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Romanini TCC Psicologia 2009

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CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

CURSO DE PSICOLOGIA

MÍDIA E IDEOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE A

EPIDEMIA DO CRACK

MONOGRAFIA DE GRADUAÇÃO

Moises Romanini

Santa Maria, RS, Brasil

2009

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1

MÍDIA E IDEOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE A EPIDEMIA

DO CRACK

por

Moises Romanini

Trabalho de Monografia apresentado ao Curso de Psicologia da

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito

parcial para obtenção do grau de

Psicólogo

Orientadora: Profª. Drª Adriane Rubio Roso

Santa Maria, RS, Brasil

2009

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2

Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Curso de Psicologia

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Monografia de Graduação

MÍDIA E IDEOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE A EPIDEMIA

DO CRACK

elaborada por

Moises Romanini

como requisito parcial para obtenção do grau de

Psicólogo

COMISSÃO EXAMINADORA: _______________________

Adriane Roso, Drª. UFSM. (Presidente/Orientadora)

_____________________________________ Hector Omar Ardans Bonifacino, Dr. UFSM.

Membro

_______________________________ Guilherme Carlos Corrêa, Dr. UFSM.

Membro

__________________________________ Amanda Schreiner Pereira, Ms. UFSM.

Suplente

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Vilson e Clarice, e ao meu irmão, Mateus, que sempre acreditaram em mim e me apoiaram incondicionalmente. Especialmente aos meus pais que, durante toda a minha vida, trabalharam arduamente, sem descanso, para que pudessem me oferecer as condições necessárias para minha formação acadêmica e, mais do que isso, o amor e suporte emocional que tanto precisei durante todos esses anos. Por entenderem quando estive ausente e pelo exemplo de dedicação, persistência e honestidade. Ao meu irmão, que tanto me protege e me compreende.

Ao Cristiano, amigo e companheiro, por sua paciência e por compartilhar tanto os momentos bons quanto os ruins, por me ensinar a encarar as dificuldades e ver a vida com mais alegria.

Aos meus amigos, pelo companheirismo, pelos momentos que juntos passamos e juntos crescemos, pela compreensão quando não pude me fazer presente e por terem contribuído com muito do que hoje sou.

À Professora Adriane, minha mestre e amiga, compreensível e orientadora sábia e dedicada, pelos momentos de debate, de conversa e de acolhimento, por tudo o que me oportunizou nesse ano e apostar em mim.

Aos Professores Omar e Guilherme, e à psicóloga Amanda, por terem aceito o convite para participarem desse momento que é tão importante para mim, pelas contribuições que já vieram e que ainda estão por vir.

Aos profissionais e usuários do CAPS ad de Santa Maria, que me acolheram como membro da equipe durante meu estágio e por despertar minha atenção e interesse nesse tema e me inspirar na realização desse trabalho.

Enfim, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, possibilitaram que esse projeto pessoal e profissional pudesse se realizar.

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RESUMO

Monografia de Conclusão de Curso

Curso de Psicologia

Universidade Federal de Santa Maria

MÍDIA E IDEOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE A EPIDEMIA

DO CRACK

A

UTOR

:

M

OISES

R

OMANINI

O

RIENTADORA

:

A

DRIANE

R

OSO

Santa Maria, 18 de dezembro de 2009.

A midiação da cultura é uma característica fundamentalmente constitutiva das sociedades modernas, sendo um processo que provoca mudanças na forma como as pessoas se relacionam, no conteúdo e na maneira como as mensagens são transmitidas pela mídia. A mídia pode colaborar com a criação, estabelecimento e manutenção de relações assimétricas, relações de dominação (ROSO; GUARESCHI, 2007). Ela nunca é neutra; o que nos leva a perguntar que tipo de ideologia ela tenta transmitir. O objetivo dessa pesquisa foi realizar uma análise crítica de reportagens sobre a “epidemia do crack” veiculadas pela mídia escrita, interpretando a ideologia que, possivelmente, subjaz o discurso em relação à droga psicotrópica crack. A análise ideológica foi realizada com uma amostra de 8 reportagens coletadas no Jornal Zero Hora, no período de 06 a 13 de julho de 2008, que constituíram uma série especial denominada “A Epidemia do Crack”. O referencial metodológico adotado para tal análise foi a Hermenêutica de Profundidade. O enfoque da Hermenêutica de Profundidade é composto por três fases mutuamente interdependentes e complementares: a análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação. O trabalho de análise ideológica dessas formas simbólicas nos mostra como a mídia tem estabelecido e/ou sustentado relações de dominação. Todas as estratégias identificadas - naturalização, racionalização, diferenciação, passivização, etc. - operam em conjunto, obscurecendo significados importantes para uma compreensão mais profunda do fenômeno da „epidemia do crack‟.

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ABSTRACT

Final Course Monograph

Psychology Course

Federal University of Santa Maria

MEDIA AND IDEOLOGY: A STUDY ABOUT A CRACK EPIDEMIC

A

UTHOR

:

M

OISES

R

OMANINI

A

DVISOR

:

A

DRIANE

R

OSO

Santa Maria, December 18, 2009.

Modern societies have as their fundamental characteristic the mediation of culture, which is a process that promotes changes in the way people relate, the content and the way messages are transmitted by the media. Media may help with the creation, establishment and maintenance of asymmetric relationships, relations of domination (ROSO; GUARESCHI, 2007). It is never neutral; which leads us to ask what kind of ideology it tries to convey. The objective of this research was to make a critical analysis of reports on “crack epidemics” spread through written media, interpreting the ideology that possibly there is a speech in relation to psychotropic drug crack underneath it. The ideological analysis was made with a sample of 8 reports collected from newspaper Zero Hora, July 6-13, 2008, which constituted a special seriescalled “Crack Epidemics”. The methodological referential adopted for such analysis was the Depth Hermeneutics. The approach of this kind of Hermeneutics is composed by three phases mutually interdependent and complementary: social-historical analysis, formal or discursive analysis, and interpretation/re-interpretation. The ideological analysis of these symbolic forms shows how media has established and/or sustained relations of domination. All identified strategies - naturalization, rationalization, differentiation, passivization, etc. - work out together as a group, overshadowing important meanings for a deeper comprehension of the „crack epidemic‟ phenomenon.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……… 7

CAPÍTULO 1 - DANDO UM PASSO ALÉM: O MÉTODO DA HERMENÊUTICA DE PROFUNIDADE... 12

CAPÍTULO 2 - O DESENVOLVIMENTO DAS SOCIEDADES MODERNAS E O ADVENTO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA: CONTEXTUALIZANDO A MIDIATIZAÇÃO DA EPIDEMIA DO CRACK... 16 CAPÍTULO 3 - O “CRACK” DAS FORMAS SIMBÓLICAS: A ANÁLISE FORMAL DA “EPIDEMIA DO CRACK”... 23

3.1 “O Crack”: Epidêmico, Avassalador e Diabólico... 24

3.2 Crack e (É) Criminalidade: “Todo Crackeiro é Criminoso”... 32

3.3 A Epidemia do Crack e as “Famílias Esfareladas”... 43

3.4 O combate ao Crack: A ideologia da repressão... 52

CAPÍTULO 4 - A PRODUÇÃO MIDIÁTICA DA “GERAÇÃO C”: (RE)INTERPRETANDO OS DISCURSOS SOBRE “A EPIDEMIA DO CRACK”... 63

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 70

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INTRODUÇÃO

“Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém chama de violentas as margens que o aprisionam.”

