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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Marina Costin Fuser

Palavras que dançam à beira de um abismo Mulher na Dramaturgia de Hilda Hilst

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS, sob a orientação da Profa Doutora Carla Cristina Garcia

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Dissertação intitulada “Palavras que dançam à beira do abismo – Mulher na

dramaturgia de Hilda Hilst”, de autoria da mestranda Marina Costin Fuser,

apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

Banca Examinadora

___________________________________

___________________________________

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RESUMO

A presente dissertação lança luz sobre um teatro escrito à sombra da ditadura brasileira. A dramaturgia de Hilda Hilst é um grito de protesto frente às arbitrariedades perpetradas pelos algozes do regime. Em meio aos escombros da barbárie humana, resplandece a donzela guerreira. Através da análise de duas peças de Hilda Hilst – A Empresa / A Possessa – estória de austeridade e exceção (1967) e O Verdugo (1969) – procuro mapear as trajetórias de mulheres que buscaram caminhos de transcendência. Seu lirismo remete a possibilidades, movimentos e viradas de jogo. A mulher em Hilst não se encerra em definições fechadas; ela se desdobra tal como um leque, feito de múltiplas camadas. Hilst vislumbra o transitório, no calor dos processos metamórficos que atravessam suas personagens. Sua dramaturgia é feita de alegorias, que se entrelaçam em uma tessitura delicada, onde poesia e teatro se encontram. O objetivo desse trabalho é percorrer esses caminhos labirínticos, em uma análise sensível aos desdobramentos de um lirismo que não se deixa fixar. Quais silêncios e quais gritos habitam suas personagens, e o que ocorre quando estes são levados ao extremo limite?

Palavras-chave:

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ABSTRACT

This present dissertation throws light upon a theater written through the

shadows of Brazilian dictatorship. Hilda Hilst’s dramaturgy is a scream of protest

facing the arbitrariness portrayed by the executioners of the regime. Among the ruins of human barbarism, the lady warrior shines. Though the analysis of two of Hilda Hilst’s plays – The Enterprise / The Possessed – story of austerity and exception (1969) – I intend to map the trails of women that serached the path of transcendence. Her lyrism is related to possissibilities, mouvements, and game turns. The woman in Hilda Hilst does not suit closed definitions; it unfolds just like a hand fan, made by multiple layers. Hilst enhances the trasitory, in the heat of metamorphic processes that come across her characters. Her dramaturgy is composed by allegories, that interweave in a delicate fabric, where poetry and theatre combine. The purpouse of this work is to go through these labyrinthic paths, in a senstive analysis of the unfoldings of this lyrism which does not let itself be fixed. Which silences and which screams inhabit her characters, and what happens when they are driven to their extreme limits?

Keywords:

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora por ter me acolhido com muita dedicação e ternura, e esteve comigo desde o início, ajudando a cortar minhas asinhas, para voar mais alto com maior precisão, nesse processo de metamorfose, que teve início com o projeto sobre a militância de mulheres nos anos de chumbo e se encerrou em leveza, com o voo poético de Hilda Hilst. Ainda assim, em nenhum momento perdemos de vista a mulher que atravessou a ditadura militar brasileira. O que mudou foi a militância, que percorreu outro caminho. Agradeço à Carla pelas referências bibliográficas, por acompanhar as minhas ideias mirabolantes, por passar horas a fio relendo linha por linha desta dissertação em pleno sábado de carnaval. Vai ser difícil encontrar outra orientadora como você.

