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Crack e (É) Criminalidade: “Todo Crackeiro é Criminoso”

No documento Romanini TCC Psicologia 2009 (páginas 33-44)

CAPÍTULO 2 O DESENVOLVIMENTO DAS SOCIEDADES MODERNAS E

3.2 Crack e (É) Criminalidade: “Todo Crackeiro é Criminoso”

“A violência é movida a crack no Rio Grande do Sul” (ZERO HORA, 07 de Julho de 2008, p. 31). É essa frase que inicia a matéria do segundo dia da série “A Epidemia do Crack”. Além de ser uma questão de saúde pública, o crack tornou-se num problema de segurança pública. Cada pedra queimada serve de combustível para uma engrenagem que impulsiona o tráfico, os furtos, assaltos e assassinatos. Trata-se de um mecanismo perverso, no qual o crime desesperado alimenta o crime organizado. O crack empurra o usuário ao crime como a saída para as crises de abstinência. Não é só o usuário que comete crimes, do outro lado, está o traficante, que mata outros na guerra pelos pontos de tráfico e usuários que devem valores insignificantes (ZERO HORA, 2008).

Todos os dados e depoimentos apresentados nas matérias têm uma função bem clara: justificar e legitimar o diagnóstico feito em alguns dos bairros mais

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afetados pela violência no estado - o crack é o culpado pela violência que assola o Estado, é o combustível da criminalidade. Em resposta a esse diagnóstico, foi desenvolvido o projeto-piloto do Programa de Prevenção da Violência, uma parceria do Piratini e das prefeituras (ZERO HORA, 2008). O projeto teve início no ano de 2007, nos bairros em situação de maior gravidade de cinco municípios que figuravam na lista dos mais violentos. Nos locais aos quais esse projeto se vinculou, o crack sempre apareceu como o principal fator da violência. A conclusão dos responsáveis é de que combater a violência significa combater o crack (ZERO HORA, 2008). Aqui há um fato que é inquestionável: crack e violência andam juntos. Porém, a matéria nos mostra que crack é sinônimo de violência, ou melhor, que o crack produz violência, como se não houvesse violência antes da “epidemia do crack”.

Ao igualar crack e violência, usuário e criminoso, o jornal utiliza uma estratégia ideológica que permeia quase todas as matérias: a naturalização. Através dessa estratégia “um estado de coisas que é uma criação social e histórica pode ser tratado como um acontecimento natural ou como um resultado inevitável de características naturais” (THOMPSON, 2007, p. 88), reduzindo a uma simples relação causal um fenômeno tão complexo como é a relação entre o uso de drogas e a violência.

Antes de pensarmos na relação causal entre o uso de drogas e a violência, torna-se necessária uma breve elucidação do que se quer dizer com violência e criminalidade/delinqüência. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) adota uma definição bastante ampla que toma algumas ações sociais como indicativas de violência. Assim, são consideradas violências ou situações violentas tanto uma reação como “escândalo, discussão ou bronca exagerada”, “dano ao patrimônio de moradores de um domicílio”, agressão física ou ameaça de agressão com soco, tapa, empurrão, com uso de objetos, arma e a relação sexual forçada, ou sua tentativa.

No contexto da saúde, sabe-se que a violência social, em virtude de suas conseqüências, enquadra-se na categoria Causas Externas (V01 a Y98 na 10ª revisão) no sistema de Classificação Internacional das Doenças - CID 10 (OMS, 1993). Tal categoria abrange uma longa lista de eventos que podem ser resumidos como homicídios, suicídios e acidentes em geral. Compreende-se que esse tipo de

classificação “nem de longe consegue dar conta da dimensão e complexidade da violência, um fenômeno polissêmico, de explicação contraditória, mas permite trabalhar com indicadores capazes de informar e subsidiar ações políticas e sociais” (MINAYO; DESLANDES, 1998, p. 36).

Em relação à delinqüência, especialmente por parte da mídia, este termo define qualquer grupo de jovens que pratiquem diferentes infrações (MARTINS; PILLON, 2008). A definição jurídica de delinqüente é o indivíduo que delinqüiu, ou seja, que é culpado por uma infração à lei penal, por um delito ou crime, que pode assumir a forma de roubo, homicídio ou de outro ato violento (BRASIL, 1990).