(Bertold Brecht)

Em meados de 2008, em pleno estágio curricular em Psicologia no CAPS ad (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas) de Santa Maria, deparo-me com uma „enxurrada‟ de usuários de crack procurando o serviço, bem como uma „enxurrada‟ de informações e matérias veiculadas pelos meios de comunicação de massa sobre o fenômeno da “epidemia do crack”. Os jornais e telejornais noticiavam quase que diariamente a destruição de vidas assoladas pelo “mal do crack”, a falta de leitos psiquiátricos, as dificuldades da rede de saúde mental para atender toda a demanda e, é claro, dicas de profissionais sobre a prevenção e o tratamento para a dependência química. Essa turbulência de informações e notícias sobre o tema chamou não somente a minha atenção, mas a de todos os profissionais do CAPS.

Por outro lado, o “discurso pronto” dos usuários que chegavam ao serviço me causava certo desconforto: “sou dependente químico”, “sei que é uma doença crônica, que não tem cura”, “só a internação vai me salvar”... Essas falas não me pareciam ser de um sujeito em um estado grave de sofrimento psíquico, eram falas muito semelhantes às das pessoas que eu ouvia nas ruas e em encontros com amigos, bem como àquilo que a mídia veiculava. Fui inevitavelmente tomado por muitas indagações: Como escutar os sujeitos que estão escondidos atrás desse discurso? Qual a relação da mídia com esse fenômeno? A mídia realmente influencia as pessoas dessa forma? O que a mídia nos diz sobre a “epidemia do crack”? Essas e outras questões me motivaram a procurar uma abordagem teórica e metodológica que me possibilitasse pensar essas questões

Encontrei no pensamento do sociólogo John Thompson algumas reflexões que oportunizaram um estudo mais profundo sobre a midiatização do crack. Thompson (2007) argumenta que a midiação da cultura é uma característica fundamentalmente constitutiva das sociedades modernas, ou seja, as sociedades

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em que vivemos hoje são “modernas” em função do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. A midiação da cultura moderna é “o processo geral através do qual a transmissão das formas simbólicas se tornou sempre mais mediada pelos aparatos técnicos e institucionais das indústrias da mídia” (THOMPSON, 2007, p.12). Esse processo provoca mudanças não apenas na forma como as pessoas se relacionam, mas também no conteúdo e na maneira como as mensagens são transmitidas pela mídia. Dessa forma, o conhecimento que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio social imediato é, muitas vezes, derivado da recepção das formas simbólicas veiculadas pelos meios de comunicação (THOMPSON, 2007).

O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa possibilitou que esses meios se transformassem em um aspecto fundamental, senão central, na produção e transmissão de formas simbólicas. Isso porque, através dos meios de comunicação, as formas simbólicas produzidas são capazes de circular numa escala sem precedentes, atingindo milhões de pessoas em todo o mundo. A ampla circulação de mensagens veiculadas pela mídia fez com que a comunicação de massa se tornasse num fator importante de transmissão da ideologia nas sociedades modernas. Assim, os fenômenos ideológicos podem tornar-se fenômenos de massa, isto é, fenômenos que podem atingir um número cada vez maior de receptores. A mídia, então, pode colaborar com a criação, estabelecimento e manutenção de relações assimétricas, relações de dominação (THOMPSON, 2007).

Tendo como pano de fundo a midiação da cultura moderna, Thompson (2007) reavalia o que está implicado na análise e na crítica do conceito de ideologia. Ideologia, para esse autor, refere-se às “maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas” (THOMPSON, 2007, p.79).

A reformulação do conceito de ideologia proposta por Thompson emprega a noção de sentido. Ao analisar as formas como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, o interesse centra-se no sentido das formas

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simbólicas que estão inseridas em contextos sociais estruturados e circulando pelo mundo social. Por “formas simbólicas”, entende-se um “amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos” (THOMPSON, 2007, p. 79).

Para analisar o caráter significativo das formas simbólicas, Thompson (2007) sugere a existência de cinco aspectos que estão envolvidos na constituição das mesmas. As formas simbólicas são produzidas e empregadas por um sujeito que tem a intenção de dizer algo a alguém, ou seja, as formas simbólicas são expressões de um sujeito e para um sujeito, o que caracteriza seu aspecto “intencional”. O aspecto “convencional” evidencia as regras, códigos ou convenções de diversos tipos que são aplicados nos processos de produção, emprego, recepção e interpretação das formas simbólicas. O terceiro aspecto, o “estrutural”, significa que as formas simbólicas são construções que apresentam uma estrutura articulada, que são constituídas por elementos que estabelecem uma relação uns com os outros, o que torna as formas simbólicas passíveis de uma análise formal. As formas simbólicas são construções que representam algo, referem-se a algo, eis seu aspecto “referencial”. Por fim, o aspecto “contextual” significa que as formas simbólicas estão sempre inseridas em contextos sócio-históricos específicos dentro dos quais e por meio dos quais elas são produzidas, transmitidas e recebidas.

Ao enfatizar tanto o caráter simbólico dos fenômenos culturais, quanto os contextos sociais estruturados, Thompson (2007) começa a delinear uma “concepção estrutural” de cultura. Um aspecto preliminar dessa concepção é a noção de análise cultural, entendida como o estudo das formas simbólicas “em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas” (p.181). Dessa forma, os fenômenos culturais são formas simbólicas em contextos estruturados e a análise cultural implica a análise da constituição significativa e da contextualização social das formas simbólicas.

Os fenômenos culturais, enquanto formas simbólicas, são significativos tanto para quem os produz, quanto para quem os recebe, bem como para os que analisam a cultura de uma forma geral. Esses fenômenos são significativos porque eles são cotidianamente interpretados pelas pessoas no curso de suas vidas. Por

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isso, a análise dos fenômenos culturais não implica somente na interpretação das formas simbólicas por si mesmas, mas também na interpretação de sua relação com os contextos e processos socialmente estruturados, onde elas são produzidas, transmitidas e recebidas.

As concepções de ideologia e cultura elaboradas por Thompson apresentam um aspecto constitutivo fundamental: o contexto social estruturado. Considerar os contextos sociais como “estruturados” implica no reconhecimento da existência de diferenças sistemáticas em relação à distribuição e ao acesso a recursos de vários tipos. O acesso a esses recursos disponíveis num contexto determina a localização social das pessoas. A localização social das pessoas e as qualificações associadas a essas posições fornecem a esses indivíduos diferentes graus de “poder”, entendido como uma “capacidade de agir na busca de seus próprios objetivos e interesses: um indivíduo tem poder de agir, poder de intervir em uma seqüência de eventos e alterar seu curso. Agindo dessa forma, o indivíduo apóia-se e emprega os recursos que lhe estão disponíveis” (THOMPSON, 2007, p.199).

Assim, a capacidade de agir na busca dos próprios objetivos e interesses depende da posição que o indivíduo ocupa dentro de um campo ou instituição. O poder, então, capacita ou possibilita algumas pessoas a tomarem decisões e realizarem seus interesses. Sem essa capacidade oferecida por sua posição dentro de um campo ou instituição, os indivíduos não conseguem levar adiante sua trajetória. Nessa perspectiva, ocorre dominação quando as relações de poder dentro dos campos ou instituições são estabelecidas de forma sistematicamente assimétricas (THOMPSON, 2007). Relações de poder são sistematicamente assimétricas quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos detém o poder de maneira estável, excluindo outros indivíduos ou grupos das decisões e das escolhas sobre suas próprias trajetórias.