Agradeço ao meu pai e à minha mãe, por apostarem em minha carreira acadêmica e estarem ao meu lado, como referência e ponto de apoio. Agradeço à minha avó Marlene por me ajudar na revisão do português e por ser uma artista que conseguiu traduzir sua experiência nos porões do DOI-CODI em lindas gravuras. Uma pessoa muito especial. Agradeço aos meus avós Maurice e Lídia por todo o carinho e a ternura sem os quais seria impensável chegar até aqui. Agradeço ao meu avô Fausto e à Raquel Araújo, aos meus irmãos Rafael, Maurício e Vivian, aos meus tios Ricardo, Bruno, Carlos, Gil, Ana e Neide, aos meus primos Guilherme, Cecília, Charline, Luca, Laura, Daniel, Bia, Francisco, João, à minha pequena sobrinha Ariana, ao meu sobrinho Zion, à Brea, à Márcia Leal, à Luísa Cusnir e ao meu querido afilhado Ian por fazerem parte da minha vida. Agradeço à minha prima Cynthia por ter tido a paciência de me deixar ler em voz alta alguns capítulos dessa dissertação. Agradeço à Valéria Fuser e ao pessoal do Grupo Anima pelas maravilhosas donzelas guerreiras, que inspiraram a conclusão deste trabalho.

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Ramos Lavich, Martha Lemos de Moraes, Beto Pi, Marcos Carrijo, Inaê Sampaio, Josie Berezin, Rachel D´Amico, Ana Kelson, Stella Segal, Bertile Giusti, Edna Matos, Marcelo Doca Sobral, Camila Valle, Camila Sant´Anna, Isabelle Pignot, Maitê Fanchini, Marcelo Rocco, Alexandre Plessman, Mariana Gehring, Janaína Mello, Marcos Vinícius Maia, Caru Alves de Souza, Natasha Bachini, Andressa Nozue, Michelle Watkins, Tatiana Gonçalves, Clarissa Menezes, Aline da Silva, Mariana Cristtal, Marina Rodrigues, Leda Vasconcellos, Ale Ezabella, Amanda Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Sarah Oakley, Rebecca Beers, Kate Birney, Tamar Kalkstein, Lissa Noctis, Vilma Bokany, Zeca Vidal, João Paulo Pinheiro Paiva, Franco Chiariello, Marina Trivelli Tambelli, Bianca Koch e Rose Katsanos. Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós Graduação em Ciências Sociais por viabilizarem a bolsa que custeou meus estudos, e por zelar por um ensino crítico e de qualidade. Agradeço à Carmen Junqueira pela maravilhosa aula de métodos de pesquisa, aos professoresMiguel Chaia, Caterina Koltai, Sívia Borelli e Edson Nunes, por fazerem da sala-de-aula um ambiente inspirador. Agradeço ao Prof. Ferdinando Martins por me aceitar como aluna especial na ECA-USP e me guiar nesse ambiente cheio de sonho, paetês e purpurina, que é a história do teatro brasileiro. Agradeço à professora Mariza Werneck por conduzir um círculo literário bastante acolhedor. Agradeço ao grupo Inanna pelas construções coletivas quanto ao gênero e suas possibilidades.

Agradeço à Hilda Hilst por sua escrita maravilhosa. Agradeço ao Caio Fernando Abreu, à Virgínia Woolf, ao James Joyce, ao Oscar Wilde, ao Marcel Proust, ao James Douglas Morrison, ao Sid Vicious, à Patty Smith, à P.J Harvey, à Clarice Lispector, à Björk, ao Franz Kafka, e ao TS. Elliot. Agradeço às feministas por fazerem desta uma bandeira para a vida. Enfim: tudo que toca meu coração contribui para a minha escrita.

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SUMÁRIO

1- Apresentação ……….. 09

2- Capítulo I: Fale baixo, senão elas gritam... 13

3- Capítulo II: A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me atravessa... 27

4- Capítulo III: A lírica de Hilst invade o palco ... 41

5- Capítulo IV: A Epopeia de América

e a Beatitude da Verdade ... 48

6- Capítulo V: O Maravilhoso Disforme

e as Intermitências do Carrasco ... 81

7- Capítulo VI : Donzelas Guerreiras ... 144

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APRESENTAÇÃO

Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos noturnos, e essa voluptuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar acariciador, terno, risonho e interrogador,

Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas e já os pés me pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te compreender; não tens os dançarinos os ouvidos nos dedos dos pés?

