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A EPOPÉIA DE AMÉRICA E A BEATITUDE DA VERDADE

No documento Marina Costin Fuser.pdf (páginas 48-81)

A peça se passa em um internato de freiras. América é a jovem no centro da trama, acusada de formular perguntas petulantes, de compartilhar seus sonhos mirabolantes e inquietar corações. Tudo começa pelas perguntas a que as freiras são incapazes de responder, por partir de outras premissas que não as verdades petrificadas pelo Cristianismo. O lugar de quem pergunta é outro. Pelo amor à ciência, ela questiona os dogmas da Igreja. Pelo amor ao progresso, ela questiona a ordem das coisas. Seria preciso um deslocamento, de um vértice a outro, do essencialismo ao logocentrismo, a fé se orienta para um Outro Deus, capaz de explicar o mundo e dar respostas às perguntas da jovem América.

A primeira cena se inaugura com uma conversa entre América e suas postulantes, em que América, em tom professoral, discorre sobre a saga de um herói, cujo nome não parece ter para Hilst a menor importância. Um herói genérico, que manda matar algumas pessoas, mas frente a um perigo de vida, sempre uma situação limite, questionada por uma de suas postulantes mais astuta. O herói que tinha uma tarefa, uma idéia grandiosa, um amor de herói.

In golden light you flow. Firm density, so light. Before the separation of earth and sky, sea and continents, light and dark. A mixture of rock,, fire, water, ether. Where violence can still espouse gentleness.

The heroic body overflowing with tenderness. Its weapons still those

of a native innocence. Which blurs all Sharp distinctions and brings all divisions back to the original nuptials. An alliance in which the opposing parties unite in an intense intermingling.

(Luce Irigaray) 59

59“Sob luz de ouro você flui. Densidade firme, tão leve. Antes da separação entre terra e céu, mar

e continentes, luz e escuridão. Uma mistura de pedra, fogo, água, éter. Onde a violência ainda possa desposar a docilidade. O corpo heroico a transbordar de ternura. Suas armas preservam uma inocência nativa. Que borram todas as distinções definidas e restituem todas as divisões às suas núpcias originiais. Uma aliança na qual os lados opostos se unificam em uma mistura intensa.” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-102.

Preocupado e ao mesmo tempo interessado em suas histórias, o Monsenhor resolve recebê-la em seu escritório. Diferente das freiras, que reprovam diretamente sua conduta, Monsenhor desempenha um papel mais ambíguo: ele a adverte, recomendando-lhe a ter cautela, mas considera prudente ouvir aquilo que as freiras pareciam incapazes de compreender. Ele quer ouvir suas histórias, e ela as narra de bom grado. Ela fala de máquinas pequeninas e ruidosas, que ficavam dentro de caixinhas de matéria brilhante. Seus nomes eram Eta e Dzeta. Elas se alimentavam de luz e percorriam sempre o mesmo caminho no interior de suas respectivas caixas. Elas viviam sob a tutela de um Vigia, que acompanhava seus movimentos dia e noite. Até que um dia elas oscilaram. Gradativamente, passaram a modificar seus percursos. Seus invólucros acabaram por ludibriar o Vigia, que deixara de enxergar aquilo que as impelia a proceder sempre à mesma maneira, o que está dentro, seu núcleo de ação. Etza e Dzeta eram resultado de pesquisas tecnológicas de ponta, produto de um cálculo racional. Mesmo assim, falharam. O mistério permanece, mas América encontra resposta para todas as perguntas do Monsenhor, que parece fascinado pela narrativa. Ele acredita que América tem potencial para abrir caminho para algo novo, uma reformulação que os lançaria para um futuro promissor. Ela precisa ser provada.

Espero o amanhã que cante El nombre del hombre muerto Não sejam palavras tristes Soy loco por ti de amores Um poema ainda existe

Com palmeiras, com trincheiras Canções de guerra

Quem sabe canções do mar Ay hasta te comover (...) Soy loco por ti América (Capinam / Gilberto Gil) 60

O plano escurece e a comunidade passa por uma súbita transformação: Eta e Dzeta ganham vida e forma e correm no interior de suas caixinhas. A irmã superintendente perde o hábito e veste-se com uma indumentária simples. O sistema criado na parábola de América é posto em prática tal qual ela havia

60 “Soy loco por America”. Composição: Capinam, Gilberto Gil. Cantado por Caetano Veloso.

pensado, embora seus efeitos não correspondam às expectativas: uma sociedade que detém minucioso controle sobre os movimentos de cada um. Cooperadores que integram um sistema aparentemente perfeito e altamente disciplinado, sem lugar para o erro ou o mistério. O grito de América substituíra o antigo Verbo divino: estava instaurada a Verdade da ciência, o novo Deus. Para Nietzsche, ao ocupar o lugar até então ocupado pela ascese Cristã, a ciência reproduz seus artífices de fé, que apresentam certezas monolíticas.