O estudo sobre como as formas simbólicas veiculadas pela mídia servem em circunstâncias específicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação em relação à “epidemia do crack” é fundamental, tendo em vista que a veiculação de mensagens sobre esse tema pode estar criando e mantendo estereótipos que dificultam a reinserção social dos usuários de drogas e pode contribuir na elucidação desse fenômeno. Em vista disso, constitui-se como objetivo da presente pesquisa realizar a análise crítica de reportagens sobre a “epidemia do crack” veiculadas pela

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mídia escrita, interpretando a ideologia que, possivelmente, subjaz o discurso em relação à droga psicotrópica crack.

O presente trabalho segue dividido em quatro capítulos. O Capítulo 1 apresenta o método adotado para desenvolver a pesquisa. Trata-se da Hermenêutica de Profundidade (HP), desenvolvida por John Thompson, e utilizada tanto como suporte teórico de análise quanto como método. O Capítulo 2 corresponde à análise sócio-histórica, primeira fase da Hermenêutica de Profundidade. Nessa análise serão apresentadas, de forma breve, as principais transformações institucionais que caracterizam a modernidade, contextualizando o fenômeno da epidemia do crack, bem como o seu meio de veiculação - o jornal.

No Capítulo 3 são apresentadas as análises das formas simbólicas, segunda fase da HP, veiculadas pelo Jornal Zero Hora e as estratégias ideológicas identificadas. Está dividido em quatro partes. Cada uma dessas partes representa uma unidade de análise: o “crack”, a “criminalidade”, a “família” e “o combate ao crack”. O capítulo 4, por sua vez, é fruto das discussões propostas nos dois capítulos anteriores. Nesse capítulo apresentamos a terceira e última fase da HP, quando formula-se uma (re)Interpretação das formas simbólicas analisadas, com o intuito de compreender mais profundamente o fenômeno da epidemia do crack. Nas considerações finais são feitas, ainda, alguns comentários sobre aquilo que se pôde perceber e pensar a partir da pesquisa realizada.

Deseja-se que a leitura do trabalho seja atraente e ofereça elementos através dos quais o leitor possa se inquietar diante do que se está apresentando, ampliando, dessa forma, os limites impostos pela mídia na discussão da epidemia do crack.

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CAPÍTULO 1

DANDO UM PASSO ALÉM: O MÉTODO DA HERMENÊUTICA DE

PROFUNDIDADE

A análise ideológica proposta foi realizada com uma amostra de 8 reportagens coletadas no Jornal Zero Hora, no período de 06 a 13 de julho de 2008, que constituíram uma série especial denominada “A Epidemia do Crack”. O referencial metodológico, bem como suporte teórico, adotado para tal análise foi a Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 2007). O enfoque da Hermenêutica de Profundidade é composto por três fases mutuamente interdependentes e complementares: a análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação. A interpretação da ideologia dá uma inflexão crítica a essas fases, pois ela é “uma interpretação das formas simbólicas que procura mostrar como, em circunstâncias específicas, o sentido mobilizado pelas formas simbólicas serve para alimentar e sustentar a posse e o exercício do poder” (THOMPSON, 2007, p.378).

Há duas formas de nos aproximarmos de um objeto, no caso dessa pesquisa, de uma forma simbólica. Uma primeira é o que podemos chamar de interpretação de superfície, também denominada de interpretação da doxa. Esse termo significa opinião, em grego, e é empregada para designar o estudo das crenças e compreensões que existem e são partilhadas e sustentadas pelos diversos integrantes de um grupo social (GUARESCHI, 2003). O estudo da doxa é importante e indispensável, mas é apenas um primeiro passo, não se estende além do próprio fenômeno.

O que se pretende e o que é necessário, inclusive nesse trabalho, é dar um passo além, e levar em conta outros aspectos das formas simbólicas que constituem o objeto de estudo (a midiatização da epidemia do crack) e que o enquadram num referencial mais amplo e mais profundo. Isso é o que Thompson denomina de Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 2007). Esse referencial serve como um enquadramento amplo que pode nos guiar na análise de formas simbólicas ou de um fato comunicacional qualquer, e nos ajuda a não esquecer de aspectos

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importantes que poderiam influenciar na compreensão de determinados fenômenos (GUARESCHI, 2003).

A primeira fase, a análise sócio-histórica, tem como objetivo reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas. Nesse primeiro momento, há quatro aspectos básicos dos contextos sociais que definem níveis de análise distintos, a saber: situações espaço-temporais (visa reconstruir os ambientes em que as formas simbólicas são produzidas e recebidas por pessoas situadas em locais específicos); campos de interação (análise de posições e conjunto de trajetórias que determinam algumas relações entre as pessoas, inclusive relações de dominação); instituições sociais (reconstrução do conjunto de regras, recursos e relações que as constituem e seu desenvolvimento através do tempo); e estrutura social (pretende identificar as assimetrias e diferenças, bem como analisar seus princípios subjacentes que garantem seu caráter sistemático e durável (THOMPSON, 2007).

Além desses quatro aspectos, os meios técnicos de construção de mensagens e de transmissão são fundamentais para o estudo das formas simbólicas. Entende-se por meios técnicos um substrato material em que, e através do qual, as formas simbólicas são produzidas e transmitidas. Os meios técnicos conferem às formas simbólicas certo grau de fixidez, certo grau de reprodutibilidade e uma possibilidade de participação daqueles que empregam o meio. Dessa forma, a análise sócio-histórica dos meios técnicos não é apenas uma investigação técnica, mas dos contextos mais amplos em que esses meios estão inseridos e empregados. A preocupação com a ideologia, ao nível da análise sócio-histórica, orienta-nos “em direção às relações de dominação que caracterizam o contexto dentro do qual as formas simbólicas são produzidas e recebidas” (THOMPSON, 2007, p. 378).

Na análise sócio-histórica, então, pretende-se investigar as questões referentes à modernidade, os meios de comunicação de massa, a cultura do consumo, o modo de produção capitalista pós-industrial e os efeitos evidenciados nas relações humanas. O estudo da modernidade implica também a reflexão sobre as relações de dominação estabelecidas e mantidas em nossa sociedade, bem como as instituições que a compõe, como é o caso dos serviços de atenção à saúde mental. Essa análise é fundamental para pensarmos como as formas simbólicas são produzidas e recebidas em nossa sociedade. Além disso, a análise da mídia

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impressa - seu desenvolvimento e importância atualmente - e a investigação da empresa de comunicação em destaque (o Grupo RBS - Jornal Zero Hora) e sua relação com o contexto onde se insere é fundamental para pensar o impacto da veiculação de mensagens sobre a “epidemia do crack”.

As mensagens que circulam nos campos sociais são também construções simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada. Essa característica é o que fundamenta a segunda fase da Hermenêutica de Profundidade. A análise

formal ou discursiva tem como finalidade básica analisar a organização interna das

formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e relações. Assim como na análise sócio-histórica, existem várias maneiras de conduzir a análise formal ou discursiva. O tipo de análise adotada nesse estudo foi a análise temática, classificando as significações do discurso em categorias, nas quais os critérios são orientados pela dimensão da análise em questão (BARDIN, 1977). A amostra de reportagens será, então, dividida em unidades de significado, unidades que expressam um sentido em si mesmo e em relação ao contexto. Uma unidade de significado pode ser uma palavra, uma frase ou parágrafo, o que importa é que seja um conjunto de proposições que expressem um determinado tema. Identificadas as unidades de significado, categorias temáticas serão eleitas, englobando e expressando o conteúdo e as mensagens implícitas contidas no texto.

Nesse momento da pesquisa, os textos veiculados pelo Jornal Zero Hora são analisados, ou seja, o todo é “quebrado” em partes, em temas ou categorias com sentidos específicos. Esse movimento de “quebra” é essencial para evidenciar o conteúdo e os significados implícitos contidos nos textos. A partir da visualização desses temas, torna-se mais claro quais são as relações que a mídia ajuda a estabelecer e sustentar em relação à “epidemia do crack”.