(Friedrich Nietzsche)1

Hilda Hilst escreve palavras de leveza num momento em que uma cortina de chumbo recobria o solo brasileiro. Em seu recolhimento na Casa do Sol, Hilda Hilst não é alheia aos acontecimentos atrozes que silenciam gritos de liberdade, e levam ao confinamento cavernoso as chamas de luz que brilham em direção contrária ao estado de exceção. É pelo teatro que Hilst faz o seu protesto contra as arbitrariedades de um regime onde a exceção vira regra.

São palavras que comunicam o indizível, que suscitam uma miríade de imagens, que não se definem nem fixam num único ponto, mas dançam com seus leves calcanhares à beira do abismo, e pairam sobre as cinzas da barbárie sem encostar os pés no chão. O abismo é a situação-limite, onde os nervos afloram a um ponto insuportável. O abismo é a crise levada a seu ápice, é o fim da linha, o prenúncio de uma catástrofe, a iminência da morte, em ambos os sentidos, figurativo ou literal. O abismo é mistério, é a vertigem da queda, ou a possibilidade de se metamorfosear em pássaro e alçar voo.

Nietzsche dizia que é preciso ter coragem para ver o abismo com olhos de águia. De peito aberto, Hilda Hilst cria coragem de alçar voo sobre um universo cênico, deixa de lado sua poesia para escrever seu teatro. Como dizia o filósofo Gaston Bachelard, o voo é uma metáfora da imaginação.

O movimento de voo dá imediatamente, numa abstração fulminante, uma imagem dinâmica perfeita, acabada, total. (...) Se os pássaros constituem o ensejo de um grande voo de nossa imaginação, não é por causa de suas cores brilhantes. O que é belo no pássaro, primitivamente, é o voo. (...) As cores múltiplas pestanejam, são as

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colorações de movimentos que pestanejam. (...) Quando um sentimento se eleva no coração humano, a imaginação evoca o céu e o pássaro.2

A imaginação da autora não desenha, mas vive os valores abstratos que ela ilustra em seu movimento ascensional. Seus personagens se metamorfoseiam em pássaros, coiotes e outras criaturas selvagens. Um sopro de Morfeu dá substância às suas parábolas polimorfas, que ganham corpo e invertem as premissas em uma sucessão de movimentos intermitentes. Nesse universo fantástico habita a mulher e seus silêncios, que ensaiam um grito em surdina frente ao insuportável. A mulher cujo brilho é ofuscado pelas sombras da austeridade, pelos dualismos que dilaceram o universo, pelas hierarquias que esmagam as pequenas partículas de vida. Seja América, a mulher colonizada; seja a mulher que precisa se vestir de verdugo para afirmar sua existência. Dos rastros das grandes fogueiras que lançaram chamas sobre saberes desprezados pela soberba da Ciência, resplandece a mulher. A donzela guerreira, que veio para vingar a morte de Joana D’Arc,

queimada como bruxa por sua ousadia, pelo travestimento em soldado, suas visões, a força ardente de suas palavras. Como descreve Walnice Nogueira Galvão: “Figura meio histórica, meio mítica, a Donzela Guerreira transgride

simultaneamente duas fronteiras. A primeira delas entre os gêneros, ao colocar-se a cavaleiro do masculino e do feminino; a segunda entre os estatutos do real e do

imaginário.” 3

O primeiro capítulo leva o título “Fale baixo senão elas gritam”, em

alusão à peça de Leilah Assumpção (Fale baixo senão eu grito). Trata de apontamentos históricos acerca das dramaturgas que fizeram parte de uma geração de dramaturgos politicamente engajados em diferentes níveis, mas que modificou o teatro brasileiro em forma e conteúdo. Procuro contextualizar historicamente o período em que Hilda Hilst resolve escrever peças de teatro. Quem eram as dramaturgas nesse período? Sobre o que elas escreviam? Qual era a relação dessas dramaturgas com a censura? Procuro responder a essas perguntas, no intuito de ressaltar delineamentos e nuances que interpelam as trajetórias de suas

2BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos”. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-68

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correligionárias, as quais, assim como ela, tratam das questões de seu tempo. Viviam, em um tempo bastante peculiar; sob a égide da ditadura.

