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O combate ao Crack: A ideologia da repressão

No documento Romanini TCC Psicologia 2009 (páginas 53-64)

CAPÍTULO 2 O DESENVOLVIMENTO DAS SOCIEDADES MODERNAS E

3.4 O combate ao Crack: A ideologia da repressão

O Ministério da Saúde, quando estabeleceu a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas em 2003, reconheceu que houve um atraso histórico do Sistema Único de Saúde no enfrentamento de problemas associados ao consumo de álcool e outras drogas. A atual política adota uma abordagem não mais comprometida com o controle e a repressão, mas sim com a redução dos danos e dos prejuízos. As primeiras intervenções do governo brasileiro dataram no início do século XX e foram constituídas pela criação de um aparato jurídico-institucional (MACHADO; MIRANDA, 2007). Esse aparato estabelecia, através de uma série de leis e decretos, o controle do uso e do comércio de drogas e a preservar a segurança e a saúde pública no país, prevendo penas que determinavam a exclusão dos usuários do convívio social.

A partir da década de 70, através dos hospitais psiquiátricos e de centros especializados de tratamento, a medicina passou a contribuir com subsídios tecnocientíficos para a legitimação do controle do uso de drogas. O usuário passou a ser definido como doente e/ou criminoso e os objetivos eram salvar, recuperar, tratar e punir (MACHADO; MIRANDA, 2007). O hospital psiquiátrico do século XIX,

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dessa forma, tornou-se o “palco” da atuação da loucura (e, mais tarde, também da dependência química), um lugar de diagnóstico e classificação da doença mental e o médico, nesse espaço, é o “mestre da loucura”, é aquele que desencadeia e domina sabiamente a verdade da loucura. Porém, o poder médico garantido nos privilégios do conhecimento é posto em questão no fim do século XIX pelo movimento da Antipsiquiatria.

Esse movimento questiona “a maneira pela qual o poder do médico estava implicado na verdade daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser fabricada e comprometida pelo seu poder” (FOUCAULT, 2008, p.124). Ora, as relações de poder estabelecidas dentro do hospital psiquiátrico residiam no direito absoluto da não-loucura sobre a loucura, por isso a Antipsiquiatria ataca precisamente a instituição como lugar, forma de distribuição e mecanismo dessa dominação.

O que caracteriza então essas instituições, para Basaglia (1985), é a nítida divisão entre aqueles que têm o poder e aqueles que não o têm. A divisão de funções no “controle” da loucura evidencia uma “relação de opressão e de violência entre poder e não-poder, que se transforma em exclusão do segundo pelo primeiro. A violência e a exclusão estão na base de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade” (BASAGLIA, 1985, p.101). A negação de uma instituição de natureza carcerária, impenetrável a qualquer tipo de intervenção que busque modificar essa natureza e perpetuadora de uma violência contra os sujeitos ali “encarcerados” levou uma equipe de profissionais a denunciar as condições do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, na Itália, o que levou ao início do Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Em relação à atenção aos usuários de álcool e outras drogas, no Brasil, foi somente em 2003 que o Ministério da Saúde assumiu seu compromisso diante dessa questão. Através de sua Política de Atenção Integral, o Ministério da Saúde “assume de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar e reabilitar os usuários de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública” (BRASIL, 2004, p. 9). O projeto propôs a criação de uma rede de atenção integral do Sistema Único de Saúde (SUS), que envolvem ações de prevenção, promoção e proteção à saúde; a construção de malhas assistenciais formadas por dispositivos especializados (os Centros de Atenção Psicossocial álcool/drogas - CAPSad) e não

especializados (unidades básicas, programas de saúde familiar e hospitais em geral), bem como o estabelecimento de ações intersetoriais (MACHADO; MIRANDA, 2007).

Com a eclosão da “epidemia do crack”, os problemas gerados pelo uso, abuso e dependência ficaram em evidência nos meios de comunicação. As notícias e reportagens tendem a associar o uso de crack com a criminalidade, através de dados estatísticos e depoimentos de pesquisadores e autoridades. Dessa forma, a “epidemia do crack” traz à tona uma discussão sobre a dependência química tanto no âmbito da saúde pública, quanto da segurança pública. Torna-se, então, fundamental analisar o conteúdo que a mídia transmite sobre o tema, tendo em vista o combate ao crack e sua relação com o atual programa de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.