Após a codificação e caracterização dessas categorias temáticas, inicia-se a terceira fase da Hermenêutica de Profundidade, a interpretação/reinterpretação. Enquanto a análise formal ou discursiva procede através de análise - quebra, desconstrução de padrões e efeitos que operam dentro das formas simbólicas - a interpretação/reinterpretação procede por síntese, ou seja, ela se propõe a construir criativamente possíveis significados. No processo de interpretação procura-se compreender o “aspecto referencial” das formas simbólicas (elas se referem a algo, dizem alguma coisa sobre algo). Portanto, “interpretar a ideologia é explicitar a

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15

conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar” (THOMPSON, 2007, p. 379). A interpretação da ideologia assume, então, uma dupla tarefa: a explicação criativa do significado e a demonstração sintética de como esse significado serve para estabelecer e sustentar relações de dominação.

Finalizando a análise ideológica, o processo de síntese visa, então, a construção criativa de possíveis significados para aquilo que está sendo veiculado pela mídia. Com o auxílio da análise sócio-histórica e da análise formal discursiva, o objetivo aqui é de relacionar todos esses elementos, interpretando a ideologia subjacente ao discurso midiático. Com certeza, esse movimento de análise e síntese nos ajudará a elucidar os significados relacionados à “epidemia do crack”, permitindo-nos a reflexão de como esse fenômeno se insere num contexto social mais amplo e como ele afeta as relações em nossa sociedade.

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CAPÍTULO 2

O DESENVOLVIMENTO DAS SOCIEDADES MODERNAS

E O ADVENTO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA:

CONTEXTUALIZANDO A MIDIATIZAÇÃO DA EPIDEMIA DO CRACK

O desenvolvimento das sociedades modernas é o resultado de um conjunto de transformações institucionais fundamentais que tiveram início na Europa durante o último período da Idade Média e os primórdios da era moderna (THOMPSON, 2008). Através da exploração, do comércio e da colonização, tais transformações foram envolvendo cada vez mais outras partes do mundo, tomando um caráter global e não mais apenas europeu.

Trabalhos de pensadores sociais clássicos, como Marx e Weber, bem como resultados de pesquisas mais recentes de historiadores e sociólogos, tornaram mais claras as principais linhas de transformação institucional ocorrida no período moderno (THOMPSON, 2008). Modernidade, então, refere-se a “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (GIDDENS, 1991, p.11).

Uma primeira linha de transformação apontada por Thompson (2008) está relacionada às mudanças econômicas. A emergência das sociedades modernas implica um conjunto específico de mudanças econômicas através das quais o feudalismo europeu foi se transformando gradualmente num novo sistema capitalista de produção e de intercâmbio de produtos e serviços. Ao redor de 1450, esse novo sistema de produção e intercâmbio de mercadorias surge na Europa e, rapidamente, expande-se tanto em produtividade quanto em alcance geográfico. As principais características são bem conhecidas:

mais e mais indivíduos foram acumulando capital e usando-o no melhoramento dos meios de produção e no aumento das mercadorias produzidas; mais e mais trabalhadores foram sendo assalariados; os produtos finais foram sendo vendidos a preços que superavam os custos da produção, permitindo aos capitalistas a geração de lucro que era apropriado privadamente e, em alguns casos, reinvestido na própria produção (THOMPSON, 2008, p. 50).

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A Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII e primeira do século XIX) aconteceu dentro do contexto de um sistema econômico capitalista que já existia na Europa e em outros lugares há muitos séculos. Ao introduzir uma série de novos métodos de produção - uso das máquinas, divisão de trabalho, etc. - a Revolução Industrial aumentou significativamente a capacidade produtiva das empresas, anunciando a era do processo industrial em grande escala. Essas mudanças ocorreram dentro de um sistema de relações de propriedade e de produção que permaneceram relativamente estáveis (THOMPSON, 2008).

Uma segunda linha de transformação refere-se às mudanças políticas. O desenvolvimento das sociedades modernas se caracterizou, também, por um processo de mudanças políticas através das quais as “numerosas unidades políticas da Europa Medieval foram sendo reduzidas em número e reagrupadas num sistema entrelaçado de estados-nações, cada um reclamando soberania sobre um território claramente delimitado e possuindo um sistema centralizado de administração e de tributação” (THOMPSON, 2008, p. 48). Conforme Bauman (2005), o Estado-nação é um Estado que faz da „natividade ou nascimento‟ o „alicerce de sua própria soberania‟. Com a noção de identidade nacional, a ficção da „natividade do nascimento‟ desempenhou o papel principal entre as fórmulas empregadas pelo nascente Estado moderno para legitimar a exigência de subordinação incondicional de seus indivíduos (BAUMAN, 2005).

Atrelada à segunda linha de transformação, Thompson (2008) aponta uma terceira linha: o desenvolvimento do monopólio em determinados territórios. Nesse sentido, a guerra e a sua preparação exerceram um papel fundamental nesse processo de alterações políticas. Com o desenvolvimento das sociedades modernas, o poder militar foi se concentrando cada vez mais nas mãos de estados-nações que reivindicavam o monopólio do uso legítimo da força dentro de um determinado território. Dessa forma, os governantes criaram os meios para exercer o poder coercitivo, principalmente através das guerras contra rivais externos ou contra possíveis ameaças externas, mas também meios para reprimir revoltas internas e manter a ordem dentro de seus territórios. Porém, para criar esses meios de exercer o poder coercitivo, os governantes tinham que criar meios para extrair recursos (dentre eles, homens), equipamento e capital, das populações subjugadas a esse poder (THOMPSON, 2008).

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Essas transformações das sociedades modernas constituem uma quarta linha de transformação institucional apontada por Thompson (2008) como sendo de domínio “cultural”. Conforme Thompson, teóricos sociais têm tentado detectar, de maneira equivocada, largas mudanças nos valores e nas crenças, nas atitudes e nas orientações no plano cultural. O autor não nega a importância dessas mudanças, mas propõe uma nova argumentação. Ao focalizar nos meios de produção e circulação das formas simbólicas no mundo social, pode-se ver que, com o advento das sociedades modernas uma transformação cultural sistemática começou a ganhar um perfil mais preciso.

Em virtude de uma série de inovações técnicas associadas à invenção da impressão e, conseqüentemente, à codificação elétrica da informação, as formas simbólicas começaram a ser produzidas, reproduzidas e distribuídas numa escala sem precedentes. Os modelos de comunicação e interação se transformaram de maneira profunda e irreversível. Estas mudanças, que incluem o que chamaríamos de „mediação da cultura‟, tinham uma base cultural muito clara: o desenvolvimento das organizações da mídia que apareceram primeiramente na segunda metade do século XV e foram expandindo suas atividades a partir de então (THOMPSON, 2008, p. 49).

O surgimento e o desenvolvimento das indústrias da mídia foi um processo histórico específico que acompanhou o surgimento das sociedades modernas. As origens da comunicação de massa podem ser ligadas ao século XV, quando as técnicas associadas com a imprensa de Gutenberg foram assumidas por diversas instituições nos maiores centros comerciais da Europa e exploradas para fins de produzir múltiplas cópias de manuscritos e textos. O alvorecer da era da comunicação de massa coincidiu com o desenvolvimento das primeiras formas de produção capitalista e de comércio, bem como com o surgimento dos modernos estados-nações (THOMPSON, 2007).