O segundo capítulo, “A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me atravessa”, trata da vida e da obra da autora. Quem foi Hilda Hilst? Destaco alguns momentos angulares que marcaram sua trajetória, como a sua relação com seu pai, a quem ela declara ter dedicado a totalidade de sua obra. Depois procuro pinçar alguns elementos que atravessam sua trajetória. Ela flui tal como o curso de um rio, que atravessa seu corpo e deságua em desfiladeiros. Interessa aquilo que adensa essas águas escaldantes, seus declives, suas encostas, o que inspira seu movimento intermitente. Falo de sentimentos, de metáforas e alegorias, de metamorfoses; das fantasias, do grotesco, e dos silêncios que habitam seu corpo e sua escrita.

No terceiro capítulo, “A lírica de Hilst invade o palco”, faço uma breve

introdução ao teatro de Hilda Hilst. Lanço luz sobre sua lírica, essa voz que coloca para fora o seu íntimo, algo que ela importa de sua poesia para o texto cênico. Vem à baila o Absurdo, e sua referência no dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989). Busco uma compreensão sobre o porquê de a autora ter recorrido ao teatro, e não a outra forma de expressão, no período mais sombrio da ditadura militar brasileira – entre 1967 e 1969, quando o “regime de exceção” assume uma política de linha dura. Esboço em linhas gerais como as chagas do seu tempo encontram ressonância em seu teatro. Coloco em relevo o que críticos teatrais, como Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, tinham a dizer sobre sua dramaturgia. Falo um pouco de seus símbolos, suas linguagens. Por último, justifico a escolha das peças a serem analisadas nos capítulos seguintes.

O quarto capítulo consiste na análise de A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, sua primeira peça, escrita em 1967. Leva o título de “A Epopeia de América e a Beatitude da Verdade”, sendo América a protagonista,

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herói se projeta na própria América, cuja epopeia culmina em um silêncio avassalador. Seu martírio serve à reflexão e não à tão esperada ascese.

No quinto capítulo analiso O Verdugo, sua penúltima peça, escrita em 1969, premiada por sua qualidade cênica e a afinidade temática com o tempo em

que foi escrita. Chamo o capítulo de “O Maravilhoso Disforme e as Intermitências do Carrasco”, pelas sucessivas metamorfoses com que a autora descreve o caminho da liberdade e sua luta. A peça trata de um verdugo que se recusa a matar um homem, indo contra os anseios de sua esposa, que vê nesse ato inglório a possibilidade de mudar de vida. O lugar do carrasco se inverte, ela veste o seu capuz e encontra um sentido para sua vida. A peça trata suscita deslocamentos, viradas do jogo, uma frágil convicção, tão fugaz como todas as certezas que morrem junto a um paradigma.

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Capítulo I

FALE BAIXO, SENÃO ELAS GRITAM

Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são as representação dessas coisas. (...) Se o teatro é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz expressa-se através dos atos estranhos em que as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor. (...) Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso. Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua sendo nomear e dirigir as sombras; e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as falsas sombras, mas prepara o caminho para um outro nascimento de sombras a cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.4

A relação entre o teatro e tempos de barbárie relatada por Antonin Artaud encontra ressonância no compasso da ditadura militar brasileira, quando se tentava amordaçar as bocas daqueles que clamavam por uma cultura de resistência e confinar as manifestações espontâneas de arte que podiam ser sentidas como ameaça à moral conservadora. Encontramos em Hilda Hilst um ímpeto que articula gesto, palavra, grito, som e fogo, indo além da linguagem para tocar a vida, cujo sentido renasce pelo teatro, assim como pretendia Artaud.

