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A Epidemia do Crack e as “Famílias Esfareladas”

No documento Romanini TCC Psicologia 2009 (páginas 44-53)

CAPÍTULO 2 O DESENVOLVIMENTO DAS SOCIEDADES MODERNAS E

3.3 A Epidemia do Crack e as “Famílias Esfareladas”

A família contemporânea sofre transformações em muitos aspectos, principalmente nas relações intergeracionais e de intimidade, caracterizada pela maior expressão dos afetos e busca de autonomia dos seus membros, visando a construção subjetiva individual. François de Singly (2007) fala da família contemporânea como uma instância caracterizada por três elementos: uma grande dependência em relação ao Estado; uma grande independência em relação aos grupos de parentesco; e uma grande independência de homens e mulheres em relação a esta família.

Observa-se que à medida que há um crescimento do peso do fator afetivo na regulação das relações intrafamiliares, ocorre também uma separação progressiva do espaço público e do espaço privado. Aqui situa-se o paradoxo da família moderna: cada vez mais “privada” e cada vez mais “pública”. “A privatização incontestável da família moderna é, de alguma forma, uma ilusão porque é acompanhada de uma grande intervenção do Estado e das instituições” (SINGLY, 2007, p. 33).

A família caracteriza-se, também, pelo modo específico de viver a diferença de gênero que implica as relações entre as gerações e o parentesco. A partir do movimento de individualização da vida familiar, as relações entre pais e filhos ganham respeito e flexibilidade e há uma maior atenção e investimento de recursos em relação à saúde e à educação dos membros da família. Em meio a mudanças culturais e sociais, a família empenha-se em reorganizar aspectos de sua realidade que o meio sócio-cultural-histórico vai alterando. Nesse movimento de reorganização a família, por um lado, apresenta uma grande gama de mudanças e, por outro lado, ela tem estado em evidência por ser um espaço privilegiado do desenvolvimento e estabelecimento da vida emocional de seus componentes (REIS, 2007).

O que não pode ser negado, portanto,

é a importância da família tanto ao nível das relações sociais, nas quais ela se inscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus membros. É na família, mediadora entre o indivíduo e a sociedade, que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele. É a formadora da nossa primeira identidade social (REIS, 2007, p. 99).

Destacada a inegável importância da família na constituição dos sujeitos e os processos de transformação que esta vem passando, alguns autores falam em “crise da família”, “morte da família” ou ainda “desinstitucionalização da família” (FONSECA, 2005). Essa “crise” da instituição familiar a coloca em evidência não apenas nos estudos de grandes pesquisadores, mas também nos meios de comunicação. A “midiação da família” torna público aquilo que era privado, o que coloca a família numa posição mais passiva em relação às intervenções do Estado e das instituições, como a própria mídia.

A família, ultimamente, tem sido foco de reportagens e matérias associadas ao tema drogas. Com o fenômeno denominado pela mídia de “a epidemia do crack”, o papel da família é questionado e posto em pauta de discussão. Especialistas ensinam como detectar precocemente o uso de drogas entre os membros, principalmente dos filhos, como a família deve comportar-se diante da descoberta e como ela pode ajudar na prevenção e tratamento de membros usuários de drogas. E não é somente o papel da família que é questionado, mas a sua estrutura. Fala-se muito em famílias desestruturadas sem deixar explícito o significado dessa categorização. Por isso, torna-se fundamental analisar a relação entre mídia, drogas e família e buscar uma compreensão crítica sobre como esses processos podem construir ou modificar a nossa percepção sobre esses fenômenos tão complexos.

A análise formal das matérias analisadas (ZERO HORA, 2008) indica um discurso consoante com a concepção defendida pela Organização Mundial de Saúde de que a dependência química é considerada uma doença, e que hoje há consenso sobre a predisposição genética ao vício e os problemas psiquiátricos que podem estar associados. Além disso, muitos fatores podem se somar no caminho que leva às drogas, inclusive o ambiente familiar. Na idéia inicial de que todos estão expostos à epidemia, ocorre uma universalização (THOMPSON, 2007) do problema.