A análise formal indica a presença da principal estratégia ideológica relacionada à luta contra o crack: a racionalização (THOMPSON, 2007). No decorrer da discussão dos resultados serão apresentados argumentos que favorecem políticas de repressão, em detrimento das políticas de prevenção, promoção de saúde e tratamento. No início da série “A epidemia do crack”, há a presença de um discurso pautado na estratégia de universalização, afirmando que todos estão suscetíveis à epidemia e que o índice de recuperação, até então, é zero.

A primeira matéria (ZERO HORA, 06 de Julho de 2008, p. 32) que se refere à questão do tratamento apresenta clínicas e o que elas têm a oferecer aos pacientes: piscinas, quadras de tênis, suítes individuais com TV, hidroginásticas, caminhadas no parque, academias de ginástica, passeios culturais e, na maioria dessas clínicas, os pacientes não precisam capinar, nem cuidar de hortas e pomares. É importante notar que a matéria “É possível vencer” vem acompanhada do “Tratamento VIP”. A sigla VIP significa: very important person. Ou seja, somente as pessoas muito importantes merecem um tratamento qualificado, com uma ótima infra-estrutura e com a melhor medicina da atualidade (ZERO HORA, 06 de Julho de 2008, p. 32). Mas como definimos quem é e quem não é VIP? Na matéria fica claro que VIP é aquele que pertence às classes mais favorecidas economicamente. É quem pode pagar por esses serviços. Os “viciados” pobres, enquanto aguardam leitos, são acorrentados em suas casas, como último recurso que as famílias dispõem. Como as causas para o uso entre ricos e pobres são apresentadas de modo diferente (os

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ricos usam por curiosidade e os pobres porque são pobres mesmo), justifica-se os tratamentos diferenciados (tratamento VIP e não VIP - ou nada VIP).

A matéria intitulada “Sem leito, viciado é atendido na fila” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 35) apresenta a precariedade do Sistema Único de Saúde (SUS). A matéria não cita a existência dos CAPS e de uma rede de saúde mental. A referência única e central é o hospital psiquiátrico. A leitura dessa matéria causa a impressão de uma volta ao modelo hospitalocêntrico, desconsiderando totalmente os ideais do Movimento da Reforma Psiquiátrica. Sem ter como atender todos os dependentes que buscam internação, o hospital começou a oferecer atendimento na própria fila de espera.

Os “sem-leito” vão recebendo avaliação médica, remédios e alimentação. Ás vezes, eles ganham alta sem ter conseguido se internar. Uma mãe que acompanha o filho adolescente afirma: “Aqui, dão medicação, e ele se tranqüiliza” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 35). Essa é a inovação a que o diretor-geral do hospital se refere: medicar os usuários de crack, a qual não nos parece de fato uma inovação. Além disso, o hospital oferece algumas facilidades - como acesso ao banheiro e um lugar para dormir. Facilidades? Não seriam necessidades básicas? Direitos que qualquer ser humano tem? Para um usuário de crack é uma facilidade, e medicados eles ficam mais tranqüilos (controlados).

Ao analisar esses argumentos, torna-se evidente a estratégia denominada diferenciação. Através da diferenciação, como já foi mencionada, a ênfase é dada às distinções, diferenças e divisões entre eles (THOMPSON, 2007). Primeiramente, o índice de recuperação é considerado zero. Mas é possível vencer, quando se tem à disposição um tratamento VIP. O índice de recuperação zero parece se referir ao serviço público e gratuito oferecido à população (SUS). A diferenciação, nesse caso, serve para sustentar uma relação de dominação entre o privado e o público, o pago e o gratuito. As formas simbólicas transmitidas nessa matéria enfatizam e legitimam a noção de que o privado é sempre melhor que o público.

O SUS estrela, como protagonista, em outra matéria. Não é uma atuação de gala, aqui o Sistema Único de Saúde é o personagem principal de uma triste história. A metáfora do conta-gotas é o argumento fundamental: “de um lado, temos

uma enxurrada de dependentes à qual os profissionais não têm condições de dar vazão, pois contam com uma rede hospitalar que acolhe os pacientes a conta-gotas

(ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 36). Acompanhando essa metáfora, podemos imaginar o SUS como uma parede, uma barragem, que contém a força de milhões de litros de água. Do outro lado há uma torneira, ou melhor, um conta-gotas, que escoa a água lentamente. Provavelmente, toda aquela água um dia irá transbordar.