A poeta resolve trazer ao palco o ato de “ensolarar”, de dar leveza, trilhando pelo caminho inverso ao escuro e pesado cárcere dos porões do DOPS e do DOI-CODI.5 Sua poiésis se confunde com o espírito de um tempo que se movimenta e se comunica pelas entrelinhas: liberdade é um grito que se faz quase em uníssono, aproximando essas muitas vozes atormentadas pela inquietude de um país silenciado pelo medo.

A influência do teatro épico de Bertolt Brecht adquiriu proporções consideráveis nos palcos brasileiros desde a Escola de Artes Dramáticas até o Teatro de Arena. Neste último, o teatro passa a ser um propulsor de um projeto de

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Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-2/7.

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transformação do mundo. Sua trajetória apresenta alguns ícones consagrados do teatro brasileiro, como Eles não usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, A revolução na América do Sul de Augusto Boal, e Arena Conta Tirandentes de Boal e Guarnieri. Ambos trazem ao palco o musical Arena Conta Zumbi em 1965, fazendo uma analogia entre a histórica revolta no quilombo de Palmares e a luta contra a ditadura. No segundo ato, a adaptação de um poema de Brecht explicita o convite à ação direta:

Eu vivi na cidade nos tempos da desordem. Eu vivi no meio da minha gente no tempo da revolta. Assim passei o tempo que me deram pra viver. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo o que via sem tempo de bem ver... Assim passei o tempo que me deram pra viver. A voz da minha gente se levantou e minha voz junto com a dela. Minha voz não pôde muito, mas gritar eu bem gritei. Tenho certeza que os donos dessa terra e Sesmaria ficariam mais contentes se não ouvissem a minha voz... Assim passei o tempo que me deram pra viver.6

O Opinião, filho carioca do Teatro de Arena dá o tom de um teatro que mistura tendências em sua musicalidade, trazendo ao palco a voz de Maria Bethânia, que canta Carcará com a força magistral de uma ave de rapina dos confins do sertão nordestino, cuja fúria impele o espectador a uma reviravolta: “Carcará, pega, mata e come!” Figuram entre os musicais do OpiniãoSe correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Ferreira Gullar e o clássico “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.

A ideia de um teatro que dá voz ao povo norteia em grande medida os palcos nas grandes cidades, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com Décio de Almeida Prado, o personagem “povo” figurava dentre os diversos palcos da época, em múltiplas abordagens, desempenhando distintos papéis, mas cuja presença não se pode deixar de notar. “Buscava-se tanto articular a voz do povo, quase inaudível em meio à cacofonia moderna, quanto adivinhar-lhe as obscuras intenções. Obedecia-se ou supunha-se obedecer ao povo, mas também ordenava-se ao povo, em tom exortativo ou imperativo.”7Para alguns, se tratava de buscar o

6

Guarnieri, G, Boal, A. e Lobo, E. “Arena Conta Zumbi”. Teatro de Arena de São Paulo, 1965. Texto disponibilizado pelo sítio eletrônico do Projeto Pyndorama: http://pyndorama.com/wp-content/uploads/2009/01/arena-conta-zumbi.pdf. Segundo ato, movimento 76.

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povo na arte popular, voltando-se aos romances de cordel, ao teatro dos autos pastoris, aos espetáculos de mamulengo, no esforço por um retorno às origens autênticas e primitivas. O operário urbano também desempenha um papel central, ensaiando no teatro o que seria o êxito de um despertar da classe trabalhadora, que cumpriria em cena o seu papel histórico, em sua acepção marxista: a revolução social, o grande acerto de contas entre os oprimidos e seus opressores.