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Porém, no decorrer das reportagens, nota-se um movimento sutil da universalização à questão da vulnerabilidade. Há grupos de indivíduos mais vulneráveis que outros.

Ao apresentar o crack como “um ser”, com vida própria que „contamina‟ as pessoas e as famílias, cria-se um inimigo. Esse inimigo é comum a todos à medida que a epidemia seja considerada um problema de toda a população. Com o inimigo em destaque, a mídia convoca a família para assumir a sua posição no combate a esse mal. A convocação é feita também em termos universalizantes, chamando as famílias e a população a combater a epidemia do crack, o que é possível através da utilização da estratégia ideológica denominada „expurgo do outro‟ (THOMPSON, 2007).

Em uma das matérias a família ocupa lugar de destaque. Essa matéria inicia com o “teste da prevenção”. Você colabora decisivamente para evitar que seu filho

ou familiar se torne dependente químico? (ZERO HORA, 06 de Julho de 2008, p.

33). A pergunta convoca o familiar a responder as perguntas e a “conferir seu desempenho”. O teste consiste em quatro perguntas: se a pessoa se sente à vontade para fumar, consumir bebida alcoólica ou recorrer à automedicação quando está em casa com a família; se ela sabe os efeitos e os danos causados pelas drogas e se ela se mostra aberta para discutir o tema com o filho; se a pessoa sabe o nome da paquera do filho no colégio ou o nome de alguém com quem o filho teve alguma desavença; e se a pessoa sabe onde o filho está, com quem e o que está fazendo (ZERO HORA, 2008).

Indiretamente as perguntas já indicam qual a resposta “correta”. Se a pessoa está de acordo com as respostas, o desempenho é bom. Será que é possível medir o desempenho dos pais? Baseado em que essas perguntas foram formuladas? Em qual modelo de família? Através da padronização (THOMPSON, 2007), os pais são convocados, ao responder as questões, num padrão de „bom pai‟ ou „boa mãe‟, à medida que eles correspondem às expectativas de prevenção propostas pela matéria. Parece-nos que esse tipo de testagem serve mais para acirrar a culpabilização materna ou paterna, muito comum na contemporaneidade. Nesse sentido, Fonseca (2005) alerta que a relação indivíduo-família não pode ser pensada da mesma forma em todo lugar, pois a própria noção de família varia conforme a categoria social com a qual estamos lidando.

Logo abaixo desse teste há um quadro de dicas: dê o exemplo, informe-se e

promova o diálogo, esteja próximo e dê limites - ou seja, as respostas das perguntas

do teste acima. Embora as dicas sejam bem gerais, está escrito “confira como agir em cada caso”. A receita é passada sem a preocupação de que os ingredientes estejam disponíveis. Da mesma forma ocorre com o quadro intitulado “Papel de

familiares na recuperação” (ZERO HORA, 06 de Julho de 2008, p. 33): atenção aos sinais, buscar o diagnóstico, admitir o problema, incentivar a busca de tratamento, promover mudanças e superar as culpas. Insere-se aqui, através do “teste da

prevenção” e das dicas aos pais, a estratégia ideológica denominada racionalização (THOMPSON, 2007). Com essa cadeia de raciocínio estabelecida, a família deve tomar somente para si a responsabilidade de prevenir o uso da droga, como se ela fosse um sistema isolado, desconectado do meio sócio-histórico.

Além disso, a racionalização pode servir a propósitos que são desconhecidos pela maior parte da população: alguns políticos sugerem que as insuficiências do serviço de saúde pública não devem ser resolvidos com mais investimentos no setor, mas com políticas sociais que “fortaleçam” a família (FONSECA, 2005).

A lógica que apresenta essas duas políticas - investimento nas famílias e investimento no serviço de saúde pública -, como mutuamente excludentes, é obviamente absurda. Mas o pior é que muitas vezes a noção de que a família é o principal responsável pela saúde de seus membros vem antes de qualquer política efetiva de “fortalecimento” familiar. Desse jeito, o acento na família arrisca ficar como nada mais do que uma máxima moralista, um álibi, que desculpa a falta de empenho político num programa realmente integral de saúde (FONSECA, 2005, p. 58).