Durante o século XIX, a luta contra o controle estatal da imprensa, tanto na forma de censura aberta como na forma de impostos sobre a imprensa, tornou-se um tema central do pensamento liberal e democrático. O desenvolvimento da indústria do jornal nos séculos XIX e XX foi caracterizada por duas tendências principais: o crescimento e consolidação da circulação massiva de jornais e a crescente internacionalização das atividades de coleta das notícias. A rápida expansão da indústria jornalística se tornou possível pela melhoria nos métodos de produção e distribuição, pelo crescimento da alfabetização e pela abolição dos

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impostos, o que resultou num mercado de expansão constante para os jornais e os livros (THOMPSON, 2007).

A rápida expansão na circulação foi acompanhada por mudanças significativas na natureza e conteúdo dos jornais. Enquanto que os primeiros jornais dos séculos XVII e XVIII procuravam atingir um setor restrito da população, rico e bem educado, a indústria jornalística dos séculos XIX e XX foi se dirigindo sempre mais para um público maior. Os jornais adotaram um estilo mais leve e provocante de jornalismo, bem como um estilo mais vivo na apresentação, a fim de atrair um público leitor mais numeroso. A leitura de jornais, especialmente os jornais dominicais, era provavelmente maior que sua venda real, pois eles eram lidos nas casas de café, tavernas, salas de leitura e clubes. Com os desenvolvimentos tecnológicos, a abolição de impostos e o crescente número de anúncios comerciais, ocorreu um processo de consolidação dessas indústrias (THOMPSON, 2007).

Porém, ao mesmo tempo, os jornais se tornaram cada vez mais empreendimentos comerciais de grande porte que exigiam relativamente grandes quantidades de capital para começar e se manter devido à intensa competição crescente. A mudança na base econômica dos jornais foi o começo de um período de consolidação e concentração (THOMPSON, 2007). A consolidação dos jornais se deu de tal forma que, apesar de todos os desenvolvimentos tecnológicos referentes à mídia, uma pesquisa do Instituto Verificador de Circulação apontou que os jornais brasileiros encerraram o ano de 2008 com uma circulação 5% maior do que a registrada no ano anterior (ZERO HORA, 31 de janeiro de 2009). Esse dado evidencia a importância dos jornais dentro de um amplo contexto dos meios de comunicação de massa.

A comunicação de massa é, de maneira ampla, concebida como “a produção institucionalizada e a difusão generalizada de bens simbólicos através da transmissão e do armazenamento da informação/comunicação” (THOMPSON, 2007, p. 288). A partir dessa concepção, Thompson sugere a existência de quatro características fundamentais da comunicação de massa. A primeira característica é a produção e difusão institucionalizadas de bens simbólicos. Ou seja, a comunicação de massa pressupõe o desenvolvimento de instituições interessadas na produção em larga escala e na difusão generalizada de bens simbólicos. A segunda característica é que a comunicação de massa institui uma ruptura

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fundamental entre a produção e a recepção de bens simbólicos. Esses bens são produzidos para receptores que, geralmente, não estão fisicamente presentes no lugar da produção e transmissão desses bens.

A terceira característica é que a comunicação de massa aumenta a acessibilidade das formas simbólicas no tempo e no espaço. Os meios de comunicação de massa, geralmente, implicam um alto grau de distanciamento, tanto no espaço quanto no tempo. A quarta característica refere-se à implicação da circulação pública das formas simbólicas. Os produtos da comunicação de massa são produzidos, em princípio, para uma pluralidade de receptores. Através dessas características fica evidente que, para a maioria das pessoas hoje, o conhecimento que se tem dos fatos que acontecem além do meio social imediato deriva, em grande parte, da recepção das formas simbólicas mediadas pela mídia. Dessa forma, os meios de comunicação de massa tornam possíveis novas formas de ação e interação no mundo social (THOMPSON, 2007).

O desenvolvimento da interação mediada ou de uma “cultura mediada”, faz com que a mídia enriqueça, transforme e também produza um novo tipo de intimidade. Com o que Thompson (2008) chama de „quase-interação‟ mediada, ocorre a criação e estabelecimento de uma forma de intimidade essencialmente não recíproca, expandida no tempo e no espaço. O processo de formação do self, entendido aqui como um projeto simbólico que o indivíduo constrói ativamente, torna-se cada vez mais dependente do acesso às formas mediadas de comunicação. O desenvolvimento dos meios de comunicação enriqueceu e acentuou a organização reflexiva do self, o que provocou um profundo impacto no processo de autoformação (THOMPSON, 2008).

Ao conceber as formas simbólicas como um “amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos” (THOMPSON, 2007, p. 79), consideramo-las fenômenos sociais. A troca de formas simbólicas entre produtores e receptores implica uma série de características do que é denominado por Thompson de „Transmissão Cultural‟. A transmissão cultural nada mais é do que o processo pelo qual as formas simbólicas são transmitidas dos produtores aos receptores. Esse processo é constituído de três características fundamentais: o meio técnico de

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transmissão, o aparato institucional de transmissão e o distanciamento espaço-temporal implicado na transmissão.

O meio técnico de transmissão é o “substrato material de uma forma simbólica, isto é, os componentes materiais com os quais, e em virtude dos quais, uma forma simbólica é produzida e transmitida” (THOMPSON, 2007, p. 222). Nessa pesquisa, o substrato é o papel sobre o qual as formas simbólicas são impressas. Esse meio técnico, o jornal, permite um alto grau de fixação e de reprodução. Além disso, a amplitude da participação é grande, visto o número sempre crescente de pessoas alfabetizadas, „aptas‟ a usufruir deste meio de comunicação. O jornal Zero Hora, utilizado nessa pesquisa, foi fundado em 1964 e é o jornal líder em circulação no estado do Rio Grande do Sul, de acordo com dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC).

O aparelho institucional de transmissão é o “conjunto específico de articulações institucionais dentro das quais o meio técnico é elaborado e os indivíduos envolvidos na codificação e decodificação das formas simbólicas estão inseridos” (THOMPSON, 2007, p. 223). Essas articulações institucionais são caracterizadas por regras, recursos e relações hierárquicas de poder entre os indivíduos que ocupam as posições institucionalizadas. Uma das articulações institucionais, a mais importante talvez, implicada na veiculação do Jornal Zero Hora, refere-se ao Grupo RBS. O Jornal Zero Hora é uma das mídias que pertence ao Grupo RBS.

O Grupo RBS (Rede Brasil Sul) é um grupo de mídia regional que atua no sul do Brasil, mas especificamente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em algumas regiões do Paraná. A RBS possui 18 emissoras de televisão afiliadas à Rede Globo, além de quatro novas em implantação, tornando-se a maior rede regional da América Latina. O grupo foi fundado em 1957, operando hoje em dia na área de rádio, televisão, jornal, internet, serviço de informação e uma fundação social (WIKIPÉDIA, 2009a).

Um olhar mais atento sobre o Grupo RBS nos mostra um exemplo de como as empresas midiáticas têm sofrido grandes mudanças. Essas mudanças, conforme Thompson (2007), são resultado dos desenvolvimentos que ocorreram tanto no nível da economia quanto no nível da tecnologia. No nível da economia, observam-se as tendências da maior concentração das indústrias da mídia (a RBS „domina‟ os meios

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de comunicação de massa no sul do Brasil), da sua crescente diversificação (rádio, jornal, televisão, portais de internet, empresas de marketing, logística, etc.), da contínua globalização e da desregulamentação. Que impactos essas tendências produzem nas sociedades contemporâneas?