Trata-se, na nossa opinião, de uma visão caótica do SUS, um sistema de saúde que não dá conta de oferecer o mínimo de assistência à população, especialmente no que se refere ao atendimento de usuários de drogas. A função dos hospitais se limita a desintoxicar os “viciados”, pois o período de internação é limitado. Como a estrutura para dar continuidade ao tratamento é precária, os pacientes saem desintoxicados, mas não recuperados. Voltam a usar a drogas e depois voltam para o hospital - é o que podemos denominar de “efeito porta- giratória” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 36).

Torna-se importante ressaltar que a construção de uma rede comunitária de cuidados é fundamental para a consolidação da Reforma Psiquiátrica. Este elemento não é colocado em pauta pelo jornal Zero Hora na série analisada. A articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é crucial para a constituição de um conjunto vivo e concreto de referências capazes de acolher a pessoa em sofrimento mental. Essa rede é maior, no entanto, do que o conjunto dos serviços de saúde mental do município. Uma rede se conforma na medida em que são permanentemente articuladas outras instituições, associações, cooperativas e variados espaços das cidades, ou seja, a rede de atenção à saúde mental do SUS define-se como de base comunitária (BRASIL, 2005).

Por trás das tristes histórias contadas está o fracasso da rede de saúde em cuidar dos usuários de drogas. O foco mudou da família para a rede de saúde. Essa mudança de foco acontece porque não se pode contrapor família e hospital, ou seja, falar mal da família para conseguir reforçar os hospitais. Mas à medida que se mostra uma rede de saúde precária, que não funciona, legitima-se a necessidade de criar mais leitos e de centralizar os esforços da saúde para a rede hospitalar. Tudo isso foi apresentado para chegar ao ponto central do argumento: “a raiz do problema

é que o número de leitos hospitalares para dependentes químicos está diminuindo no momento em que o Estado mais necessita deles. (...) A lei antimanicomial, implantada em 1992 no Rio Grande do Sul, previa que a drogadição deixasse de ser

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tratada em hospitais psiquiátricos e passasse a ocorrer em hospitais gerais. Resultado: hospitais psiquiátricos fecharam vagas, sem que hospitais gerais abrissem novas” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 36). A raiz do problema, nas

formas simbólicas em análise, parece ser a Reforma Psiquiátrica, ou melhor, a falta de leitos! Miséria, violência estrutural, violência das instituições psiquiátricas não são temas discutidos, pois não se pensa a problemática a partir das raízes sócio- históricas. Os CAPS, quando eventualmente são apresentados nas reportagens, aparecem como uma possibilidade de reduzir o problema e têm a função de “oferecer atendimento de emergência em horário comercial” (ZERO HORA, 09 de Julho de 2008, p. 36).

O dispositivo do CAPS, fazendo um uso deliberado e eficaz dos conceitos de território e rede, oferece atividades terapêuticas e preventivas à comunidade, buscando: prestar atendimento diário aos usuários dos serviços, dentro da lógica de redução de danos; oferecer cuidados personalizados; oferecer atendimento em diversas modalidades (intensivo, semi-intensivo e não-intensivo); oferecer condições para o repouso e desintoxicação ambulatorial para os usuários que necessitem de tais cuidados; oferecer cuidados aos familiares dos usuários dos serviços; promover, mediante diversas ações, a reinserção social dos usuários, utilizando recursos intersetoriais; entre outros (BRASIL, 2004). Há, dessa forma, um ocultamento da real função dos CAPS ad e de sua natureza sócio-histórica, reduzindo-o a um „atendimento de emergência em horário comercial‟, o que facilita a defesa de um modelo hospitalocêntrico de atenção à saúde mental.

Novamente, a estratégia de diferenciação é utilizada, mas, dessa vez, ressalta-se as diferenças entre o atendimento hospitalar e os ideais da Reforma Psiquiátrica. A Reforma preconiza a inserção social e os atendimentos extra- hospitalares sem, contudo, negar a importância dos hospitais gerais para a fase de desintoxicação no tratamento da dependência química. Porém, a matéria aponta para outra direção, coloca os dois modelos de atenção em pólos opostos. A diminuição de leitos provocada pela Lei da Reforma Psiquiátrica é a culpada pelo caos no SUS. Então legitima-se mais uma vez a necessidade de investir mais nos hospitais.