A racionalização, nesse caso, nos remete à outra estratégia comumente utilizada: o deslocamento. Com a utilização do deslocamento, “um termo costumeiramente usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, e com isso as conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro objeto ou pessoa” (THOMPSON, 2007, p. 83). Ora, à medida que o foco recai na família e que se fala em „fortalecimento familiar‟ - uma bela expressão, que convoca as pessoas e produz sentimentos positivos -, o sistema de saúde recebe, por conseqüência, também uma valoração positiva. Ou seja, investir na „prevenção familiar‟ é investir em políticas públicas, quando, na verdade, o que se quer é deslocar a atenção do leitor para a falta de investimentos nesse setor.

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A epidemia do crack, primeiramente concebida como algo universal, passa a sofrer um processo de fragmentação. Através da fragmentação e/ou diferenciação, relações de dominação podem ser mantidas não unificando as pessoas numa coletividade, mas segmentando os indivíduos e grupos através da ênfase dada às distinções, diferenças e divisões entre eles (THOMPSON, 2007). Agora que o inimigo comum já está posto, não se fala mais em famílias de um modo geral - surge a categoria família de risco. As famílias de risco estão associadas principalmente àquelas em que há uma ausência da função paterna. Associados à ausência da função paterna, há outros comportamentos de risco, tais como pais superprotetores

e/ou hiperprovedores, inversão de papéis e vício de pais para filho (ZERO HORA, 06

de Julho de 2008, p. 33). Há aqui, uma dinâmica da ausência, pois só é problema enquanto ausente.

Em entrevista ao Zero Hora (2008), uma terapeuta de uma clínica da Capital gaúcha observa que a dependência química é uma doença com múltiplas causas (inclusive predisposição genética e transtornos psiquiátricos associados, como bipolaridade, transtorno de ansiedade e depressão) que afeta não apenas o viciado, mas todos ao redor. “Mas assim como uma família saudável adoece com a droga,

famílias desestruturadas podem levar às drogas, principalmente os jovens” (ZERO

HORA, 09 de Julho de 2008, p. 37). Aqui encontra-se o argumento principal relacionado às famílias: há dois tipos básicos de família - a saudável e a desestruturada. A normal e a patológica. Os autores da matéria não definem e não dão os limites entre um tipo e outro. Levando em consideração as análises realizadas, pode-se pensar em alguns indicadores: a família saudável é aquela família tradicional, com pai, mãe e filhos, estabilizada emocional e economicamente; a família desestruturada comporta vários outros „subtipos‟ - monoparentais (geralmente só a mãe é a cuidadora), recompostas, etc.

Encontra-se aqui um detalhe que deixa de ser um detalhe. Nas matérias lidas e analisadas, as famílias pertencentes às classes média e alta são famílias compostas por pai, mãe e filhos - é a família saudável. E as que pertencem às classes baixas ou populares, geralmente são compostas apenas pela mãe e filhos (monoparentais) ou por mãe, padrasto e filhos (recompostas) - é a família desestruturada. Olhando por esse ângulo, chega-se a uma conclusão muito séria: as famílias de classe alta adoecem em função do familiar usuário de drogas (crack),

elas são as vítimas do crack; enquanto que as famílias de classe baixa, por serem desestruturadas, levam seus filhos ao uso de drogas. Ou seja, nas famílias de classes mais favorecidas economicamente não há maiores justificativas para o uso - predisposição genética, transtornos psiquiátricos associados e a curiosidade pela droga -, enquanto que nas famílias de classes desfavorecidas todas essas causas valem, mas ainda tem o ambiente desfavorável e a família que „induz‟ ao uso - usa porque é pobre mesmo!

A matéria ainda traz um terceiro tipo de família, as chamadas famílias „codependentes‟. Nessas famílias “as mudanças de humor, a agressividade e os

dramas cotidianos de um viciado acabam levando os familiares a uma dependência emocional. Eles ficam permanentemente alertas, preocupados mais com o dependente químico do que com eles mesmos, resignando-se a condicionar seu estado de espírito ao do viciado. Esse superenvolvimento mascara uma disfunção estrutural da família ou de um dos membros” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p.

