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O MARAVILHOSO DISFORME E AS INTERMITÊNCIAS DO CARRASCO

No documento Marina Costin Fuser.pdf (páginas 81-144)

“Em algum lugar triste do mundo”, em uma pequena vila esquecida pelo tempo, vive um verdugo. Sua casa é protótipo da morada de um homem simples: modesta, porém decente. Pouca mobília, dois pequenos lampiões, paredes brancas, uma mesa ao centro. Assim Hilda Hilst descreve o cenário em que passa sua mais célebre peça. Não há quadros na parede, ou porta-retratos. As rubricas sugerem que não haja quaisquer rastros ou vestígios que caracterizem a família. O cenário deve ser o mais genérico possível, para dar a impressão de que se trata de uma família qualquer. A mesa está posta para o jantar. A primeira cena tem início com a mulher a servir sopa para o marido. Também encontram-se à mesa os dois filhos do casal.

MULHER (ríspida. Para o Verdugo): Come, come, durante a comida pelo menos você deve se esquecer dessas coisas. Que te importa se o homem tem boa cara ou não? É apenas mais um para o repasto da terra. (pausa)

VERDUGO (manso): Você não compreende.123

Hilda Hilst apresenta o dilema do personagem em um diálogo bastante indigesto para um jantar de família, sem muitas delongas ou floreios: um homem é condenado à morte e o Verdugo é o único habilitado para levar a cabo o serviço. Por algum motivo, dessa vez ele se mostra relutante em desempenhar sua função de carrasco: o homem lhe parece bom, e falara coisas que aparentemente haviam- no sensibilizado. A crise interna se instaurara, mas sem o apoio de sua esposa, interessada em uma provável recompensa pelo serviço sujo. A filha, que está prestes a se casar com um sujeito desempregado e bastante acomodado em sua condição, vê nessa recompensa uma possibilidade de realizar o sonho de adquirir uma casa própria. O único a solidarizar-se com o pai é o jovem filho, que parece não se dar com a mãe e a irmã. As alianças estão seladas no que seria uma guerra dos sexos, se não fosse pela entrada em cena do noivo, o que ocorre na segunda

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HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-367.

metade da primeira cena. O clima aparece cindido, entre a rispidez mesquinha das moças, e a crise de identidade que atravessa o Verdugo, talhando uma expressão pacata em sua face. Seu filho está perplexo frente à mesquinhez da mãe e da irmã, ao passo que dá razão ao pai em abrir mão de fazer o serviço sujo: afinal, não se trata de um homem ordinário, mas de alguém particularmente bom. Quem sabe um santo...

Parece-me ser igual dos deuses aquele homem que, à tua frente sentado, tua voz deliciosa, de perto, escuta, inclinando o rosto,

e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro (...)

um frio suor me recobre, um frêmito do corpo se apodera, mais verde do que as ervas eu fico; que estou a um passo da morte

parece

(Safo de Lesbos)124

No diálogo, aparece um outro personagem que está ausente: o povo da vila, aquele de quem se fala. O povo supostamente estaria contra a morte do homem. Com base nesse argumento, o filho parte em defesa do pai, enquanto as duas se tornam cada vez mais histéricas e agressivas. Os argumentos do filho são rebatidos com alfinetadas, que variam entre o “cale a boca” e o “que te importa aqueles coitados”, ou tentativas toscas de colocar em descrédito suas palavras. Enquanto isso, o Verdugo tenta comer, imerso em pensamentos, como se o bate- boca à mesa fosse música de fundo. De tempos em tempos, o pai vem ao socorro do filho, quando julga que a consorte e a filha passam do limite. Ainda assim, sua entonação explicita uma reação passiva, desprovida de agressividade. Até que explode:

VERDUGO: Ô merda, mulher! A minha cabeça aguenta algum tempo, depois eu me esqueço, ouviu? Esqueço que sou um homem e viro... chega! (pausa. Brando) O homem tem uma cara impressionante. (pausa)

FILHO: Como ele é bem de perto, pai? (pausa) Fala. VERDUGO: O homem tem um olhar...um olhar... honesto. MULHER: Honesto, ha?