O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta (– e houve jamais um sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder – ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta, para uma meta... Esta ciência moderna que (...) crê apenas em si mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma, e até agora saiu-se bastante bem sem Deus, sem Além e sem virtudes negadoras. 61

América também mudara: suas paixões se calaram, seu sorriso se desfez, ao passo que fora tomada por certo assombro, ao ver que seu sonho se tornara um pesadelo. A Superintendente quer agradá-la: ela é útil ao novo sistema. América solicita dois livros O primeiro conta a história de um homem que se transforma em inseto (Kafka: “A Metamorfose”), para o espanto de suas postulantes, que assim como a Superintendente, consideram-no inútil. Sob a chave da mais absoluta racionalidade, quem daria crédito (em sua acepção útil) a um autor capaz de escrever um livro assim:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa, encontrou-se em uma cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. (...) Fechou os olhos afim de não precisar ver mais suas pernas se debatendo, e apenas desistiu quando passou a sentir no lado uma dor leve e sombria, que jamais havia sentido. “Oh Deus”, pensou ele, “que profissão extenuante que fui escolher!...” 62

61 NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pp- 126 / 127.

62 KAFKA, F. “A Metamorfose”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2008. Pp- 12

O segundo livro conta a história do homem que ressuscitou. A superintendente se faz de desentendida, e questiona o absurdo da ressurreição de Cristo, filho de uma Virgem (virgem?). Metamorfoses e ressurreições são consideradas heresias para o novo sistema. Tida como subversiva à luz desse sistema, por invocar transformações e ressurreições que não podem ser explicadas pela ciência, América é punida. Suas próprias postulantes, com o auxílio da Superintendente, vestem-na com um camisolão cuja abertura é demasiado pequena para passar sua cabeça. Sem a cabeça visível, América declara seu luto, uma lamúria que agoniza um mundo apartado de seu sentir, de olhos que não mais veem, de ouvidos que não mais ouvem. Sob a ótica desse novo sistema, o Monsenhor passa a ser o Inquisidor: o mesmo personagem, mas sem as vestes sacerdotais. Ele se assemelha à figura de um psicanalista, que indaga sobre sua relação com a família em um passado remoto, como quem pretende arrancar uma confissão. O corpo de América é fadado à inspeção e atravessado por interditos que têm por meta torná-la dócil, submissa. Michel Foucault lança luz sobre esse processo, cujo fim último é tornar o corpo economicamente útil ao sistema de produção:

O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa submissão não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continua a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. 63

América resiste. A nova tecnologia ainda não se apoderara de seu íntimo, cuja opacidade suscita receios. Seria preciso aprimorar os dispositivos de controle sobre a personagem, que ainda não se deixara dobrar. Mas havia esperanças, pois nem todos os recursos tinham sido investidos. América é então levada para o tribunal.

Estes teus olhos de lince espiaram algo em mim,

de mim algo latente arrancaram,

63 FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Pondé Vassalo.

algo nascido do silêncio,

opressivo e tão difícil de suportar quanto o calor do meio-dia em Termez. (Anna Akhmátova) 64

Em sua cadeira de réu, no centro da cena, América é ridicularizada pelo Bispo e pelo Inquisidor, que incitam a divinização do Novo Deus: o Homem. Estavam interessados em saber por que ela mudara sua conduta. Da primeira tentativa de resposta de América, só se ouviam ruídos. A filósofa Luce Irigaray trata da imposição do silêncio em um texto poético, que leva o título de Elemental Passions (Paixões Elementares). Se lhes roubam as palavras, na expectativa de que sejam conduzidas de acordo com uma determinada diretriz, ou linha de pensamento, a resistência pode se apropriar do silêncio, tal como uma catedral ou um santuário: lugar de recolhimento.