37).

Conforme François de Singly (2007), há uma falta de rigor na definição de desagregação familiar ou, como foi denominado nas matérias, família desestruturada. Essa definição flutua conforme a época e a cultura. Geralmente, a desagregação familiar está associada à ausência da mãe e/ou do pai. Mas não é simples estabelecer a definição exata dessa ausência. Deve-se incluir ou não a duração dessa ausência? Em que momento ela apareceu na história da criança? Foi disponibilizada ou não a substituição do papel paterno ou materno? O autor destaca que, com o crescimento das famílias recompostas, a abordagem da socialização familiar torna-se ainda mais complexa. A desagregação familiar “pode ser bem maior em certos meios sociais do que em outros. A relação entre desagregação e problema infantil pode esconder outra relação” (SINGLY, 2007, p. 74).

Quando não se trata de uma família conjugal nuclear, pode-se falar em família desestruturada? A partir dessa questão, Fonseca (2005) faz uma reflexão interessante. Seguindo um enfoque “legalista”, percebe-se que certas pessoas se aproximam mais do ideal da família conjugal nuclear, e outras menos. É assim, que, durante os primeiros estudos sobre a família, os pobres eram vistos como a “massa amorfa” dos “sem-família”. O modelo, antes de nos ajudar, “agiria como camisa de

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força, impondo-nos um tipo de viseira que impedisse uma melhor visão da realidade” (FONSECA, 2005, p. 55).

A autora vai além, afirmando que “desestruturada” é um termo usado para descrever a família dos outros. Não simplesmente outros, mas dos outros pobres. É como se uma pessoa bem-sucedida não pudesse, por definição, vir de uma família desestruturada. Pensando nesse filtro classista, Fonseca (2005) aponta o uso de termos diferentes, carregados de avaliações opostas para descrever comportamentos muito semelhantes, respectivamente para ricos e para pobres: ricos “escolhem” sua família X pobres “submetem-se” à biologia; maternidade assistida X controle de natalidade; produção independente X mãe solteira; família recomposta X família desestruturada (FONSECA, 2005, p. 57).

Essas diferenças são apresentadas na mídia como fenômenos naturais. A estratégia de naturalização, subjacente a todas já citadas, consiste em transformar um estado de coisas que é uma criação social e histórica em um acontecimento natural, como se fosse um resultado inevitável de características naturais (THOMPSON, 2007). A relação pais e filhos, o papel e a estrutura da família, a dependência química, a relação da sociedade com as drogas, as relações de classe e gênero são apresentados como coisas naturais, desligadas de seu contexto sócio- histórico. Apresentar esses fatos de forma naturalizada aos leitores é o mesmo que ocultar informações, oferecendo uma visão acrítica do mundo e de suas relações.

A matéria “A pedra avança sobre a infância” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p. 35) evidencia os danos neurológicos em um organismo em formação, os roubos, os crimes, as “famílias esfareladas”. As famílias estão esfareladas como a pedra fica depois do uso: o usuário, na fissura, procura pelos farelos da pedra, na tentativa de aproveitá-la um pouco mais. As famílias esfareladas são representadas por uma mãe que oferecia crack ao filho quando o filho reclamava de fome até uma família na qual a mãe é papeleira e o pai está preso por tentar estuprar uma das filhas (ZERO HORA, 2008).

O que faz com que uma família fique esfarelada? Se pensarmos em uma comparação com o crack, a pedra se esfarela após ser queimada. Então, a pedra, antes uma unidade consistente, precisa de um cachimbo, de fogo e de uma pessoa que faça uso dela para que fique esfarelada. Porém, com uma família, não é tão fácil perceber esse processo. A matéria aponta alguns indícios (ZERO HORA, 2008): a

mãe que oferece crack ao filho como alimento (“o crack alimenta o crime”), a pobreza (pais papeleiros), a ausência paterna (quando citada na matéria ou mesmo quando a figura paterna nem é citada) ou a própria presença paterna (o pai que tentou estuprar a filha). Sabe o que um usuário esperava de seus pais quando saísse da clínica em estava internado? Ele queria “cuidado, companhia e limites” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 37).