O primeiro impacto é que esses megagrupos midiáticos, ao adquirirem o controle de outras pequenas empresas, impossibilitam a democratização da comunicação: carência na pluralidade de informações, fortalecimento de uma ética e cidadania neoliberais, e constante violação dos direitos humanos (ROSO; GUARESCHI, 2007, p. 44).

O terceiro e último aspecto da transmissão cultural é o que pode ser chamado de distanciamento espaço-temporal. A transmissão de uma forma simbólica é distanciada de seu contexto, tanto espacial quanto temporalmente, e inserida em novos contextos que podem ser localizados em diferentes tempos e locais (THOMPSON, 2007). A mídia, através desses recursos, tem o poder de criar pautas de discussão e de contribuir fortemente para determinar quais as questões privadas que se tornam eventos públicos. A mídia também é vista como o agente modificador dos problemas que atravessam a sociedade (ROSO; GUARESCHI, 2007). É dessa maneira que muitas pessoas têm entendido a veiculação da “epidemia do crack”. A “epidemia do crack” tem sido intensamente midiatizada, e muito do que está sendo veiculado nas mídias de massa passou a fazer parte naturalmente do cotidiano das pessoas: crack e crime são uma coisa só, a dependência é uma doença incurável, a droga que destrói famílias, entre outros. Por isso torna-se fundamental considerar a análise sócio-histórica aqui realizada quando estamos lendo, assistindo ou escutando informações e “fatos” sobre “epidemia do crack”.

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CAPÍTULO 3

O “CRACK” DAS FORMAS SIMBÓLICAS: A ANÁLISE FORMAL DA

“EPIDEMIA DO CRACK”

Para a realização dessa pesquisa, foram construídas vinte fichas de catalogação a partir de uma leitura crítica e atenta das matérias analisadas. Vários elementos foram inseridos nessas fichas com o intuito de enriquecer a análise das formas simbólicas, dentre eles, destacam-se: título, dia da semana, personagem/ator principal, atores gerais, abrangência, órgãos e instituições envolvidos, referências/dados estatísticos, referência de gênero e classe, imagens, entrevistas e depoimentos, entre outros. Optou-se por não apresentar todos os dados em função do espaço e da dificuldade em discutir todos esses aspectos. Mas foram elementos fundamentais para a elaboração dos resumos interpretativos, também presentes nas fichas de catalogação.

Como o objetivo desse trabalho é investigar se e como as formas simbólicas transmitem fenômenos ideológicos, identificou-se no decorrer da análise uma série de estratégias ideológicas. Na tentativa de responder de que maneira pode o sentido servir para estabelecer e sustentar relações de dominação, Thompson (2007) identifica certos modos de operações gerais da ideologia e indica algumas das maneiras como eles podem estar ligados, em circunstâncias particulares, com estratégias de construção simbólica. Thompson (2007) nos alerta que essas estratégias de construção simbólica não são ideológicas em si mesmas: se o sentido gerado ou difundido pelas formas simbólicas serve para estabelecer ou sustentar relações de dominação, é uma questão que deve ser respondida somente pelo exame dos contextos nos quais elas são produzidas e recebidas; dos mecanismos específicos através dos quais elas são transmitidas dos produtores para os receptores; e do sentido que essas formas simbólicas possuem para os sujeitos que as produzem e as recebem.

Através da análise temática, as significações do discurso foram classificadas em categorias, nas quais os critérios foram orientados pela dimensão da análise em questão. A amostra de reportagens foi dividida em unidades de significado, as quais

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expressam um sentido em si mesmo e em relação ao contexto. Foram identificadas quatro unidades de análise: Crack, Família, Criminalidade e Combate. A cada unidade de análise apresentadas a seguir escolheu-se um título que ilustrasse o conteúdo temático geral da unidade: (1) “O Crack: Epidêmico, Avassalador e Diabólico; (2) Crack e (É) Criminalidade: “todo crackeiro é criminoso”; (3) A Epidemia do Crack e as “Famílias Esfareladas” e (4) O Combate Ao Crack: a ideologia da repressão.

As categorias são interdependentes e caracterizam um mapa compreensivo e interpretativo (Fig. 1) sobre a série analisada. As relações de classe e de gênero identificadas não constituem categorias em si mesmas, pois são elas que movimentam as unidades de análise e permitem um olhar crítico sobre as formas simbólicas transmitidas na mídia e serão discutidas no corpo das unidades de análise estabelecidas.

3.1 “O Crack”: Epidêmico, Avassalador e Diabólico

O uso de drogas é uma prática antiga e universal, pois as mesmas podem ser fonte de interesse, atração, medo, entre outros sentimentos e significados culturais que as mesmas provocam nos indivíduos. Assim, dependendo do momento histórico, da cultura predominante de cada época, o uso de drogas pode ser encarado de diversas maneiras, sendo visto, algumas vezes, ora como um problema ou doença, ora como uma solução, ou mesmo cura (BUCHER, 1992). Atualmente, a questão do uso de drogas, especialmente do crack, entrou na pauta das discussões de saúde e segurança pública, visto que o uso inadequado de substâncias psicoativas tem representado uma grave ameaça à saúde de inúmeros brasileiros e tem sido relacionado, principalmente na mídia, à elevação dos índices de violência e criminalidade em nossa sociedade.

No início da década de 80, pesquisadores americanos descreveram uma nova e potente forma de uso de cocaína - a inalação do vapor expelido da queima de pedras, produzidas a partir do “cozimento” da pasta base combinada com bicarbonato de sódio (KESSLER; PECHANSKY, 2008). O nome crack tem uma

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origem curiosa. Quando queimada em um cachimbo de vidro ou qualquer outro recipiente, a pedra produz um ruído típico de estalo, produz o som da palavra crack, o que deu origem ao seu nome (HORTA et.al., 2009).

A história do crack no Brasil seguiu uma trajetória semelhante a dos Estados Unidos, porém com um atraso de aproximadamente 10 anos. Os primeiros relatos sobre o consumo de crack surgiram em 1989 entre crianças que viviam nas ruas do centro de São Paulo (HORTA et.al., 2009). Hoje, a mídia brasileira tem relatado casos de uso de crack também nas classes média e alta, mas ainda faltam evidências científicas de que esse índice seja alarmante (KESSLER; PECHANSKY, 2008). Em 2008, foi publicada uma revisão sobre o perfil dos usuários de crack brasileiro, confirmando que realmente a maior parte dos usuários é jovem, de baixa renda e do sexo masculino (DUAILIB et.al., 2008)

Uma pesquisa recente apontou que o uso de cocaína costumava ser predominantemente entre pessoas das classes média e média alta, mas que ultimamente a cocaína tem atingido cada vez mais as classes média-baixa e baixa, através do uso intravenoso e do crack (CARLINI et al.,1995). Conforme o Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil - 2001 (CARLINI et al., 2002), a Região Sul do país apresenta a maior prevalência de “uso na vida” de cocaína aspirada e de crack. Independente dos números, o que sensibiliza na expansão do uso de crack é a velocidade da deterioração da vida mental, orgânica e social dos sujeitos que fazem uso da droga (KESSLER; PECHANSKY, 2008).

Para Leite et al. (1999) e publicações da SENAD (2006), o consumo de crack produz um aumento rápido de cocaína no sangue, causando efeitos psíquicos. Os efeitos iniciais observados no usuário de crack são euforia, sensação de bem-estar e desejo de repetir o uso. Porém, a continuidade do uso pode levar à ansiedade, hostilidade e depressão extrema. Continuando o uso em doses mais altas, pode-se perceber ilusões visuais e auditivas, hipervigilância, delírios paranóides, alucinações e a psicose cocaínica. Assim como os efeitos agradáveis, os desagradáveis são igualmente mais intensos. Além disso, o crack é a forma de cocaína com maior potencial de provocar consumo compulsivo e dependência.

