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3 CRISES E EMERGÊNCIAS PARADIGMÁTICAS NO E DO CURRÍCULO

3.4 C RISES E EMERGÊNCIAS NO CAMPO DA TEORIA CURRICULAR : RESUMO DE SUA EVOLUÇÃO E SEU ATUAL ESTADO

Tomaz Tadeu da Silva, em entrevista para a revista Currículo sem Fronteiras (2002), nos fala sobre o campo da teoria curricular atual, que, segundo ele, passa por uma fase de relativa estagnação. Momento caracterizado dessa maneira, a partir dos anos 90, devido, um dos fatores, há repetição pouco criativa de questões e perspectivas (um dia inovadoras e até mesmo revolucionárias) que, por falta de desafio e de crítica, acabaram por virar uma nova ortodoxia, sem energia e inventividade. Na tentativa de evitar com que teorias e paradigmas sejam repetidos mecanicamente sem o vigor, a energia e a criatividade do momento de sua criação, Silva nos sugere dois princípios interconectados: (a) o de justamente evitar a acomodação, a recitação de catecismos, o culto de gurus, e (b) o de não importar ou aplicar teorias de maneira superficial e mecânica, ou ainda, da leitura e interpretação simplistas de teorias extremamente complexas.

Passados dois períodos principais de uma longa produção intelectual criativa, inovadora e vigorosa, sobre o contexto educacional e curricular, como vimos: (a) final dos anos 60, com os franceses traçando perspectivas educacionais de análise mais gerais e com os anglo-saxões propriamente

envolvidos, de maneira mais direta, na área da teorização curricular (onde fazer teoria do currículo era sinônimo de fazer sociologia marxista do currículo), e (b) final dos anos 80 e começo dos anos 90, com a “revolução” combinada da influência dos Estudos Culturais, do pós-estruturalismo e do pós-modernismo; o quieto ou “temido” momento pode ser encarado, de acordo com Silva (2002), como a conseqüência inevitável da consolidação de um novo paradigma, seguindo o raciocínio kuhniano.

Mais do que um período de relativa estagnação, o campo do currículo nos anos 90 (mais precisamente nos últimos anos do final de século passado), para Barry Franklin apud Moreira (2001), pode ter mesmo deixado de existir. Franklin, em seu trabalho apresentado na reunião anual da American Educational Research Association (AERA), em Montreal – Canadá, intitulado “Curriculum Studies: State of the art, 1990s”, nos indica as razões de suas conclusões pessimistas e apressadas (como diria Moreira) sobre o estado da arte do campo do currículo nos anos noventa. Como professor de currículo e ensino em cinco universidades americanas, ele argumenta que os cursos de formação de professores oferecidos pelas universidades, tais como estão estabelecidos ou estruturados atualmente, dificilmente poderão constituir propostas integradas (pela dispersão encontrada no conjunto de disciplinas pelas quais os departamentos se responsabilizam, pelo razoável desinteresse à formação de professores, pelo desenvolvimento de pesquisas que pouco têm a ver com ensino ou formação docente) e, conseqüentemente, o currículo talvez não mais exista como um campo articulado e coerente de pesquisas e práticas.

É exatamente a este respeito a preocupação de Franklin bem como a de Moreira (2001): a tendência existente, entre os teóricos desta área, de voltarem-se para discussões abstratas em vez de procurarem entender a realidade da escola e da sala de aula. Tomando-se como partida tal preocupação, Moreira realizou uma pesquisa com renomados pesquisadores brasileiros, de várias universidades do país, membros do grupo de trabalho (GT) de currículo da ANPEd (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação), na tentativa de perceber como são hoje abordados, nos distintos espaços acadêmicos, os estudos de currículo. Duas considerações finais deste trabalho são interessantes e propícias para a nossa análise e discussão sobre o (atual) campo da teorização curricular: (a) a maioria dos especialistas considera que o campo do currículo no Brasil desfruta hoje de visibilidade e prestígio crescentes, tanto no incremento de nossa produção

teórica como da influência estrangeira nessa produção, e (b) avança-se na produção de conhecimento teórico, porém, para a maioria dos entrevistados, isto acontece sem que a prática sofra modificações substantivas. Referem-se, portanto, os especialistas, neste segundo caso, às tensões envolvidas na relação teoria-prática curriculares – o que confirmam as preocupações de Franklin e Moreira.