Foucault, em Vigiar e Punir (2006), vai além dessas definições de delinqüência propostas. Ao definir a delinqüência como um estilo de vida que inclui o cometimento de delitos com violência, uso e abuso de substâncias entorpecentes e a manifestação de uma personalidade acometida de psicopatias graves, Foucault (1997) nos mostra que a definição de delinqüência já é identificada com um estilo de vida, como algo que toma conta do sujeito por inteiro, definindo sua identidade. Essa ampliação do conceito de delinqüência contamina a vida dos sujeitos. Em nossa sociedade esse termo assume uma definição e uma abrangência ainda mais amplas, à medida que “uma vez que muitos adolescentes são considerados delinqüentes apenas pelo fato de serem pobres, vestirem-se mal, andarem freqüentemente pelas ruas, não terem trabalho, não estarem freqüentando a escola, ou ainda por terem vivido temporariamente em alguma instituição assistencial” (ARPINI, 2003, p. 66).

A violência e a criminalidade são fenômenos de difícil conceituação e tornam- se mais complexos ainda quando associados ao uso e abuso de drogas. Os efeitos paradoxais das drogas, capazes de proporcionar desde êxtases prazerosos a estados de depressão, de viabilizar a inserção em grupos sociais e de conduzir a situações de exclusão social, levam a uma mistificação em torno da questão das drogas, exercendo ao mesmo tempo fascínio e provocando medo (MINAYO; DESLANDES, 1998).

Apesar dos diversos estudos e evidências empíricas associando uso de drogas e violência, há muita incerteza quanto às explicações causais. Uma questão que não está suficientemente explicada é se a presença de álcool ou outras drogas nos eventos violentos permite inferir que elas tenham afetado o comportamento das

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pessoas envolvidas (MINAYO; DESLANDES, 1998). Ou seja, não é possível saber se essas pessoas em estado de abstinência não teriam cometido as mesmas transgressões. Também não é possível definir, a partir das pesquisas empíricas, se o uso de drogas atua como um fator associado a outros, desencadeando comportamentos violentos, ou se é o fator causador (tal como é apresentado nas matérias analisadas). O que é possível inferir, apenas, é que há uma alta proporção de atos violentos quando o álcool ou as drogas estão presentes entre agressores e vítimas (MINAYO; DESLANDES, 1998).

A questão causal torna-se ainda mais complexa quando se trata de relações de gênero. Nas matérias analisadas, o perfil dos usuários agressores é: sexo masculino, jovem e pobre. O jornal apresenta alguns casos de homens de classes mais favorecidas economicamente e de mulheres usuárias, mas esses não são identificados como agressores, apenas como vítimas. Familiares, principalmente a mãe, e cidadãos „comuns‟ também figuram na lista das vítimas. Nesse sentido, as complexidades apontadas sugerem que

a violência interpessoal que ocorre sob o efeito de substâncias é contextualizada, ou seja acontece em locais específicos, sob normas e regras específicas de determinados grupos e diante de expectativas que alimentam e são alimentadas dentro desses grupos. Para encontrar nexo causal entre determinadas substâncias e violência seria necessário saber se os comportamentos e atitudes violentas ocorreriam ou não no interior desses segmentos, caso a droga e o álcool não estivessem presentes. As evidências empíricas sugerem que drogas ilícitas e álcool desempenham importante papel nos contextos onde são usados, porém sua importância fica em grande medida dependente de fatores individuais, sociais e culturais (MINAYO; DESLANDES, 1998, p. 38).

Tendo como foco mostrar como a droga alimenta o crime, uma das matérias relata a trajetória de um adolescente de 16 anos, de Porto Alegre, evidenciando “como a tragédia individual da dependência conduz ao drama coletivo da

insegurança” (ZERO HORA, 07 de Julho de 2008, p. 32). Há, aqui, um contraponto

entre “tragédia individual da dependência” e “drama coletivo da insegurança”. Tragédia, segundo a Wikipédia (2009b), é uma forma de drama, freqüentemente envolvendo um conflito entre uma personagem e algum poder de instância maior. A palavra drama vem do grego e significa ação (ação só se for das pedras de crack, pois os usuários não são sujeitos de sua ação, é o crack que age sobre eles). Nesse caso, os personagens são os usuários de crack, sempre em conflito com o próprio

crack, com a dependência ou com a sociedade como um todo (poderes de instância maior). A dependência, dessa forma, é vista como um problema individual, uma tragédia individual (a palavra individual apenas reforça o sentido de tragédia) e as causas e soluções esperadas parecem também ser em nível individual.