Aqui, infelizmente, não são os brinquedos, a escola ou a televisão que está disponível, mas a violência, a falta de cuidado e amor, o crack. O crack aparece como uma alternativa para superar as adversidades, para superar a fome. Fala-se no “processo acelerado de infantilização do crack” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p.35). Infantilização refere-se ao ato ou ação de infantilizar. É possível infantilizar o crack? Infantilizar o crack é torná-lo infantil, próprio da infância, e sabemos que isso não é possível e nem queremos que o seja. É difícil imaginar uma pessoa que responda, com naturalidade, à pergunta “O que é ser uma criança?”: “Ah... criança brinca, estuda... e usa crack”. Isso é infantilizar o crack.

Se o crack está fazendo parte da infância de muitas crianças é porque algo está errado. Uma criança que se transforma em “um problema social de perspectivas

sombrias” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p. 35) não é mais vista como uma

criança. “Depois de duas semanas, viram crianças de novo” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p. 35), afirma uma técnica em enfermagem de um hospital da Capital gaúcha. Ou seja, elas deixam de ser crianças quando usam crack e passam a fazer parte do problema.

Não há uma infantilização do crack, o que há é uma desinfantilização da infância. “É nos bairros de periferia que as crianças do crack estão sendo produzidas em série” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p.35). Estão sendo produzidas em série... uma produção em série, como nas indústrias: a indústria do crack. Mas será que é a indústria do crack? Acho que há uma produção em série de pessoas que ficam inertes diante dos problemas e que se acostumam com a violência, mas quando a violência é praticada pelos outros e contra os outros. Talvez o maior problema seja a produção em série de sujeitos, sujeitos assujeitados, desprovidos de sua singularidade.

Estudos como o de Ariès (1981) têm evidenciado as transformações dos conceitos de infância, adolescência e família, ao longo dos tempos, nas diferentes

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sociedades, mostrando que esses conceitos são definidos e construídos historicamente, dando lugar a essa compreensão histórico-social dos mesmos.

Parte-se, portanto, da idéia de que não existe, histórica e antropologicamente falando, um modelo - padrão de organização familiar; não existe a família regular. Menos ainda que o padrão europeu de família patriarcal, do qual deriva a família nuclear burguesa (que a moral vitoriana da sociedade inglesa no século XIX atualizou historicamente para os tempos modernos), seja a única possibilidade histórica de organização familiar a orientar a vida cotidiana no caminho do progresso e da modernidade (NEDER, 1994, p. 28).

A infância, na medida em que ganha o estatuto de idade privilegiada (ARIÈS, 1981), incrementa os estudos de ordem sociológica e psicológica, os quais, principalmente a partir do século XIX, vêm marcando as diretrizes do que se torna fundamentalmente para o bom desenvolvimento. As freqüentes reportagens focando o uso de crack na infância e na adolescência nos mostram que é impossível não reconhecer o quanto essas situações são geradoras de violência e exclusão social, o quanto as instituições encobrem ainda a violência primária que a própria lei já condenou, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

As estratégias ideológicas identificadas na série “A epidemia do crack”, em relação à noção de família, nos alerta para o perigo de pensar na família como algo estático ou como algo separado de um contexto sócio-histórico. Pensar a família através de um modelo hegemônico pode nos levar à criação de estereótipos e preconceitos, principalmente quando se trata do uso de drogas e de outras epidemias. A cristalização desses conceitos e dessas relações contribui para a criação e manutenção de relações de dominação, dificultando ainda mais a inserção social de usuários de droga, especialmente de crack.

Precisamos pensar, como alerta Fonseca (2005), na relação dialética entre práticas e valores, evitando abordagens analíticas focadas exclusivamente nos ideais - as representações normativas de uma sociedade. Através dessa visão dialética, podemos ver “a atitude criativa dos atores - como alguns deles burlam ou brincam com a norma oficial, como criam normas alternativas, enfim, como, por meio de suas práticas cotidianas, estão constantemente renegociando e transformando

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