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SAFO DE LESBOS “Poemas e Fragmentos da Lírica” Tradução: Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003. P-21.

VERDUGO: Limpo, limpo. Limpo por dentro. MULHER (com desprezo): Ah, isso!

FILHA: Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é por dentro.

FILHO: Eu sei como você é por dentro. FILHA: Ah, sabe? Fala então.

FILHO: Por dentro você não tem nada. É oca. VERDUGO (manso): Chega.

FILHA (para o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar vou ter filhos...125

A paciência do Verdugo apresenta sinais de esgotamento, porém ele não se volta contra o mal-estar instaurado, explicitando, por sua vez, a angústia que o atormenta, em um movimento de dentro para fora. Ele soçobra e anseia pela compreensão de sua consorte, que permanece alheia ao compadecimento do marido e indiferente à morte do homem. Ela não explicita qualquer indício de compaixão. Ele é o provedor da família e a sorte de sua família depende desse serviço. Ela se alimenta da esperança de que esse encargo viesse a abrir caminho para uma ascensão social. Já o filho é tomado por uma curiosidade que provém de certo encantamento, dirigido ao personagem ausente. O homem misterioso suscita dúvidas dentro e fora do palco, já que sua identidade não nos é revelada. Apenas o Verdugo o conhece de perto. De certa forma o povo, outro personagem ausente, parece ter bastante afinidade com o condenado. A irmã apresenta sinais de sensatez, ao constatar que ninguém conhece alguém por dentro. Tanto o santo quanto o herói são mitificados desde fora com base em supostas virtudes internas não verificáveis a olho nu.

ELA – Sonhadores habituais,

presos eternos às correntes temporais, cativos das cadeiras de hospitais em devaneios, ilusões, delírios, viajamos pelos mares infinitos descobrimos atlântidas e antilhas, imergimos em naves submarinas... (Renata Pallotini) 126

125

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-369/ 370.

126 PALLOTINI, R. “Os Loucos de Antes”. In: Teatro Completo”. São Paulo: Perspectiva, 2006.

Em seguida, o irmão resolve provocá-la, chamando-a de oca por dentro. A tentativa de insulto não surte o efeito desejado, uma vez que ela parece não se importar em ser oca por dentro. O vazio, afinal, estaria prestes a ser preenchido por um marido e filhos. A ideia de vacuidade pode ser interpretada em diversos sentidos. Para a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, nem todo vazio precisa ser preenchido: “Pensar também é ousar deixar à vida, ao sexo e à morte sua força de interrogação, ousar dar à luz sem presumir da imortalidade, ousar não suturar a cisão, ousar não preencher o vazio.” 127 Hilda Hilst brinca com os significados, visto que para o irmão tratar-se-ia de um vazio de pensamento, como se a irmã não tivesse nenhuma ideia substancial, nada além de futilidade e mesquinhez. Já a irmã pensa o vazio como um espaço a ser preenchido por um projeto de vida. Tal projeto confluiria com uma promessa de felicidade bastante trivial, algo incorporado socialmente desde a infância: o matrimônio. Sob a égide patriarcal, à mulher o matrimônio é apresentado como a única chance de felicidade. Uma vez liberta dos ditames do patriarca, ela parece adquirir certa autonomia, até que se desfaça a ilusão de liberdade, ao constatar que a autoridade do pai fora substituída pela de seu consorte. Porém isso pode ocorrer em diferentes níveis: as amarras se afrouxam ou se estreitam de acordo com a configuração subjetiva que se dá no interior do núcleo familiar. São múltiplas e complexas as relações de poder que se estabelecem no espaço de convivência atribuído à família. Não obstante, os papéis podem se inverter, dando vazão a novas possibilidades de convívio. Na família genérica retratada nessa peça, isso é bastante fluido, pois é a esposa quem joga o consorte contra a parede. Por outro lado, a irmã reafirma valores socialmente instituídos, impelida para a realização de um projeto antigo que preencheria pelo matrimônio o vazio de sentidos, no compasso da repetição cíclica da vida. Simone de Beauvoir constatou em “O Segundo Sexo”:

O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento. (...) Para as jovens, o casamento é o único meio de se integrarem na coletividade e, se ficam solteiras, tornam-se socialmente resíduos. Eis por que as mães sempre procuraram encarniçadamente colocá-las. (...) A mulher está voltada à perpetuação da espécie e à manutenção do lar, isto é, à imanência. (...) Ela não tem outra tarefa senão a de manter e sustentar a vida em sua pura e idêntica generalidade; ela perpetua a espécie imutável, assegura o ritmo igual

127

GAGNEBIN, J. M. “No Feminino Plural”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.). “Mulheres, filosofia ou coisas do gênero” Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-178

dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas; não lhe dão nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no universo; ela só se ultrapassa para a coletividade por intermédio do esposo.128 Beauvoir descreve a situação da mulher na Paris do após-guerra. O ano de sua publicação é 1949, ou seja, vinte anos antes da publicação da peça de Hilst. Ainda que nesse ínterim muita coisa tenha mudado, resquícios consideráveis dessa imanência permanecem em vigor. No texto, o casamento se figura para a personagem como algo que a situa em seu lugar de mulher na sociedade. O fato de seu noivo estar desempregado não constitui um impedimento para que o casamento se realize. Mãe e filha estão dispostas a fazer o que estiver a seu alcance para que tudo saia conforme planejado. Por outro lado, a filha não demonstra sinais de afeto para com o futuro consorte. A ideia do casamento parece lhe agradar mais que a presença do noivo.

A esposa do verdugo faz questão de lembrá-lo da função social que desempenhara até o momento, diante da crise instaurada frente à execução do homem misterioso. É, afinal, um verdugo. Aquele que garante o sustento da família pelo derramamento de sangue, com base em uma fé cega na lei dos homens.

MULHER: Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos.

VERDUGO (seco): Ele é diferente.

MULHER: Diferente, limpo, uf! É igual aos outros. FILHO: Ninguém tem o mesmo rosto.

MULHER: Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos-da-puta que morreram porque a lei mandou. (para o

Verdugo. Sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...

VERDUGO (interrompe): Eu não.

MULHER: ... mas os outros diziam ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do que ele fez? (para o Verdugo e para o

Filho) Se lembram? Acho que vocês dois não estão lembrados. (para a Filha) Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi condenado.

FILHA (sorrindo): Ele matou aqueles dois menininhos. MULHER (irônica): Só isso?

128 BEAUVOIR, S. “O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida”. Tradução: Sérgio

FILHA (sorrindo): Não. Primeiro ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos menininhos.

MULHER: E depois?

VERDUGO (seco): Já sabemos, chega. 129

A esposa tenta persuadi-lo, resgatando experiências passadas que se inscrevem em seu histórico como verdugo. Seria preciso depurar as aparências dos fatos. A cara de anjo fora apenas fachada, que servira para encobrir o crime bárbaro que o condenado ocultara: o assassinato a sangue frio de duas crianças. Não satisfeita em lembrá-lo do ocorrido, a mulher faz questão de cutucar a ferida, pedindo à filha que narre os detalhes sórdidos do crime perpetrado por um sujeito que tinha cara de anjo. O povo também tivera compaixão pelo réu, mas a verdade viera à tona. A tentativa de igualar o homem a um assassino impiedoso provoca- lhe calafrios. Essas lembranças despertam fantasmas do passado, produzindo uma tormenta que beira o insuportável. A mulher e a filha se regozijam de prazer ao perceber que sua pressão psicológica surte efeito, mas o impasse permanece.

FILHO: Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou. MULHER: Deve ter falado besteira.

FILHO: Ele falava de Deus também.

MULHER: Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (para o Filho) Não foi você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe... FILHO (interrompe): Na Índia.