A história do adolescente é contada em atos, como numa peça de teatro, num drama. O primeiro ato é intitulado de “O drama”, no qual o jovem confronta-se com o vício e com a criminalidade. Se ele voltar para casa, depois da internação, ele vai “voltar para a pedra e para os assaltos” (ZERO HORA, 07 de Julho de 2008, p. 32). O segundo ato, “O tráfico”, mostra seu envolvimento profissional com o tráfico. Seu salário era algumas pedras de crack. O terceiro ato é composto de quatro títulos que podem ser apresentados como “A criminalidade”. O financiamento da boca através de furtos de veículos, assaltos e arrombamentos, ataques a ônibus e assassinatos envolvendo a compra e venda de crack se tornaram atividades integrantes do cotidiano do adolescente. O último ato, chamado de “Os desaparecidos”, evidencia os freqüentes desaparecimentos de usuários de crack, algumas vezes por morte ou prostituição. A irmã desse adolescente sumiu de casa há dois anos (ZERO HORA, 07 de Julho de 2008, p. 32).

A passagem da tragédia individual da dependência química ao drama coletivo da insegurança revela uma estratégia ideológica utilizada nessa construção simbólica: a narrativização. Ao narrativizar, criam-se “histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável. De fato, as tradições são, muitas vezes, inventadas a fim de criar um sentido de pertença a uma comunidade e a uma história que transcende a experiência do conflito, da diferença e da divisão” (THOMPSON, 2007, p. 83). Ou seja, a história desse adolescente foi contada de tal forma que ela se aplica a todos os sujeitos, daquela classe social, da mesma maneira. A história dele serve para legitimar a idéia de uma profecia auto-realizável: todos os meninos que moram em favelas ou nos subúrbios de grandes cidades e que fizerem uso de crack, vivenciarão, necessariamente, os atos desse drama.

Ao lado do título da matéria “Assassino aos 11 anos” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p. 36), há um quadro intitulado “Os primeiros passos para o crack”. Segue um subtítulo, com letras menores, mas destacado em negrito: “O

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denomina como padrão é classificado em quatro “categorias” - as causas, o início, delitos leves e delitos graves. As causas se referem a um cenário para que o vício se estabeleça - a combinação entre predisposição e famílias desestruturadas (no próximo capítulo discutirei a noção de família desestruturada). O início do uso geralmente acontece por intermédio de algum amigo. Depois largam a escola, pedem dinheiro no semáforo, cometem pequenos furtos em casa e a seqüência dos acontecimentos se dá de acordo com o drama apresentado anteriormente. Consumindo crack em grande quantidade e movidos por fissuras „avassaladoras‟, os usuários „evoluem‟ na escala de delitos, eles passam a cometer delitos graves - envolvimento com o tráfico, assassinatos, latrocínios, prostituição, etc. (ZERO HORA, 2008).

Nessa questão encontramos, explicitamente, a estratégia de padronização. Com a padronização “formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão, que é proposto como um fundamento partilhado e aceitável de troca simbólica” (THOMPSON, 2007, p. 86). Ao padronizar as relações entre uso de crack e contextos de violência desconsideram-se as particularidades desse uso em determinados grupos sociais. Pesquisas realizadas com jovens de classes populares, no contexto da rua, por exemplo, evidenciam que o uso do crack passava a fazer parte do circuito da rua, no qual funcionava como um símbolo de distinção (ADORNO, 2008).

Na etnografia de rua presenciamos crianças e jovens que embora acabassem de acordar de sua dormida embaixo de uma marquise ou próximo ao meio fio, passavam a gritar e se referir como violentos e usuários de crack, usando uma estratégia ao mesmo tempo defensiva, de ataque, para atemorizar as pessoas que passavam e assimilar por efeito reflexivo o que a mídia divulgava a respeito da droga da qual faziam uso (ADORNO, 2008, p.6).

O padrão de uso e dependência do crack apresentado pelo jornal nos mostra outro aspecto relevante: o continuum que vai da experimentação da droga ao tráfico. A „fissura avassaladora‟ leva o usuário a cometer crimes e, posteriormente, a se envolver com o tráfico de drogas. Nesse contexto de mercado ilegal, uma das mais costumeiras associações entre drogas e violência é a chamada „motivação econômica‟, ou seja, o crime é visto como uma fonte de recursos para a compra de drogas. Porém, a motivação econômica é uma explicação apenas parcial do

complexo universo que constitui o mercado de drogas (MINAYO; DESLANDES, 1998).