O afronte aparecia de maneira menos explícita no Teatro Oficina, mediado por recursos cênicos que recriavam um universo sombrio, explorando o jogo e a provocação para colocar em xeque os tabus das classes médias. Nas palavras de Roberto Schwartz: “Imitação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe com força artística uma posição política”8. O Oficina chega ao ápice de sua

radicalidade em 1967 com a encenação de O Rei da Vela. Dirigido por José Celso Martinez Corrêa, que introduz o personagem Mister Jones como semblante do imperialismo estadunidense. Esbanjando toda a sua crueza, o Oficina lança luz sobre a sexualidade sem cerimônias, em uma combinação entre cinismo e deboche, que ridiculariza todo o moralismo. O texto corrosivo posto em cena produz um efeito inestimável em seus espectadores. Revolucionário, tanto em forma quanto em conteúdo, o Oficina propõe um antiteatro. O texto é de Oswald de Andrade:

ABELARDO I

- Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pôde pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário) Para o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudos das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional! 9

8

Schwarz, R. “Cultura e Política”. 3ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009. P-49.

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A vaga avassaladora que faz fervilhar o teatro das principais cidades do país ganha a atenção da mídia e do grande público. A censura, que já existia desde a Coroa Portuguesa, não deixa passar em branco a ousadia do teatro brasileiro, tanto do ponto de vista da sexualidade como do que é considerado subversivo na política. Nos anos que se seguiram ao golpe, ainda havia um respiro considerável frente aos agentes da censura, que só assumiram posturas mais contundentes quando o Estado tomou medidas mais radicais, no período que se inaugura com o Ato Institucional número 5 e a declaração de estado de sítio. Em 1968 em São Paulo, uma apresentação do musical “Roda Viva” no Teatro Escobar foi invadida pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC por sua sigla), o elenco foi espancado e o cenário, destruído. Em Porto Alegre, no mesmo ano, alguns atores que participavam do musical foram sequestrados. Após esses acontecimentos, a peça é finalmente proibida.10 Augusto Boal é preso em 1971 e em seguida mandado ao exílio. No ano seguinte, a repressão ordena o fechamento do Teatro de Arena. Em 1974 o Teatro Oficina se dissolveu. José Celso Martinez Corrêa é preso e torturado. Até a música e a poesia tornam-se perigosas para o regime, que, ao ver-se impotente frente ao florescer das artes, responde com cadeia e exílio para os artistas.

Estamos vivendo em S. Paulo o ano maior do teatro brasileiro. A temporada de 1969 se vem caracterizando por uma sucessão de textos importantes, desde os clássicos até os modernos: mas o que marca este ano como o mais expressivo de nossa história teatral, não é somente o privilégio de podermos ver, antes de dezembro, três Shakespeares (...) um Ibsen (...) um Brecht (...) um Schiller (...) um Molière (...) e um Genet (...). 1969 é o ano do autor brasileiro. E especialmente o ano do jovem autor brasileiro, que está enriquecendo a nossa dramaturgia com um vigor e uma linguagem novas. Há pelo menos 4 lançamentos muito significativos: Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah Assumpção e O Assalto de José Vicente, já estreados; À Flor da Pele de Consuelo de Castro e As Moças de Isabel Câmara que ainda começarão carreira. Nunca se registrou aqui ou no Rio, um movimento tão rico, atestando, sem discussão, a maturidade do nosso palco. (...) Todos se confessam no palco, exprimem, sem rodeios, a sua experiência, vomitam com sinceridade o mundo que reprimiram nos poucos anos de vida. (...) Eles põe a nu, com uma liberdade de linguagem que poderia assustar certos pudores e os ouvidos tímidos. Como o teatro funciona pela autenticidade, as peças novas representam

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a iluminação de um mundo interior que a platéia tem o prazer em devassar.11