A partir dessas considerações gerais sobre a droga crack, voltamos nossa atenção agora ao discurso midiático sobre esse fenômeno. O título da série “A

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epidemia do crack” nos fornece dois elementos fundamentais para a análise formal do discurso sobre o crack: o termo epidemia e a própria palavra “crack”. O termo “epidemia” refere-se, geralmente, a doenças infecciosas, de caráter transitório, que ataca simultaneamente um grande número de pessoas em um curto espaço de tempo. A endemia, por sua vez, caracteriza-se pelo aparecimento de menor número de casos ao longo do tempo. Porém, a diferença entre epidemia e endemia não é somente quantitativa. O que define o caráter endêmico de uma doença é o fato de ser a mesma peculiar a um povo, região ou país. Quando a epidemia ou endemia atinge grandes proporções, espalhando-se para outros países e continentes, têm-se a pandemia (REZENDE, 2004).

Fala-se numa epidemia do crack, mas não se discute criticamente uma epidemia, ou melhor, numa “pandemia do desemprego”, por exemplo. O termo epidemia, como vimos, refere-se a uma doença que ataca ferozmente e velozmente uma população (REZENDE, 2004), ou seja, as pessoas são passivas diante de uma doença que se alastra. A palavra epidemia também se refere à ordem do biológico. Mas “o crack” não é transmissível por um vírus ou bactéria, as pessoas não são acometidas por um mal súbito que as ataca. Há, aqui, a presença de uma estratégia ideológica denominada passivização. Essa estratégia apaga os atores e a ação e tende a “representar processos como coisas ou acontecimentos que ocorrem na ausência de um sujeito que produza essas coisas” (THOMPSON, 2007), concentrando a atenção do leitor em certos temas com prejuízos de outros.

O crack é apresentado como um “ser”, como algo que tem vida própria e que invade os lares para destruir as famílias. Várias são as definições apresentadas pelos autores: a droga que escraviza em segundos; que zomba das esperanças de recuperação; que corrói famílias; que mata mais do qualquer outra droga; e que afunda dependentes na degradação moral e no crime (ZERO HORA, 2008). O sujeito de todas essas ações é “o crack”, o usuário e/ou o dependente da droga é o objeto. Ao evidenciar o significado do termo epidemia, nota-se que só podemos falar em “epidemia do crack” mediante a utilização da estratégia de passivização, que coloca os sujeitos numa posição passiva, que nada podem fazer diante da ameaça de uma “nova doença”.

A palavra “crack" tem, na língua inglesa, diversos significados: rachadura, defeito, estalo ou a própria droga “crack”. Esse termo foi utilizado no período da

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Grande Depressão no fenômeno “Crack da bolsa de valores”, ocorrido em 1929 na cidade de Nova York. Milhões de títulos foram colocados à venda sem que aparecessem compradores. Os preços dos títulos desabaram. Para saldar compromissos, os bancos norte-americanos deixaram de abrir linhas de crédito aos países estrangeiros e passaram a repatriar os capitais que tinham investido no exterior (MELLO; COSTA, 2008).

Empréstimos não foram renovados e as dívidas passaram a ser executadas. A seqüência de falências foi impressionante. A onda de desemprego aumentou exponencialmente. Sem empregos, não havia rendas disponíveis, não havia consumo, não havia procura e, por conseguinte, não havia produção e empregos. Este é o ciclo terrível: a crise a alimentar a crise que adquire uma dimensão mundial. Queda na produção industrial, queda no preço de produtos agrícolas. Países como Brasil, México e Argentina chegaram a ter que destruir estoques agrícolas para tentar sustentar preços no mercado mundial. O comércio internacional ficou totalmente desorganizado (MELLO; COSTA, 2008).

A palavra crack é um significante de dois momentos da era moderna: “o crack da bolsa de valores” e “a epidemia do crack”. Assim como a bolsa de valores quebrou, sofreu uma rachadura, a droga crack também provoca quebras - nas famílias, nos usuários, na sociedade. Ambas as „quebras‟, em diferentes momentos, constituem um „ciclo terrível‟: a crise a alimentar a crise; a droga a alimentar a droga, que alimenta as desigualdades sociais, a criminalidade, a violência estrutural.

A matéria que abre a série “A Epidemia do Crack” (ZERO HORA, 2008) apresenta esse ciclo: o crack, como um “ser”, atingiu o estado com uma fúria avassaladora e atinge a vida de todos (inclusive da elite); quem faz uso do crack torna-se viciado; efeito potente e veloz (explicação biológica da dependência) que causa prazer intenso e efêmero, levando o usuário à urgência da repetição e ao precipício da fissura; o usuário se desfaz de bens materiais e começa a cometer crimes; o impacto sobre a violência é avassalador, a delinqüência torna-se indissociável do vício; a polícia não encontra forças para reagir; aumento de internações de usuários de crack e falta de leitos; a situação torna-se epidêmica; índice de recuperação zero; o crack, como um “ser”, transforma o sujeito em objeto. E o ciclo se fecha.

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Num primeiro momento identifica-se a utilização da estratégia de universalização: o crack atingiu o estado com uma fúria avassaladora e atinge a vida

de todos, inclusive da elite (ZERO HORA, 06 de julho de 2008, p. 29). Através da

universalização “acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos, e esses acordos são vistos como estando abertos, em princípio, a qualquer um que tenha a habilidade e a tendência de ser neles bem sucedido” (THOMPSON, 2007, p. 83). Ou seja, um „acordo‟ institucional da Secretaria Estadual de Saúde define a situação como epidêmica - todos são vulneráveis - e a mídia se encarregou de difundir e alarmar a população, fazendo com que o assunto se torne um interesse de todos.

Quando o problema passa a ser de todos, torna-se mais fácil criar um inimigo comum: o crack. É contra o crack que precisamos lutar, ele precisa ser expulso do meio social para que a „paz‟ volte a triunfar. Para criar esse inimigo, a mídia vale-se de uma estratégia denominada „expurgo do outro‟. Essa estratégia envolve “a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo” (THOMPSON, 2007, p. 87). Por isso também é que podemos questionar o termo „epidemia‟: na epidemia do crack, o crack pode ser comparado ao Aedes Aegypt na epidemia da dengue. A diferença é que o mosquito se procria em condições específicas que podem ser combatidas pela população e essas condições são veiculadas na mídia. Como o crack é apresentado como um “ser”, causador de sofrimento, violência e aumento nos índices de criminalidade, não é possível delimitar um contexto ou condições físicas de “procriação”. Então, a quem ou o que vamos atacar? As pedras?

O estigma de droga da periferia não tem mais confirmação na realidade: a pedra rompeu barreiras e atingiu a elite. O crack explodiu na favela por tratar-se de uma droga poderosa, de fácil acesso e de baixo custo. O crack cruzou a fronteira da favela porque é uma droga que tem um alto poder viciante, é uma promessa de efeitos mais vigorosos e atrai usuários que querem experimentar sensações mais fortes (ZERO HORA, 2008).

As razões que levam ricos e pobres a experimentarem a droga podem até ser diferentes em alguma medida, mas, após o uso, em alguns dias o crack alinha-os na mesma ruína. A diferença fundamental entre ricos e pobres viciados em crack é o

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montante de dinheiro que cada um tem a perder na droga (ZERO HORA, 2008). Ou seja, os pobres têm a tendência de se tornarem criminosos mais rapidamente, pois ao ter um montante de dinheiro menor, terão que roubar de alguém para sustentar seu vício. Da universalização do problema, percebe-se um movimento de diferenciação. Através dessa estratégia “a ênfase que é dada as distinções, diferenças e divisões entre pessoas e grupos, apoiando as características que os desunem e os impedem de constituir um desafio efetivo às relações existentes, ou um participante efetivo no exercício do poder” (THOMPSON, 2007, p. 87).