Em relação à primeira constatação, é interessante observarmos a seguinte situação: enquanto Silva (2002) e Franklin, por um lado, declaram que o campo do currículo passa por um momento de estagnação, e até mesmo tenha deixado de existir (ou esteja explicitamente em um momento de crise) de modo significativo e substancial (no que se refere a uma produção teórica criativa e inovadora, ou ainda, segundo Franklin e Moreira, de contribuírem “praticamente”); por outro lado, pesquisadores/especialistas brasileiros desta área de estudo ou investigação motivam-se com o incremento de nossa produção teórica e da influência estrangeira nessa produção, do prestígio e visibilidade crescentes da produção intelectual neste campo em particular. Essa situação é um tanto estranha, não é? Enquanto uns confirmam os anos 90 como um espaço de tempo silencioso, e até mesmo dramático, para a vivência e sobrevivência do campo curricular; outros se alegram dizendo que há uma produção teórica “consistente” que permite visibilidade e prestígio a este campo? Pode ser que isto possa ser explicado por Silva, quando ele nos alerta para o fato de que os últimos doze anos têm se caracterizado como um período de repetição dos mesmos temas, conceitos e críticas da efervescência teórica do final dos anos 60 e 80.

No que se refere à segunda e última constatação que destacamos no trabalho de Moreira com os especialistas brasileiros do campo do currículo, nota- se claramente a existência (e muitas vezes persistência) de uma relação frágil entre a teoria e a prática curriculares. Ligação que se torna evidentemente frágil devido a tendência que nós temos de tomar como ponto de referência e de partida aspectos teóricos, para depois vermos se conseguimos adaptá-los ao lado prático, a nossa realidade, ao nosso contexto. Isso faz com que acreditamos em leis universais e transcendentais, traçadas e explicadas pela teoria (inclusive educacional), adaptáveis ao local, a experiência individual e coletiva de pequenos grupos sociais. Este processo, o de transportar a teoria para a prática, é extremamente complexo e perigoso, pois nesse meio termo podem acontecer diversas coisas: podemos interpretar de maneira simples teorias complexas, tomando como “verdadeiras” e

“inquestionáveis” palavras ou partes isoladas destas; podemos tomar como curriculares e realistas, teorias que são utópicas, e que se constituem em meros programas ou prescrições baseados em um modelo de administração científica, ou numa eficiência comportamental ou social.

De fato, em Goodson (1995) encontramos considerável semelhança com a preocupação sobre a dicotomia existente entre teoria e prática. Porém, nesse particular, representado pela distinção entre “currículo como fato” e “currículo como prática” (conforme a classificação de Young/1977), ou ainda, definição pré-ativa de currículo/currículo escrito e fase interativa de currículo/currículo ativo, respectivamente. Essa dicotomia, ao relevarmos o que havíamos falado no parágrafo anterior, tem levado muitos reformistas a ignorarem as definições pré- ativas por as conceberem desconexas ao “currículo como prática”, considerando-as um legado intelectual e político do passado. Goodson, entretanto, apoiando-se em Young, argumenta contra estas concepções da dicotomia que priorizam um ou outro “lado da moeda” e a favor da legitimação da relação teoria-prática, ou, no nosso caso, “currículo como fato” e “currículo como prática”. Desse modo, ele nos chama a atenção para situarmos historicamente os problemas da educação contemporânea, e que somente dessa forma somos possibilitados de entendê-los e controlá-los. Isso quer dizer que devemos compreender os parâmetros anteriores à prática, os conflitos e as lutas em torno da definição pré-ativa de currículo. A prática pode ser compreendida recorrendo-se a elementos teóricos, mas, como nos alerta Sacristán apud Moreira (2001), não se deve recorrer somente a tais elementos teóricos para poder compreendê-la, porque a realidade é resultado da interação de múltiplas forças e condicionamentos, não sendo o efeito nem o resultado exclusivo de aplicação de teorias científicas.

Para Moreira (2001), as declarações um tanto dramáticas e pessimistas de Franklin sobre o campo curricular nos anos 90, que decretam a falência desta área de teorização e prática educacional, podem não ser prudentes, ou serem, ao contrário, um tanto apressadas. Sendo assim, ele argumenta que a História das Ciências, de modo particular, revela que os períodos de crise são férteis por abrirem novas possibilidades ao pensamento, permitindo o surgimento de alternativas teóricas e de novas práticas (apoiando-se em Marcondes). Aqui, podemos também considerar o que Silva (2002) nos diz sobre o mesmo assunto: apesar de chamar a atenção para a situação atual do campo do currículo ser de

relativa estagnação (ou melhor: estar relativamente estagnado), Silva não tem uma percepção tão pessimista, como Franklin a tem, sobre o presente e o “futuro” curriculares: pode ser que tal momento seja necessário para a inevitável consolidação de um novo paradigma.

Podem ser que as considerações, de certa forma otimistas, de Silva, sobre novas teorias ou paradigmas em um futuro próximo (ou não tão próximo assim) que contribuam significativamente para o nosso pensamento e prática educacionais e curriculares, sejam cabíveis e passíveis de acontecerem. Isso porque, como um estudioso da educação e do currículo (onde a sua história de vida pessoal e profissional confunde-se com a própria história e teoria do currículo), Silva deve ter claro que tais momentos de relativa estagnação já foram declarados na história e no campo do currículo por diversos outros autores desta respectiva área de teorização, e que foram superados, no caso a seguir, a partir das contribuições dos Estudos Culturais, dos insights pós-estruturalistas, das idéias e princípios pós- modernos.

