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A LÍRICA DE HILST INVADE O PALCO

No documento Marina Costin Fuser.pdf (páginas 41-48)

O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa penetração, quando o dramático ideal do teatro cede espaço às vozes do não-lógico, da sugestão e do sentimento. (...) O lírico no drama é, muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do Absurdo, a incomunicação. 53

Assim a dramaturga Renata Pallottini trata o teatro de Hilda Hilst como uma abordagem lírica no campo da dramaturgia, escrita por uma poeta por excelência. Quando a poesia lírica invade o palco, as torrentes de significações tramitam de personagem para personagem, colocando para fora algo que vem de dentro: desejos, anseios, angústias, medos, silêncios. O lírico traz para a cena a expressão de uma impossibilidade. A ação encontra uma barreira, um interdito que coíbe sua realização. A palavra entra em descompasso com o corpo de personagens atravessados por certa angústia inerente aos limites do que é humanamente possível. Algo que grita de dentro, um anseio por desafiar as leis da gravidade, algo que almeja transcender o humano e ir além do que se acredita real. Essa vontade de transcendência opera por uma certa metafísica, como uma força que vem de fora e acima do humano, algo que se busca no palco, e que gera um sentimento de paralisia. Seus personagens, como afirma Pallottini, lançam-se “desesperadamente contra o muro da sua própria impotência”, assim como os personagens de Samuel Beckett, que passam dias a se torturar numa ansiosa espera pelo Sr. Godot, esse alguém que pode ser que venha, pode ser que não venha nunca. O Absurdo não precisa ser algo de grandioso, mas exige um deslocamento no que ordinariamente se vive no cotidiano, uma ruptura com a normalidade aparente.

ESTRAGON: Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar com calma, já que calados não conseguimos ficar.

53 Pallottini, R. “Posfácio do Teatro”; In: Hilst, H. “Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-

VLADIMIR: É verdade. Somos inesgotáveis. ESTRAGON: Para não pensar.

VLADIMIR: Temos nossas desculpas. ESTRAGON: Para não ouvir.

VLADIMIR: Temos nossas razões. ESTRAGON: Todas as vozes mortas.

VLADIMIR: Um rumor de asas. ESTRAGON: De folhas.

(...)

Longo silêncio.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga alguma coisa.

ESTRAGON: Estou tentando.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga qualquer coisa! ESTRAGON: O que vamos fazer agora? VLADIMIR: Estamos esperando Godot. 54

Os personagens de Hilda Hilst são construídos com cuidado, como expressão de sentimentos, desprovidos de personalidades definidas e estruturadas em um sentido lógico. Os fluxos de vontade criam os personagens, subjetivados pelas vozes que atravessam a poeta. A escrita de Hilst persegue o que é limítrofe, o que está por um triz de explodir em mil pedacinhos, como um momento apocalíptico, mas que não se encontra do lado de fora, e sim no interior de seus personagens. A dramaturgia de Hilda Hilst fala das crises que interpelam as tramas; crises estas que estão inscritas no seio de uma grande crise, que é a crise da poeta. Fala de uma busca por Deus. A escrita de Hilst se embebeda de dor e prazer nessa busca labiríntica, que é capaz de dar mil voltas, mergulhos e sobrevoos. Para ela, Deus não é uma metáfora, é essa força estranha que pertence à ordem do enigmático, de um amor humanamente impossível. Hilst toma todas as liberdades na formulação de seus enredos, levando os recursos líricos ao ápice. Ela mistura poesia e prosa, e tempera suas tramas com elementos épicos, que se dissolvem em uma narrativa mais livre, como no leito de um rio em movimento. John Dewey vê na experiência poética um fluxo singular:

54 Beckett, S. “Esperando Godot”. Tradução: Fábio de Sousa Andrade. São Paulo: Cosac Naify,

Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes homogêneas de um lago. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas. Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. 55 Seu movimento pode ser tempestuoso, a depender dos ventos que assopram da nau à proa. A dramaturgia de Hilst surge em meio a um redemoinho avassalador, num período em que o mundo externo era sentido à flor da pele. Foi quando o Estado colocou suas garras para fora, rasgando o invólucro de uma aparente normalidade, que primou nos anos que sucederam ao golpe militar de 1964. O teatro responde a um grito interno que irrompe no intuito de dizer o indizível, para fora e para além do papel. Se o corpo ocupa um lugar central em sua escrita poética, na dramaturgia o corpo encarna os seus anseios, e aciona outras formas de comunicação que literalmente saem do papel, abrangendo gesto, voz, espaço, luz, sombra e silêncio.