MULHER: Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos elas morreriam de qualquer jeito, de fome? Hein?

FILHO: Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.

MULHER: Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar? (pausa) 130

129

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-371/ 372

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HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-372/ 373

Nesse diálogo a esposa do Verdugo apresenta argumentos fortes, evocando um questionamento quanto aos limites da força Divina. A que serve falar em Deus quando crianças de seis anos são prostituídas e vivem sob a constante ameaça de morte por inanição? Até que ponto poderiam contar com Deus para tirá-la da pobreza, quando injustiças de tamanha magnitude assombram o universo infantil? Pela segunda vez a mulher menciona com certa comoção atrocidades ocorridas com criancinhas. Se por um lado, o intuito é usar os argumentos mais desconcertantes e eficazes para comover o marido, ela mesma é mãe de dois filhos. Injustiças praticadas contra crianças são sentidas de maneira bastante distinta das injustiças praticadas contra adultos. Ao machucar uma criança, machuca-se a mãe. Mais do que isso: machuca-se a mulher. Na sociedade patriarcal, a maternidade desempenha um papel central, em que toda mulher é uma mãe em potencial. De acordo com a filósofa Luisa Muraro, maternidade e mulher são conceitos imbricados, situados em uma margem estreita. Para Muraro:

Mujer es el nombre de uma condición muy común (no menos que hombre), (...) interviene el dominio patriarcal, sí, pero quizá interviene más algo que afecta a la condición em sí, independientemente del hombre (pero dependiente de las demás mujeres, em primer lugar la madre). Por lo que yo sé, mujer quiere decir poder convertirse em madre y encontrarse de este modo reclamada por el reconocimiento de la vida recibida y de la precariedad de la vida a transmitir, habitada em alma y cuerpo por tres generaciones... 131

O homem supostamente mereceria o seu fardo, mas as crianças seriam criaturas inocentes. Em todo caso, Deus não fora capaz de atender às suas súplicas. Em um primeiro momento, o filho fica sem argumentos, uma vez que fora ele mesmo quem compartilhara essas informações, apreendidas em suas leituras. Sua visão de mundo parece inspirada nos livros. Apesar de seu apreço pela figura do pai, suas convicções se remetem, em grande medida, ao universo literário. Daí provém o conhecimento compartilhado com os demais membros da família, que, se sabem ler, não têm afinidade com o hábito da leitura. Às mulheres, cabe desempenhar a função de dona-de-casa. As oportunidades

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“Mulher é o nome de uma condição muito comum (não menos que homem), (...) intercede o domínio patriarcal, sim, mas quem sabe intercede mais algo que afeta a condição em si,

independente do homem (mas dependente das outras mulheres, da mãe em primeiro lugar). Pelo que eu sei, mulher quer dizer poder se converter em mãe e estar nessa situação a partir de uma exigência de reconhecimento da vidarecebida e da precariedade da vida a transmitir, habitada em alma e corpo e corpo por três gerações...” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-115

atribuídas ao universo feminino são demasiado restritas. A casa é o espaço privado, o espaço do confinamento, o espaço que, segundo a ótica patriarcal, é designado para as mulheres. Nas palavras da filósofa Marcia Tiburi:

A mulher não é apenas o lugar onde o útero habita, mas o que habita o útero, metonímia da casa. O espaço público, compartilhado por todos, não llhe é disponível. Ela é um objeto que carrega um espaço que se confina dentro de um espaço. O útero: metonímia da vida privada. 132 O chefe da família, por sua vez, é verdugo, trabalho que não exige grande esforço intelectual. O filho é o único na família cuja função é voltada para os estudos, quem sabe o único que efetivamente tivera essa possibilidade. A mãe presta atenção, e grava bem os argumentos do filho, a ponto de usá-los a seu proveito quando necessário. Afinal, a função de elaborar os saberes assimilados é de outra natureza. A mãe aprendera com a experiência de vida, algo que os livros não ensinam. Luisa Muraro narra um diálogo entre Platão e Diótima133, sua suposta tutora, em que ela ensina coisas que não estavam nos livros, como o amor e a experiência de vida. Platão aprendeu com ela que nem toda verdade pode ser expressada em palavras. Saber está além das palavras. Muraro desenvolve:

El campo del saber no se divide todo entre ciencia e ignorancia, le dijo la maestra extranjera a su alumno ateniense: hay otra manera de estar em él, la de quien sabe algo aunque teniendo que prescindir de las certezas absolutas, la de quien conoce la verdad sin estar em condiciones de demonstrar que lo es. 134

Mas desta vez quem ficou sem palavras foi o filho. Sem saber como responder à provocação da mãe, ele então se vira para o pai e retoma o assunto:

FILHO (para o pai): O pai não quer fazer, não é? MULHER: Essa é a profissão de teu pai.

FILHO (olhando para o pai): Verdugo.

132

TIBURI, M. “Branca de neve ou corpo, lar e campo de concentração – As mulheres e a questão biopolítica”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.). “Mulheres, filosofia ou coisas do gênero” Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-56.

133 De acordo com Muraro, muitos estudiosos sustentam que Diótima sequer existira: tratar-se-ia

de uma personagem imaginada por Platão para servir de base à sua filosofia. Diótima interessa a Muraro por situar-se entre uma história documentada e a inexistência, ou o anonimato que recai sobre as mulheres que ocupam lugares marginais. Em última instância, pouco importa à autora se Diótima tenha de fato existido.

134 “O campo do saber não se divide todo entre ciência e ignorância, disse a tutora estrangeira a seu

aluno ateniense, há outra maneira de estar com ele, a de quem sabe algo apesar de ter que

prescindir das certezas absolutas, a de quem conhece a verdade sem ter condições de demonstrá-la como tal” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-148

MULHER: Verdugo sim. Uma profissão como qualquer outra. (pausa)

VERDUGO: Mas esse homem eu não quero matar, mulher.

MULHER (impaciente): Mas não é você quem vai matar. É a lei que mata. Você é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém mais. Ora, que besteira.

VERDUGO: Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O povo...

MULHER (interrompe): Deixa disso, o povo é filho-da-puta, eles fazem assim só pra não dar gosto para aqueles juízes. 135

A simples menção ao ofício de seu estimado pai produz certo desconforto, sugerindo que o filho desaprova a profissão de seu progenitor. A mãe está ciente do rancor que isso suscita, e explora essa desavença, ao constatar que se trata de uma profissão como outra qualquer. A pausa indicada pela rubrica é elucidativa de um estranhamento, chamando atenção para o absurdo da frase. Ele presta serviços ao Estado, como qualquer outro cidadão que vende sua força de trabalho, porém esse serviço consiste em matar em nome da lei. Uma linha tênue delimita onde começa a força da lei e onde termina a força da vontade do sujeito, o livre-arbítrio. Quem seria responsável pela morte do condenado: o carrasco ou a lei em nome da qual o sangue seria derramado? O Verdugo não deseja matá-lo, mas a lei firma o veredito, cuja função recai em suas costas, tal como um fardo. Seria possível uma recusa, e a que preço? Não havia na vila outra pessoa habilitada para substituí-lo em sua função.

Acima de tudo, o livre está subordinado ao preso. E eis que o homem de fato está livre, ele poderia ir para onde quiser, apenas a entrada na lei lhe é proibida, e além disso, apenas por uma única pessoa, o porteiro. Se ele se senta sobre o tamborete ao lado da porta e fica por lá durante sua vida inteira, isso acontece voluntariamente, a história não diz nada acerca de uma coação. O porteiro, ao contrário, está preso a seu posto por seu ofício, ele não pode se afastar e, segundo tudo indica, também não poderia ir para o interior, mesmo que quisesse. Além disso, ele está a serviço da lei, mas serve apenas para aquela entrada, portanto apenas àquele homem, para o qual e

No documento Marina Costin Fuser.pdf (páginas 81-144)