Ao culpabilizar a Reforma Psiquiátrica pelas dificuldades no atendimento aos usuários de drogas, o jornal utiliza outra estratégia ideológica, denominada

eternalização. Através dela, fenômenos sócio-históricos são esvaziados de seu caráter histórico ao serem apresentados como permanentes e imutáveis. “Costumes, tradições e instituições que parecem prolongar-se indefinidamente em direção ao passado, de tal forma que todo traço sobre sua origem fica perdido e todo questionamento sobre sua finalidade é inimaginável, adquirem, então, uma rigidez que não pode ser facilmente quebrada” (THOMPSON, 2007, p. 88). Ou seja, a instituição hospitalar, sua criação e desenvolvimento histórico não são questionados, apenas são apresentados como permanentes e que merecem apoio da população e do poder público.

Seguindo esse raciocínio, a Reforma Psiquiátrica é vista como uma inimiga a ser combatida, o que evidencia a estratégia denominada expurgo do outro (THOMPSON, 2007). Além dessa, identificou-se a estratégia do Tropo, entendido como o uso figurativo da linguagem. Através das metáforas, “relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem ocultadas, negadas ou obscurecidas, ou pelo fato de serem representadas de uma maneira que desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes” (THOMPSON, 2007, p. 83). As metáforas do “conta-gotas” e da “porta-giratória” não são apresentadas por acaso.

Reforçando esse argumento, utilizou-se outra metáfora para falar do tratamento: a Parábola do Semeador. “Trabalhar na recuperação de dependentes

químicos é como lançar sementes na pedra” (ZERO HORA, 11 de Julho de 2008, p.

48). Na parábola, a semente é a palavra de Deus, aqui são as formas de tratamento oferecidas aos usuários de crack. No caso da pedra („crack‟), oferecer tratamento aos usuários é como lançar sementes na pedra - “outra caiu no pedregulho; e, tendo nascido, secou, por falta de umidade”. Pensando nessa metáfora, a semente chega a nascer, mas ela não vinga, ela seca por falta de umidade. O que seria a falta de umidade? Falta de apoio familiar, profissionais despreparados, falta de continuidade no tratamento, terapias ineficazes, sistema de saúde desestruturado, entre outros fatores que sustentem a „umidade‟ da semente. Se a semente chega a nascer, é equivocado pensar que as estratégias de tratamento que funcionavam com outras substâncias oferecem agora resultados desastrosos. Muitos usuários desejam a recuperação e tentam aproveitar o tratamento, mas eles são frágeis, não têm “raiz”.

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Mas quando os usuários são testados, passam por uma provação, eles abandonam o tratamento e recaem. E a semente seca!

O custo é alto, inviável, e eles sempre recaem (novamente o efeito „porta- giratória‟). Ainda em relação ao tratamento, o CAPS aparece pela segunda vez. O CAPS ad de Augusto Pestana tinha oito dependentes de crack internados no albergue desse CAPS. O CAPS, nessa matéria, aparece mais como uma alternativa de internação do que de tratamento continuado. Um psiquiatra de Santo Ângelo elaborou um projeto de acompanhamento a longo prazo para dependentes de crack. A sugestão é criar equipes municipais que acompanhariam o paciente desde a internação até a reintegração, com emprego e acesso à escola, à vida cultural e à prática de esportes (ZERO HORA, 11 de julho, p. 49). Mas o que predomina nas matérias são as ações de repressão ao uso e ao tráfico. A repressão pode até destruir as pedras, mas quando quebramos uma pedra, suas migalhas espalham-se pelo chão... podemos juntar migalha por migalha ou simplesmente jogar as migalhas para debaixo do tapete!

Para finalizar a estratégia de racionalização (THOMPSON, 2007), Zero Hora apresenta as razões que levaram os EUA a vencer a epidemia. Essas razões podem ser agrupadas em três grandes categorias: legislação, repressão (policial) e marginalização. As duas primeiras parecem claras, mas a questão da legislação merece alguns comentários. O Congresso dos Estados Unidos aprovou em 1986 uma lei que tratava o traficante e o dependente de crack com um rigor inédito. A posse de cinco gramas da pedra passou a ser punida com uma sentença de cinco anos de prisão. O resultado foi o aumento no número de prisões por uso ou venda de droga (ZERO HORA, 2008).