Was it your tongue in my mouth which forced me into speech? Was it that blade between my lips which Drew forth floods of words to speak of you? And, as you wanted words other than those already uttered, words never yet imagined, unique in your tongue, to name you and you alone, you kept on prying me open, further and further open. Honing and sharpening your instrument, till it was almost imperceptible, piercing further into my silence. Further into my flesh were you not thus discovering the path of your being?65

O silêncio ou ruído inaudível, dura pouco. Ela finalmente diz que entendera o mistério, o imponderável. Ela teria sido uma reformuladora, um termômetro através do qual eles souberam o momento de agir. Ela volta atrás e se arrepende de seu anseio tolo em procurar desvendar o onisciente, o onipresente. Seus sinais de fé são considerados delirantes. Eles exigem que ela comprove cientificamente a existência da divindade tríplice, com giz e um quadro-negro. América vacila, mas acaba por desenhar um triângulo equilátero dentro de um círculo. A esfera representaria o sol, as laterais do triângulo, asas. A esfera arquetípica de unicidade, e o triângulo em seu interior, tríplice. O desenho de

64 AKHMÁTOVA, A. “Antologia Poética”. Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre::

LP&M, 2009. P-105.

65“Foi a sua língua na minha boca que me forçou à fala? Foi aquela lâmina entre meus lábios que

desatou jorros de palavras além daquelas já pronunciadas, palavras nunca imaginadas, únicas na sua língua, para nomear a você, e só a você, você insistiu em me invadir, me manter aberta, mais e mais aberta. Afia seu instrumento, até que se torne quase imperceptível, perfurando cada vez mais a fundo em meu silêncio. Mais fundo na minha carne, você não estava a descobrir o caminho de seu ser?” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-09.

América seria a representação do infinito. Com um tom professoral, o Inquisidor contesta sua teoria, acusando-a de autismo. Ele vale da equação T = C, C = T, ou seja, “trabalhar para comer, comer para trabalhar” no interior da circunferência da técnica: eis o novo essencialismo do novo sistema. O tribunal insinua aspirar à sua salvação sob a magnificência desse novo Deus-Ciência.

Cada um ao nascer traz sua dose de amor mas os empregos, o dinheiro, tudo isso,

nos resseca o solo do coração. (...) O amor floresce

floresce,

e depois desfolha. (Vladímir Maiakóvski) 66

Sua sentença consiste em desempenhar o papel do vigilante de Eta e Dzeta, que andavam oscilando gradativamente, com menor intensidade. O projeto consistiria em reintegrar América, adaptando-a ao sistema que ela própria criara. América reaparece adocicada, vestida de noiva. Em face à entrada de América, uma das cooperadoras, tomada por um fascínio discursivo, põe-se a discorrer sobre as maravilhas da técnica. Sua colega a escuta com afinco. Nenhuma das cooperadoras percebeu que América agoniza e morre. A morte de América parece o último suspiro de uma súplica por um mundo uno, que reintegre o mistério, o imponderável, o sonho, a fantasia. Logo após sua morte, Eta e Dzeta passaram a funcionar perfeitamente.

A ideia ganha corpo, tudo se inverte

O sonho que América compartilha com suas postulantes traz em seu cerne uma utopia, não quanto à possibilidade de ser posto em prática, mas quanto aos seus desdobramentos. Ela inverte a ordem, mas não a subverte, trocando a ascese religiosa pela verdade da ciência. A utopia de América está em idealizar um mundo perfeito, sem espaço para o erro ou o mistério. O messias é substituído

66 MAIAKÓVSKI, V. “Maiakóvski – Poemas”. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo:

pela figura do revolucionário, do herói. Com ele viria a grande panaceia: “Depois dele tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que desejassem. Tudo. Não é bom?” A pausa que vem a seguir desloca o significado da frase. Trata-se de uma pausa reflexiva, que põe em relevo a interrogação. Será que isso é bom?

A dúvida dá o tom da primeira cena. Desconfiada, uma das postulantes pondera: “Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou matar os outros.” 67 O herói é posto à prova, mas os ossos do ofício obrigam-no a matar: em sua saga, os fins justificam os meios. No campo de batalha, tudo vira uma questão de vida ou morte. O tom apocalíptico de América apresenta dois campos diametralmente opostos: o bem e o mal, o sagrado e o profano. Não deixa espaço para a ambiguidade. Se existe o bem, suas ações se justificam, pois ele visa o bem comum. Ela deposita sua fé na verdade, acreditando assim libertar sua mente. Ela propaga sua palavra a fim de libertar as colegas, com base na afirmação da verdade da ciência como um bem supremo. Mas o ideal ascético que ela coloca em xeque é também o seu ideal. Ela inunda a alma desse ideal. Como dizia Nietzsche, faz dele a “sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução” 68. A ciência, para Nietzsche, não cria valores, tornando-se um valor enclausurado em si mesmo, portanto inerte. Acrescenta:

[A relação da ciência] com o ideal ascético não é absolutamente antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste. Um exame mais atento mostra que ela contradiz e combate não o ideal mesmo, mas o que nele é exterior, revestimento, jogo de máscaras, seu ocasional endurecimento, ressecamento, dogmatização – ela liberta nele a vida, ao negar o que nele é exotérico. Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno (...) na mesma superstimação da verdade.69

Porém de pouco ou a nada serviram as dúvidas das postulantes. A Ciência, com toda a sua soberba, fala em nome de verdades inquestionáveis. Seria o homem um pássaro grande, contente e vivo, como sugere uma das postulantes?

67

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

68

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

69 NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: Uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São

Ou forte como uma pedra? As imagens elucidadas pelas postulantes abarcam leituras poéticas do que viria a ser esse homem que habita os sonhos de América. Até que uma das postulantes, em tom quase infantil, traduz a narrativa de América em uma imagem interessante: “Como se a gente descobrisse de repente que existe um outro lá dentro da gente” .70 A ideia seria como um embrião, que se desenvolve dentro da gente, até ser lançada para o mundo. A metáfora da gestação de uma ideia ressignifica a gestação de Jesus Cristo. O Evangelho segundo São João exorta a criação pela Palavra divina:

No princípio era a Palavra e a palavra estava com Deus, e a palavra era Deus. No princípio ela estava com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dela e sem ela nada se fez do que foi feito. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. (...) E a Palavra se fez carne e habitou entre nós; vimos a sua glória, a glória de Filho único do Pai, cheio de graça e verdade.71 (Jo 1:1-1:4 e 1:12 -1:14)

Se a gestação de espírito pela Palavra divina deu luz ao Messias, como o salvador, a gestação da ideia humana (“nenhuma é tão grande como essa”), dá luz ao herói. Ambos portadores de glória, graça e verdade. A Palavra prevalece como prenúncio do mito das origens. Em sua repetição mimética, o sentido se desloca e celebra-se o rito iniciático, em que se revive a gestação de Cristo, não pelo batismo, mas em sua acepção profana: o nascimento da ideia ascética por uma verdade que se inscreve na ciência. A salvação pelo humano e no humano. Nasce o herói. Mas que herói?

O filólogo clássico de origem húngara, Károly Kerényi situa o herói na elipse do tempo histórico, mas suas trajetórias de vida os impelem para fora da história, aproximando-os do tempo dos deuses. O aspecto mitológico que os vincula aos deuses consiste nas virtudes e ações que faz deles protótipos. O autor constata que “herói” não traduz exatamente o sentido do “heros” grego, mas por falta de palavras, atém-se a esta. Em diversos mitos, há uma partilha entre deuses e heróis de uma notável solidez, que se preserva na representação poética. Há uma parte imutável, um núcleo inabalável inerente ao herói. Ele é dotado de unicidade sólida e de uma irradiação ou esplendor que o autor denomina “glória do divino”, por sua proporção sobre-humana.

70

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

71 JOÃO 1:1-1:4 e 1:12 -1:14. In: Bíblia Sagrada. Coordenação geral e tradução: Ludovico

A glória do divino, que recai sobre a figura do herói, combina-se estranhamente com a sombra da mortalidade do que resulta um caráter mitológico, o de um ser peculiar, a quem pertence, ao menos, uma história em que a narrativa diz respeito exatamente àquele herói e a nenhum outro. Se o caráter mitológico for substituído pelo caráter puramente humano, as lendas dos heróis se tornarão histórias de guerreiros, aos quais o epíteto de “herói” só se aplica no sentido divorciado do culto, em que o usa Homero, mais ou menos o de “nobre cavalheiro”; e assim a mitologia, incluindo a mitologia dos heróis, encontra o seu limite. 72

Para Kerényi, seu centro imutável engendra a “glória do divino”, que por sua vez é ofuscada pelas sombras do destino inexorável. Ao herói são ofertadas libações, cujo sangue escorre em seu fosso sacrificial. Ao palco trágico, elevam-se os heróis solenes, lendários, cujas virtudes provocam comoções na plateia.

O culto e o mito do herói contém o germe da Tragédia, não só no tocante ao material, ao princípio formativo e sua significação, mas também no que concerne ao tempo. A Tragédia Ática apega-se ao

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