segundo Gaya (2006), a escola nega, de forma histórica, o corpo: corpo vivido, repleto de sentimentos, emoções e razões. Apesar de portar um discurso tão rico em intenções e inovações e que tanto exalta relações de necessária interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e complexidade, o pensamento pedagógico contemporâneo permanece míope em relação às questões do corpo. O corpo se tornara subalterno à razão, a uma educação intelectualista, advinda do iluminismo. Não seria momento de se reinventar os corpos por meio de uma pedagogia da complexidade? Essa é a utopia de Gaya! Partindo da hipótese de que o conhecimento acontece entre o sujeito e objeto, entre o ideal e o real, entre a experiência e a razão (hipótese construtivista), por meio da ação do e sobre o corpo, uma pedagogia da complexidade não poderia mais suportar o dualismo do corpo como simples extensão da mente.

Se bem é verdade que Platão, em Fédon (1972), deu ao corpo o significado de prisão da alma; Descartes, em Meditações (1973), conferiu-lhe o sentido de um relógio; Lock, no Ensaio Acerca do Entendimento Humano (1973), deu-lhe o sentido de uma tábula rasa; se hoje filósofos pós-humanistas anunciam para breve a obsolência do corpo humano, por outro lado, encontramos em autores clássicos como Husserl, Heidgger, Espinosa, Merleau-Ponty e contemporâneos como Michel Serres, Morin, Atlan e Damásio referências sólidas para a reinvenção dos corpos humanos (GAYA, 2006, p. 256-257).

Nessa perspectiva, toda a configuração curricular e de organização do espaço escolar teriam de ser reformuladas, porque educar tem tudo a ver com o corpo. Corpo que, pela pluralidade de sentidos e formas, configura-se em fonte privilegiada para exercitar a dialética e a dialógica inerentes ao pensamento complexo. Rumo a uma “escola cultural” – que supere o modelo tradicional eminentemente enciclopédico e intelectualista herdado do Iluminismo; que vá além da emancipação individualista de diferentes sujeitos a partir exclusivamente das suas necessidades e potencialidades psicológicas e biológicas excluídas de um contexto cultural; que caminhe por meio de uma pedagogia de integrações de conhecimentos e de práticas, na qual possamos tratar o humano por inteiro: na complexidade de sua corporalidade, o humano de corpo e alma, natural e cultural (GAYA, 2006).

Da mesma forma com que uma “velha” ciência entra em crise e emerge uma “nova” ciência, que põe em xeque os pilares pelos quais ela erguera-se e solidificara-se, do mesmo modo pelo qual um “velho” currículo é posto em questão por uma “nova” concepção de currículo, a educação física encontra sua “rival”, que, renascida das cinzas, almeja transcendê-la. Na mesma perspectiva que a ciência nova questiona a anciã, que o currículo jovem rejuvenesce a partir do velho, a educação física seria a idosa senhora que, prestes a morrer, anunciaria a sua falência ou insuficiência diante de novos questionamentos, novas reflexões, novos papéis. Não são negadas as contribuições advindas de uma “velha” ciência, de um “velho” currículo, de uma “velha” educação física, mas são almejadas outras contribuições que satisfaçam os novos entendimentos que temos de ciência, de currículo/educação e de educação física. Nesse sentido, a educação motora transcenderia a educação física na medida em que negaria a aptidão física como referência fundamental para orientar o planejamento, o controle e a avaliação desta disciplina escolar; na medida em que destacaria uma idéia de sujeito complexo, que é corpo e mente, matéria e espírito, que apreende o mundo, portanto, pela/na reflexão e ação num incessante circuito retroativo-recursivo; na medida em que visaria um processo de ensino-aprendizagem rico em relação as diversas manifestações construídas social, cultural e historicamente que dizem respeito à educação motora (jogos, ginástica, esportes, lutas, danças, etc); na medida em que promovesse a formação do aluno a partir de uma reformulação de seu pensamento, a partir de uma nova concepção de ciência e de educação/currículo. O questionamento da tradicional educação física realizado por diversas teorizações e autores da área, como vimos anteriormente, não seria o pré-anúncio da educação motora? A educação motora está em vias de constituir-se, por isso às vezes torna-se tão difícil discorrer sobre ela.

Por não serem negadas as contribuições modernas, pelo contrário, segundo um paradigma neomoderno que encontra na própria modernidade os padrões normativos que nos possibilitam comparar o existente com o desejável, isto é, criticar a modernidade real com os critérios da modernidade ideal (ROUANET apud FENSTERSEIFER, 2001), a educação física na crise da modernidade precisa pautar-se em um modelo de razão dialógica que compreende também os aspectos prático-político e estético-expressivo. O que é o mesmo que dizer que a educação física poderá contribuir com o projeto neomoderno quando

[...] no esforço coletivo da aprendizagem mediada linguisticamente, primeiramente possibilite aos seus sujeitos um domínio cognitivo- instrumental das atividades vinculadas à cultura corporal de movimento; segundo, que entendam a normatividade social que condiciona as atividades referidas, para que com isso possam interferir na construção/reconstrução dessas normas; terceiro, que na vivência destas atividades tenham garantido o espaço de manifestação de sua sensibilidade estético-expressiva, condição de afirmação das identidades pessoais (FENSTERSEIFER, 2001, p. 279-280).

Nesse sentido, de acordo com o autor anteriormente referido, a educação física, enquanto componente do sistema educacional, contribuirá com o processo emancipatório humano na medida em que superar suas proposições “tradicional” (prática cega) e racionalista (discurso sobre o movimento) ou irracionalista (espontaneísmo/misticismo que toma o movimento como dado bruto), apoiando-se em Ghiraldelli Jr. Ao priorizar as “estruturas simbólicas do mundo da vida” (cultura, sociedade e personalidade), de que nos fala Habermas, desenvolvidas por uma racionalidade comunicativa, a escola poderá reverter o processo de “colonização” do mundo da vida pelo sistema – uma das patologias da modernidade, a favor de preservar/restabelecer a formação de competências argumentativas.

5 OS CURRÍCULOS DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE PROFESSORES EM