As palavras de Sábado Magaldi inspiram a constatação de Elza Cunha de

Vincenzo de que “dos quatro lançamentos significativos, como se vê, três trazem a assinatura de mulheres”. Esta onda criativa que incorpora o feminino modifica as bases de um teatro de autoria nacional, quando a prática mais corriqueira consistia em importar textos de grandes autores já consagrados no estrangeiro. O TBC12 era famoso pela importação de grandes talentos. Estava na hora de nadar na contracorrente do mainstream e inaugurar novos espaços capazes de acomodar essa camada mais jovem, composta também por mulheres, que sorvia o espírito contestador de seu tempo, e colocava em xeque os anacronismos de um teatro que havia envelhecido rapidamente, e não era capaz de propor novas saídas ao mal-estar produzido pelo golpe de 1964 e seus desdobramentos mais contundentes. Após a proclamação do AI-5, os palcos se tornaram perigosos para o status quo. A repressão roubou a cena. O ano de 1969 corresponde ao período imediatamente

posterior ao “golpe dentro do golpe” e não por acaso o teatro viu-se obrigado a rejuvenescer: a dinâmica social mudara bruscamente, e se o golpe de 1964 parecia invisível para algumas camadas sociais, inclusive no campo das artes, nesse momento rasga-se o invólucro da invisibilidade para uma repressão mais aberta e contundente.

Sob a égide do poderio militar, os agentes censores, que até então se empenhavam em zelar pela moralidade e pelos bons costumes, passaram a ter um relativo cuidado com a infiltração ideológica nos palcos brasileiros. O teatro politizado coloca em xeque não só os algozes de um regime de exceção, mas as mazelas sociais que configuram o

cotidiano do “cidadão de bem”. A escrita de mulheres dramaturgas lançava novos olhares sobre a sociedade.

Por “escrita de mulher”, entendo que haja certo deslocamento de perspectiva; olhares a partir de finas angulares cujo prisma perpassa por diferentes maneiras de se

apreender o mundo. Simone de Beauvoir já dizia: “Não se nasce mulher, torna-se

mulher”. O ato de tornar-se mulher pressupõe uma construção histórica do Ser mulher. O que se entende por mulher vai além de um fator fisiológico, mas como a sociedade

11Magaldi, S. “A Grande Força do Nosso Teatro”, Jornal da Tarde, 26.08.1969 apud Vincenzo,

E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São

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interpreta a mulher, isto é, de acordo com os valores e premissas de seu tempo. Tais valores são históricos e engendram em seu cerne as relações humanas e as concepções de mundo que norteiam a sociedade no decorrer do processo de construção de uma cultura tal como ela se apresenta no presente. A mulher é designada como Outro, aquele que só se faz existir através de seu duplo transcendente ao qual lhe é subordinada: ao homem. De acordo com Beauvoir, à mulher não se atribui um projeto; seu destino é pautado na repetição cíclica da vida e da atividade humana em sua contingência e facticidade. A partir do lugar de suposta inação imposta de fora, ela age. A partir desse lugar de suposta inércia, ela se movimenta. A partir desse lugar de suposto obscurantismo, ela cria. A partir desse lugar de suposta opacidade, ela brilha. Escrever no feminino implica em driblar as barreiras socialmente construídas, o que exige o dispêndio de esforço criativo e intelectual e a iminência de subjetividades nômades, capazes de contornar, movimentar ou enfraquecer essa barreira. Essa barreira passou por sensíveis modificações no decorrer do período entre a publicação de “O Segundo Sexo” (1949) de Beauvoir e a dramaturgia de Hilda Hilst (entre 1967 e 1969). Não obstante, os deslocamentos subjetivos femininos podem se desdobrar em um imenso leque de possibilidades a partir de diversas abordagens e pontos de vista. Ainda assim, a barreira permanece, acentuando deslocamentos na escrita feminina.

É uma estranha experiência, para o indivíduo que se sente como um sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo universo masculino; por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho.

(Simone de Beauvoir) 13

No teatro, esses deslocamentos adquirem relevo com a iminência do

“teatro intimista”. Elza Cunha de Vincenzo14 observa uma fusão entre o caráter coletivo de um teatro que reflete as questões da sociedade e um teatro individual, que trata da vida doméstica e cotidiana. Uma análise da dramaturgia feminina

13Beauvoir, S. (1975).O Segundo Sexo. Volume II, 3ª Edição. Difel/Difusão Editorial, São Paulo-SP. P-39.