O mercado de drogas gera ações violentas entre vendedores e compradores, entre grupos de usuários e nas „guerras‟ entre traficantes, sob uma quantidade enorme de pretextos e circunstâncias. “O narcotráfico potencializa e torna mais complexo o repertório das ações violentas: aquela agenciada pela polícia e pelas instituições de segurança do estado; a violência social dispersa; a promovida por grupos de extermínio e também das gangs juvenis” (MINAYO; DESLANDES, 1998, p. 38).

Nesse sentido uma das matérias traz um depoimento que ilustra a forma como o tema vem sendo abordado. Álvaro Steigleder Chaves, do Departamento Estadual do Narcotráfico - DENARC afirma: “O crack criou desafios novos. Antes,

traficante era traficante e assaltante era assaltante. Mas a droga é tão rentável que criminosos de outras áreas estão migrando para o tráfico. Chego a receber telefonemas de usuários pedindo socorro. Um deles invadiu nosso pátio de carro, desesperado, dizendo que apenas nós podíamos salvá-lo” (ZERO HORA, 07 de

Julho de 2008, p. 31).

De quais criminosos se está falando? Áreas? Que áreas? Com a utilização da estratégia denominada sinédoque, usa-se “um termo que está no lugar de uma parte, a fim de se referir ao todo, ou usa um termo que se refere ao todo a fim de se referir a uma parte” (THOMPSON, 2007, p. 84). Criminosos e áreas são termos usados para se referir ao todo (a toda forma de criminoso e de crime), quando na verdade a questão é o tráfico, o negócio rentável do tráfico de drogas. Se o problema é tráfico, a única instituição que pode “salvar” o usuário é o Departamento de Narcotráfico. Aqui notamos outra estratégia, a eufemização, através da qual “ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração positiva” (THOMPSON, 2007, p. 84). Então, ao considerar as características peculiares do crack e relacioná-lo a toda forma de criminoso e de crime, as ações „salvadoras‟ do DENARC passam a ser vistas como algo positivo, evidenciando a defesa de um modelo repressivo em detrimento da perspectiva da prevenção e tratamento adequados.

A relação entre crime e uso de crack é definida conforme o gênero do sujeito. Há uma naturalização das relações de gênero: meninos cometem crimes - assaltos,

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homicídios, ou seja, são, geralmente, os agressores; enquanto as meninas acabam se prostituindo para conseguir a droga. Uma das matérias conta a história de uma adolescente de 15 anos, moradora da zona norte de Porto Alegre (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008). A primeira vez (relação sexual) dela foi com um traficante. O segundo homem era quatro décadas mais velho e pagou R$ 40 pelo sexo feito dentro do carro. Nas duas ocasiões, “a menina de classe média cedeu o corpo, o

único bem que ainda restava, para saciar o desejo por crack” (ZERO HORA, 08 de

Julho de 2008, p. 37). Ela estava internada em uma casa de recuperação, mas foi expulsa devido a problemas de comportamento. “Sua trajetória ilustra a derrocada

pessoal que leva do crack à degradação” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p.

37). O crack ainda não é a degradação? Até então, o jornal nos mostrava que crack e degradação andam juntos.

A história de uma “pedreira” de 23 anos, que foi baleada nas costas por um cliente, depois de uma discussão sobre o local do programa também foi apresentada nessa matéria (ZERO HORA, 2008), com o intuito, parece-nos, de legitimar essa relação de gênero. Ela estava sob efeito do crack há 72 horas. Foi internada num hospital da Capital e dias depois de dar uma entrevista a Zero Hora, morreu. É a mesma jovem da foto da matéria, que é chamada de “prostituta viciada em crack” (ZERO HORA, 08 de Julho de 2008, p. 37). A partir dessas duas histórias a matéria nos mostra algumas “conseqüências” da relação entre o crack e a prostituição: uma multiplicação das zonas de prostituição nas maiores cidades do Estado; as meninas submetem-se à exploração sexual para sustentar o vício; para as prostitutas que não se drogam e estão no ofício há mais tempo, a invasão das meninas do crack significou declínio no número de clientes e no preço; a violência também aumentou nas ruas com a chegada das “pedreiras” - viraram rotina meninas chapadas se arrastando no chão ou chorando por terem sido agredidas por um cliente (ZERO HORA, 2008).