Outra explicação para o sucesso norte-americano, bem mais polêmica, foi desenvolvida pelo premiado economista Steven Levitt (ZERO HORA, 12 de Julho de 2008, p. 42). Ele associou o despencar da violência à lei que, em 1973, legalizou o aborto (mas o auge da epidemia não foi na segunda metade dos anos 80?). O raciocínio é de que a permissão beneficiou mulheres pobres, solteiras e adolescentes, cujos filhos estariam mais sujeitos a entrar na criminalidade. Ele conseguiu dar embasamento à tese mostrando que os cinco Estados que legalizaram o aborto antes da legislação nacional foram os primeiros a registrar diminuição da criminalidade. Também demonstrou que a violência caiu mais onde as

taxas de aborto foram maiores. Aqui, novamente, percebe-se uma conotação classista, que sugere que filhos de mulheres pobres, solteiras e adolescentes seriam mais propensos à criminalidade. E isso é apresentado como uma lição ao Brasil para vencer a epidemia do crack (ZERO HORA, 2008).

A categoria „marginalização‟ refere-se basicamente a dois aspectos - a associação direta entre uso de crack e criminalidade, e o efeito crackhead. Não há mais uma associação entre uso de crack e crime, os dois são colados, um não existe sem o outro. Por exemplo, quando se fala no envelhecimento da população, diz-se que “a chance de um idoso médio ser preso é 50 vezes menor do que a de

um adolescente” (ZERO HORA, 12 de Julho de 2008, p. 42). Quanto ao aumento do

número de policiais, diz-se que “a contratação de policiais respondeu por 10% da

queda da criminalidade no período posterior à epidemia” (ZERO HORA, 12 de Julho

de 2008, p. 42). Perguntamos: Onde estão os índices em relação ao uso e dependência de crack? Números de pessoas em tratamento? Reincidência do uso? Não são trazidos dados sobre isso na série em análise; apenas são trazidos dados sobre a criminalidade. Fica claro que a criminalidade está sendo usada como sinônimo de uso de crack. O efeito crackhead, por sua vez, também contribui para a marginalização dos usuários. Os usuários passaram a ser vistos como os grandes fracassados da sociedade, o que Bauman chama de „refugo humano‟. “A produção de „refugo humano‟, ou mais propriamente, de seres humanos refugados (...), é um produto inevitável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da construção

da ordem e do progresso econômico” (BAUMAN, 2005a, p.12).

Estudos norte-americanos indicam também que aqueles que receberam tratamento estão menos propensos a necessitar de cuidados médicos futuros por doenças relacionadas ao consumo e apresentam tendência menor a cometer crimes (ZERO HORA, 2008). Porém, faltaram dados sobre esses estudos que foram citados. Quando se falava na „inutilidade‟ do tratamento, os dados estatísticos foram apresentados ao leitor para legitimar aquilo que estava sendo dito. Agora que se defendeu o investimento em tratamento, não houve uma explicitação de dados favoráveis a esse argumento. Referências e dados estatísticos impressionam os leitores e têm a função de reforçar o argumento que se está defendendo.

Na última matéria da série analisada (ZERO HORA, 13 de Julho de 2008), dez especialistas e autoridades dão suas receitas para “vencer o crack”. Das 10

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receitas, em cinco delas há um discurso voltado diretamente para a questão da falta de leitos psiquiátricos. Questiona-se a rede de saúde mental, na verdade, ela é tida como inexistente. Precisa-se criar uma rede. A política de saúde mental brasileira, representada pela lei antimanicomial, é posta em xeque. Novamente temos aqui uma tendência ao modelo hospitalocêntrico, colocando os hospitais e leitos psiquiátricos em evidência.

Em relação à família, duas receitas a colocam em evidência. Uma que sugere a criação de campanhas voltadas aos pais que ainda não têm „filhos drogados‟ e a outra que sugere a criação de uma política sistêmica que ofereça proteção integral às famílias mais vulneráveis (ZERO HORA, 2008). De uma possível universalidade do problema, temos aqui a noção de vulnerabilidade. As famílias mais vulneráveis seriam aquelas que envolvem maternidade precoce, rompimento das relações,

No documento Romanini TCC Psicologia 2009 (páginas 53-64)

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