Mesmo com o esforço do jornal em apresentar a epidemia do crack como um fenômeno universal, ele acaba, „naturalmente‟, evidenciando diferenças entre classes. O crack „alinha‟ pobres e ricos na mesma ruína, mas os motivos que os levam ao uso são diferentes: ricos experimentam por curiosidade e pobres porque são pobres mesmo. A outra diferença apontada é o montante de dinheiro que cada um tem a gastar com a droga. Mas o que chama mais atenção é a afirmação de que o crack perdeu o status de droga de periferia. Na verdade não perdeu seu status, pois a pedra rompeu as barreiras das favelas para invadir o espaço da elite - ela continua com suas características marginais.

É interessante notar que foi o crack que rompeu os limites das favelas e atingiu a elite. Ao apresentar um estudante, um juiz de direito e um médico que caíram na ruína do vício, a matéria os coloca numa posição passiva: o estudante acabou experimentando sem saber; o juiz, depois de ter passado pelo álcool, maconha e cocaína, foi apresentado ao crack por um traficante; o médico que passou uma década sucumbindo e voltando do álcool, da maconha e da cocaína, defrontou-se com a “fase final”: o crack. Ou seja, foi o mundo da favela que invadiu os bairros e lares das classes média e alta, levando o que há de pior no submundo em que os “vileiros e marginais” vivem (ZERO HORA, 2008). Há, novamente, uma passivização dos sujeitos aqui, tornando-os vítimas que não tiveram outra opção, afinal o álcool, a maconha e a cocaína já não lhes satisfaziam da mesma forma.

Essas diferenças entre „ricos‟ e „pobres‟ nos remetem a uma noção de relações de classes. Na tradição sócio-histórica há duas ênfases principais que tratam das relações de classe: 1) a classe como fundamento do conflito, como uma fonte de interesse. É a base estrutural para a formação de atores coletivos engajados em uma luta; 2) a classe como fundamento da trajetória histórica. A

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estrutura de classe é uma possível base para compreender a trajetória de possibilidades históricas específicas (GUARESCHI, 1992). Nesse caso, as duas ênfases nos ajudam a pensar a relação de classe estabelecida nas matérias.

Ao universalizar o problema, as formas simbólicas ocultam e/ou impedem a noção de consciência de classe. A consciência de classe se refere aos aspectos da consciência que informam as intenções dos atores nas lutas de classe. Desconsiderando a consciência de classe, os atores sociais não atentam para seus interesses de classe e das práticas para concretizá-las (GUARESCHI, 1992). Ou seja, se o problema é de todos, estamos nas mesmas condições e não há o que fazer nesse momento. Ao diferenciar as classes de uma forma grosseira, os interesses e a capacidade de classe são afetados. Quando se justifica o uso de crack pela condição de pobreza, as formas simbólicas podem enfraquecer o poder e a habilidade das classes de conseguir concretizar seus interesses (GUARESCHI, 1992), por exemplo, investimento maciço em infra-estrutura e políticas públicas de saúde e segurança no local onde vivem.

A matéria intitulada “Aprisionados pela droga” (ZERO HORA, 10 de Julho de 2008, p. 46) apresenta como personagens os usuários C., A. e D. e suas respectivas histórias. Suas histórias estão atreladas ao personagem principal: o crack. Essas histórias parecem servir apenas como ilustração para o que se apresenta na seqüência da matéria - um quadro que explica a ação do crack no organismo, justificando a rápida dependência daqueles que experimentam a droga e que ficam aprisionados a ela. O usuário C. só pensava em matar os traficantes, acabar com eles, enquanto estava no velório do primo, que se enforcara para fugir do crack - poderíamos dizer que foi para fugir da vida! Desabalou do cemitério para a boca-de-fumo, decidido a descarregar sua cólera. Ao chegar na boca e ficar frente a frente com o traficante, C. sentiu que a voz falhava, que a decisão fraquejava. “Quero

crack - ouviu-se pedir” (ZERO HORA, 10 de Julho de 2008, p. 46). Diante do crack

C. já não era mais nada! A droga o aprisionou. “O crack tomou o controle de mim” (ZERO HORA, 10 de Julho de 2008, p. 46).

O usuário A., 32 anos, da Capital, roubou roupas e brinquedos dos filhos para trocar por droga. Ele recebeu vinte e oito mil reais de uma indenização trabalhista. Daria para reformar a casa, comprar presentes para os filhos, ajudar a mãe, empregada doméstica. Daria. Ele sumiu por um mês e reapareceu duro. Ameaçado

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de morte por uma dívida R$ 200 com o traficante, a mãe acabou pagando o valor. “O

crack é diabólico” (ZERO HORA, 10 de Julho de 2008, p. 46). A clínica onde D., de

16 anos e de Gravataí, se achava há alguns dias era sua sexta tentativa de reabilitação. O que levou o rapaz a pedir socorro mais uma vez foi seu envolvimento com o tráfico. Após cinco anos de furtos e detenções, parou na casa do traficante para aprender o ofício. Escapou por pouco, dias depois o traficante foi preso. “Se

pudesse vender minha mãe, até ela eu teria vendido por causa do maldito desse

crack” (ZERO HORA, 10 de Julho de 2008, p. 46).

Desejado, diabólico e maldito, o crack passou os últimos anos impondo derrotas a C., A. e D.. As expressões em negrito estavam assim na matéria - para chamar a atenção do leitor aos significantes querer, diabólico e maldito. O crack impõe derrotas, „consome a cabeça‟ do usuário, „toma o controle‟ e os deixa com medo. O tratamento não funciona e o número de re-internações é elevado. Mas é só virar a página do jornal para encontrar a explicação para tudo isso: é uma explicação biológica. Ainda não inventaram uma vacina ou remédio contra o crack!

O crack impõe derrotas porque sua fissura é “avassaladora”. Essa palavra aparece inúmeras vezes no decorrer das matérias e merece uma maior atenção. A palavra avassaladora vem do verbo avassalar, que, no dicionário Aurélio, tem cinco significados: 1) tornar vassalo; reduzir a vassalagem; 2) imperar em; dominar; 3) oprimir, vexar; 4) cativar, seduzir; dominar; 5) causar destruição a; arrasar. Os cinco significados do dicionário se aplicam ao caso do crack, conforme apresentado pela mídia. O crack reduz o usuário à vassalagem, domina o organismo do usuário, oprime ele e sua família, cativa e seduz no momento da fissura e da recaída, e causa destruição às famílias, às cidades e aos usuários.

Na Idade Média, o vassalo era aquele que dependia de um senhor feudal, a quem oferecia fidelidade e trabalho em troca de proteção e um lugar no sistema de produção (MELLO; COSTA, 2008). O crack, senhor feudal, estabelece uma relação de dependência com o usuário, o vassalo, tornando-o fiel. Mas qual lugar o usuário-vassalo ocupa no sistema de produção? De qual sistema de produção estamos falando? Hoje o mundo vive o sistema de produção capitalista, do liberalismo (neoliberalismo), que, além de um sistema econômico, é um sistema de produção de identidades, de subjetividades. Ou se está dentro dele ou se está fora. O lugar que o usuário-vassalo ocupa é o lugar do fora, um lugar de exclusão e marginalização -

Referências

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