O campo do currículo está moribundo. Ele está incapaz, por sua presente metodologia e princípios, de continuar seu trabalho e contribuir significativamente para os avanços da educação. Ele exige novos princípios... uma nova visão... de seus problemas... [e] novos métodos apropriados aos... problemas. (SCHWAB apud DOLL Jr., 1997, p. 177).

Este pronunciamento de Joseph Schwab foi bastante difundido quando de sua origem, e até hoje continua forte e bem disseminado, a ponto de não ser difícil encontrá-lo em materiais que se preocupam em relatar a história e teoria curriculares. Logo abaixo dele, Doll Jr. (1997) afirma que atualmente o campo do currículo não está mais moribundo e que uma parte totalmente nova no campo surgiu nas décadas seguintes a essa declaração de Schwab, alicerçada e reforçada por debates endêmicos sobre a natureza e propósito do currículo: Doll Jr. certamente nos fala de novas visões, princípios, problema e métodos baseados e apresentados pelo pós-modernismo.

Diante de tais constatações, voltando-nos para Silva (2002), nota-se hoje um certo esgotamento e descrédito das chamadas teorias críticas, sobretudo da ênfase por elas traçadas de uma filosofia da consciência e de suas concepções substancialistas e/ou essencialistas de sujeito e de ser humano (mesmo ao entendê-

las como perspectivas importantes que ampliaram a nossa compreensão sobre educação e currículo). Preocupado com a repetição pouco criativa de questões e perspectivas educacionais críticas (onde: no campo propriamente intelectual e teórico de novos pretendentes – pós-críticos, pós-modernos, pós-estruturalistas – elas têm se limitado a uma estratégia puramente defensiva; e, no campo da política e da prática, relativamente às novas configurações sociais, políticas e econômicas, elas têm se limitado a uma simples reiteração das mesmas e velhas críticas), portanto, com a situação atual do campo da teoria curricular, a fim de contribuir futuramente a este campo, Silva tem se dedicado a desenvolver as implicações do “pensamento da diferença”, de Jacques Derrida e Gilles Deleuze, para a teoria educacional. É nesse sentido, e fundamentado nessas bases teóricas, que ele acredita contribuir ao processo de construção e produção histórica, cultural e social do currículo, neste momento de início de século.

Em outro trabalho sintetizado por Veiga- Neto e Macedo (2008) e encomendado para a 30ª reunião anual da ANPEd, em 2007, pelo coordenador do GT currículo, podemos perceber mais especificamente como os grupos de pesquisa das nossas universidades estão lidando com os conceitos de moderno e pós- moderno – termos que parecem representar o nosso trabalho de forma mais concisa, na medida em que as crises e emergências de paradigmas na ciência, na educação/currículo e na educação física estão intimamente ligadas aqueles períodos denominados moderno e pós-moderno, em que o último parece condensar as decadências e os avanços conquistados em relação ao primeiro. Dessa forma, apesar da pouca participação ou representatividade diante do universo total de grupos de pesquisa que parecem existir no campo do currículo propriamente dito, Veiga-Neto e Macedo chegam as seguintes constatações:

[...] Alguns apresentam clara contraposição ao projeto da Modernidade, geralmente caracterizada de maneira uniforme, em sua versão cartesiana. Outros tentam incorporar as preocupações trazidas pela pós-modernidade a um legado que trazem das teorias críticas, por vezes considerando esse processo uma espécie de desdobramento ou mesmo de avanço de suas pesquisas, por vezes explicitando mais claramente uma ruptura. Outros, ainda, passam ao largo da polêmica moderno x pós-moderno, assumindo posições mais claramente pós-modernas ou vinculando-se ao pós- estruturalismo (VEIGA-NETO; MACEDO, 2008, p. 11).

De qualquer forma, a crise da modernidade parece ter impactado os discursos e concepções de todos os grupos no que se refere ao lugar de destaque que a subjetividade conquista, em sua versão complexa, dividida, sobredeterminada, construída discursivamente, ao invés da racionalidade como esteio de um julgamento ético e político ou mesmo da subjetividade unificada e autoconsciente. Nesse sentido, adotar uma postura de vigilância epistemológica seria a correta: “Uma vigilância que, longe de pretender fixar significados às nossas palavras e sentidos aos nossos enunciados, precisa deixar bem claro, para nós e para quem nos lê e nos escuta, sobre o que, afinal, estamos falando” (VEIGA-NETO; MACEDO, 2008, p. 12).