“Nós vivemos nu mundo e que as pessoas quere se comunicar de uma forma urgente e terrível. Comigo aconteceu também isso. Só a poesia já não me bastava (...) Então procurei o Teatro.”56 Sua declaração atesta essa necessidade de comunicar isso que o Estado procura silenciar, algo que urge da ordem de seu tempo, algo que quer desesperadamente ser posto para fora. A barbárie humana é um tema bastante tratado e suas peças, mas sempre como um personagem sem corpo, algo que se faz presente mais pela invocação do medo que por seus capatazes. Esse teatro alegórico recria seus mais recônditos desejos personificados, mas cuja ação é irrealizável. Não há panacéias. As asas se quebram, a alma se dilacera, mas há sempre uma força que persiste no limiar. Uma voz que escapa, alguém que indaga, um estranhamento face ao Absurdo. É disso que trata a dramaturgia de Hilda Hilst.

A dificuldade reside em dar corpo a esses personagens alegóricos. As imagens que o texto evoca não são de simples compreensão, e sua abstração característica de uma linguagem mais poética que cênica, apresenta empecilhos

55Dewey, John. “Arte como experiência”. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes,

2010. P-111.

para sua realização. O fato é que suas peças foram poucas vezes levadas ao palco. Isso não a impediu de ser elogiada por Anatol Rosenfeld, cujas expectativas foram superadas ao assistir a O Rato no Muro e O Visitante, ambos encenados sob a direção de Teresinha Aguiar, no Teatro da Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo (EAD / USP). De acordo com Elza Cunha de Vincenzo:

Uma dificuldade de interpretação que provém não só da linguagem de teor intensamente poético (a mesma, aliás, de sua prosa), como do tipo de universo ficcional que elabora, da complexidade das ideias e do “ sentimento do mundo” que exprime naquela linguagem, enfim, da própria qualidade quase lírica da construção dramática que adota. Na realidade uma construção livre, de onde praticamente desapareceram as balizas do tempo, em que o espaço é no mais das vezes o símbolo de certo universo e o lugar e que se movimentam personagens tipificadas, vivendo intensas experiências de pensamento e de emoção.57

A linguagem complexa e sofisticada em sentido poético abre espaço à possibilidade de uma interpretação criativa, cuja imagética pode ser explorada de diversas formas. As temáticas de teatro tratam das questões de seu tempo: a barbárie, a impossibilidade do amor, os muros que nos cerceiam, uma desconfiança frente ao avanço de uma ciência que serve de matriz explicativa para tudo e indagações sobre o que é humanamente possível. A dramaturgia de Hilda Hilst é escrita no terreno das incertezas, onde a dúvida cumpre um papel central. Perguntar é perigoso, perguntar é um elemento desestruturante e está na base do estranhamento das situações absurdas que ela recria em suas peças.

As rubricas que precedem cada peça trazem à baila a relação entre cenário, figurino e a construção afetiva dos personagens, no intuito de conferir maior fluidez à peça, sem preocupação de tecer algum tipo de nexo, mas para que o personagem acompanhe os fluxos e as intensidades que atravessam os enredos. A autora sugere impressões e sentimentos que devem incidir sobre a espacialidade cênica. Além de rubricas, ela inclui desenhos, imagens que situam o palco em relação à plateia. O apelo imagético procura exprimir a espacialidade por onde circulam os afetos e as angústias no centro da trama, estabelecendo linhas fronteiriças, que ora se alargam, ora se estreitam, aproximando ou distanciando os personagens em cena, e sua relação com o público. O palco pode ser o espaço

57 Vincenzo, E. C. “Um Teatro de mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

intimista do lar, o encolhimento claustrofóbico de uma cela, o misterioso e inóspito laboratório de experimentos científicos, o arcaico e empoeirado tribunal ou adquire dimensões externas: a praça pública, o átrio do colégio, a sacada papal. Os ambientes que a poeta recria fazem alusões a um paralelismo entre outros tempos históricos e situações que simbolizam algo vivido de dentro para fora, sentimentos de alhures que se remetem ao momento atual através de uma simbologia inerente à ordem do sensível. Por esse fio condutor corre um grito silenciado, onde a poeta assume sua voz mais política. Para falar da ditadura, ela volta no tempo e cria um paralelismo com o Holocausto, ou pendura cadáveres nos postes. Sons de rajadas de metralhadora irrompem o silêncio em uma longa e extenuante sessão no julgamento do guerrilheiro, provocando um estranhamento reflexivo, pois não fica claro de quem são as armas: da justiça ou dos justiceiros. Estátuas de santos ou caudilhos, algumas brancas, outras desgastadas pelo tempo, um grande tabuleiro de xadrez, um muro gigantesco, entre outros recursos, veiculam suas críticas, que se dirigem ao que vivencia em seu tempo sem a necessidade de palavras. Algumas palavras são supérfluas.