Nas sociedades modernas a prostituição vem sendo pautado por valores morais e desigualdades de gênero. De modo geral, não há consenso nas teorias de gênero sobre a questão. A discussão gira em torno de dois pólos principais: a prostituição é considerada um fato negativo por reforçar a supremacia e dominação masculina e perpetuar o mito de que as mulheres devem estar disponíveis à vazão

dos desejos sexuais masculinos ou, então, é vista como uma forma de autonomia e liberdade sexual que constitui ameaça ao controle patriarcal (COSTA, 2009).

Cenas de marginalidade, violência, degeneração física, moral e transgressão de normas sociais relacionadas com a prostituição são apresentadas pelo Jornal Zero Hora (2008) nessa série de reportagens e, além disso, são paisagens que persistem no imaginário coletivo quando o assunto remete ao trabalho sexual ou ao consumo de drogas. A narrativa histórica revela que o consumo de psicoativos (como o álcool, a cocaína ou a morfina) foi tolerado enquanto seu uso fez parte dos costumes das classes dominantes, passando a ser atacado pela mídia ou por setores moralistas quando atingiu prostitutas, negros, mestiços e demais indivíduos dos estratos populares (COSTA, 2009).

Essa história começa no século XIX, com o nascimento da idéia de sexualidade, do conceito de dependência de drogas e do próprio “drogado”, simultâneo a criação de uma série de outros, como o homossexual, a ninfomaníaca, etc. Este período foi marcado pela crescente intervenção e regulação do Estado nos hábitos da população. A disciplinarização dos corpos, a medicalização da população e os modelos epidemiológicos orientavam-se pelas políticas sexuais e raciais, preocupadas com a higiene social e a profilaxia moral. As campanhas de erradicação dos vícios, do alcoolismo, das sexualidades desviantes, inclusive da prostituição e das doenças contagiosas se propunham a evitar a degeneração da população. Considerados perigosos por seus hábitos, muitos grupos sociais passam a sofrer vigilância por parte da sociedade “sã”, sobretudo por contrariar normas ou pela relação com o uso e comercialização dos “venenos do corpo e da alma” (CARNEIRO, 2007).

Conforme uma pesquisa realizada com profissionais do sexo da cidade de Campo Grande (COSTA, 2009), o consumo de substâncias psicoativas, inclusive do crack, adquire sentidos direta ou indiretamente relacionados à esfera do serviço sexual: descontrair, relaxar, aliviar a tensão, encorajar a manter relação sexual, facilitar a negociação do programa, seduzir, sentir-se protegida, agradar o freguês, ou para agüentar uma vida turbulenta, entre outros. Esse estudo aponta que a freqüência do uso de substâncias não decorre simplesmente por influência da dependência química ou em decorrência de características patológicas individuais, mas por um tipo particular de interação e relação estabelecido no ambiente do

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comércio do sexo feminino (COSTA, 2009), de modo semelhante ao que ocorre com os meninos de rua, que fazem do crack um símbolo que os distingue dos demais no circuito da rua.

A perspectiva de gênero vem sendo, então, indicada como uma abordagem para reconhecer o impacto de construções sociais e culturais da masculinidade e da feminilidade sobre o uso de drogas em grupo ou individualmente, bem com como sua relação com contextos sociais de violência e de prostituição (OLIVEIRA, 2006). Ainda há uma tendência à homogeneização, como se todos os usuários pertencessem a uma mesma categoria social e devessem ser vistos a partir de um mesmo enfoque. Nesse sentido, torna-se necessário enfatizar que:

mulheres com problemas de uso e abuso de drogas têm apresentado situações e necessidades específicas, que nem sempre são reconhecidas e satisfeitas pelos serviços destinados à assistência de pessoas usuárias de drogas. Essas situações e necessidades, de um modo geral, estão associadas com: gravidez; responsabilidades nos cuidados com crianças; trabalho com sexo; traumas decorrentes de abuso físico e sexual experienciados na infância e/ou adolescência; o sistema judiciário; e, ainda, com níveis mais altos de problemas de saúde mental e crônica em relação

No documento Romanini TCC Psicologia 2009 (páginas 33-44)

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