Esse paralelismo temático se dá, em parte pela necessidade de se esquivar da censura vigente para se referir à ditadura e, por outro lado, é expressão da própria linguagem poética da autora, que se desdobra em metáforas para dar forma aos seus anseios. A dimensão política em Hilst se volta para dentro, e busca nos mais íntimos recônditos da alma uma relação com o mundo externo, ou seja, como o de fora é sentido no íntimo. Para tornar possível esse mergulho na intimidade, Hilst recorre a alguns temas autobiográficos, como no caso de A Possessa, onde a trama ocorre em um pensionato de freiras, e a protagonista é uma menina perseguida por perguntar demais. Algo semelhante fora vivenciado em seu passado, nos anos em que a autora cursara o ginasial no internato de freiras da Escola Santa Marcelina. Embora esta seja a forma mais direta de identificação entre a vivência pessoal e a configuração temática, ecos de seus anseios se deslocam para dar vida aos afetos de seus personagens. Pelo deslocamento, a poesia encontra sua dimensão prosaica, poemas se convertem em voz, corpo, palavras e movimento, e adquirem espacialidade. Pelo deslocamento, Hilda traz para o palco aquilo que é de sua vida, e de como ela se relaciona com o cosmo que a transcende. Os personagens transitam de um para o outro, em um campo abstrato, onde desejos e sentimentos ultrapassam as definições que os

personificam, apresentando-os, antes, como metáforas desses fluxos. O verbo não é entender, mas sentir.

De acordo com a leitura de Éder Rodrigues, a autora:

Compartilha de uma tessitura de plano simbólico quando recorre não a personagens estruturados, facilmente nomeados e de realística inserção no meio. No teatro hilstiano os personagens muitas vezes nem são nomeados, funcionam no aspecto simbólico situacional de onde se encontram ou da cíclica rede de significados que performam no decorrer da ação. Os aspectos simbólicos operam ainda na estratégia que a autora utiliza para falar de um sistema externo a partir do interno, do micro para alcançar o macro onde se insere e pelo qual responde enquanto artista enunciadora. 58

Essa ordem do simbólico exige um trabalho mais atento, que se atenha aos fluxos sensitivos que atravessam o pensamento da autora, tramitando de personagem para personagem, no intuito de acompanhar seus movimentos vitais. É preciso percorrer a tessitura dessa rede de significados, desatando os nós que se entrelaçam na complexidade do seu imaginário inventivo. Para entender suas sutilezas, seria interessante aproximar de seu teatro os conteúdos de sua obra poética.

No próximo capítulo pretendo decodificar sua linguagem labiríntica, mas sem a pretensão de desvendar seus mistérios. Limito-me a pontuar lugares- comuns em sua cartografia afetiva. Interessa preservar sua estrutura aberta, ampliando o leque de significados que podem estar implícitos na estrutura narrativa, nos diálogos entre os personagens e nas entrelinhas. Mapear a transitoriedade, a partir de uma análise sensitiva, entre as vozes, os ecos e os silêncios que tramitam em seus personagens pitorescos. Como se distribuem os corpos nos espaços cênicos recriados pela autora? Pretendo lançar um olhar mais atento aos deslocamentos, aos movimentos, e aos afetos que circulam por entre os corpos. De quais corpos estamos falando? Que função eles desempenham? Quais os gritos, os barulhos, os ruídos, os silêncios, quais vozes habitam esses corpos? Cabe localizar os interditos e os estímulos que atravessam os corpos dos personagens. Que política governa esses corpos?

58 Rodrigues, E. “O Teatro Performático de Hilda Hilst”. Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Prof. Dra. Sara Del Carmen Rojo de La Rosa, 2010. P-61

Das oito peças escritas pela autora, selecionei duas: a primeira é a A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, concluída em 1967. É a primeira peça teatral escrita por Hilst. A segunda é O Verdugo, a penúltima peça teatral de sua carreira, escrita em 1969. Neste mesmo ano, ela é consagrada com Prêmio Anchieta de Dramaturgia. Enquanto a primeira peça inaugura o deslocamento de sua escrita poética para o engajamento político através do teatro, a segunda alcança o clímax de sua carreira como dramaturga, com um texto cenicamente completo. Ambas as peças tramitam em torno da liberdade, temática recorrente em toda a sua obra teatral, e bastante relevante em sua poesia. Em ambas, os caminhos de libertação percorridos pelas protagonistas seguem direções radicalmente destoantes, mas abordam duas facetas de um mesmo problema: a opressão da mulher. Este tema aparece em ambas as peças, e enfatiza corpos dilacerados, seja pelas mazelas cotidianas, seja pela exceção que dita a regra.

Capítulo IV

No documento Marina Costin Fuser.pdf (páginas 41-48)