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desse período nos possibilita a chegar a um entendimento de como o coletivo e o individual se davam enquanto relação, e como a sociedade é vivenciada no interior do lar, nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, etc. O lar torna-se um espelho difuso do que acontece no mundo do trabalho, nas relações de comunidade e vizinhança. No lar é difícil fugir do campo das contradições, pois no espaço da intimidade os pequenos defeitos adquirem proporções mais agudas, as mentiras não se sustentam por muito tempo e os conflitos são menos velados. A tendência ao “teatro intimista” traz ao palco as nuances do espaço doméstico, observadas por olhos de mulher, que amarram o individual e o coletivo com sensibilidade e humor, incitando a platéia a rir de seus próprios ridículos. O potencial crítico e autocrítico é avassalador, e o riso é explorado por sua função reflexiva, ora como identificação, ora como estranhamento.

Porém a nova dramaturgia não se encerra no espaço doméstico, como constata Vincenzo, e mesmo quando retrata a vida no núcleo familiar, a autora coloca a desnudo o conflito entre o papel da mulher no cotidiano e suas possibilidades. O pêndulo se inclina para a temática da modernização, que assume um viés cultural profundo e avassalador. Segundo a autora:

A dramaturgia feminina que começa a tomar vulto precisamente num dos momentos altos da modernização e da repressão política pós-68 e que representa mesmo, em termos históricos brasileiros, um desdobramento dessa modernização, revela claramente, a partir de seu interior, a presença dos elementos contraditórios que a constituem e definem: por um lado, a liberalização dos costumes, a ampliação e diversificação de oportunidades de trabalho – inclusive para a mulher

– , certa mobilidade social que por vezes permite o trânsito de indivíduos de uma classe para a outra; mas, por outro, também os mecanismos do processo que mantém alienados, ao envolve-los em sua trama, os indivíduos em geral, que se utiliza deles para depois descartá-los, que os prepara tecnicamente para determinadas funções, mas os leva em seguida a se desviarem dos objetivos que essa preparação supunha.15

Contudo, as autoras que compunham essa nova dramaturgia entre as décadas de 1960 e 1970 encontravam linguagens distintas, evocando imagens que provém de universos particulares e diversificados. Quando está em voga a temática do cotidiano doméstico, cada núcleo familiar adquire as suas peculiaridades de acordo com a visão da autora, e cada história se desenrola dentro de um tempo específico, que dá o ritmo e molda a linguagem, tanto

15

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corporal, como textual. As narrativas também ocupam cenários diversos, como o ambiente de estudo e de trabalho, a praça pública, os lugares onde se dá o choque entre o individual e o universal.

A Luz completa-se a si própria Se Outros quiserem vê-la Ela se mostra em certas horas Nos Vidros da Janela.

(Emily Dickinson) 16

Renata Pallotini figura entre as dramaturgas que precederam a vaga criativa de 1969. Formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em direito pela Universidade de São Paulo, Pallotini foi a primeira mulher a ingressar no curso de dramaturgia na Escola de Arte Dramática em 1961. Sua primeira peça, A Lâmpada, foi redigida em 1958 e levada ao palco em 1960 no Teatro do Estudante de Campinas sob a direção de Teresa Aguiar. A temática já se antecipa ao movimento inovador que dará o tom da nova dramaturgia, enfatizando algo até hoje bastante marginal: a homossexualidade. Em seguida, escreve Sarapalha, adaptação de um conto homônimo de Guimarães Rosa elaborada em função de um concurso de dramaturgia promovido pelo Teatro de Arena. Sua sensibilidade e firmeza em trabalhar a dramaticidade da narrativa de Guimarães Rosa foi muito bem recebida, e levada ao palco por Alberto D’Aversa

em 1961. No ano seguinte, escreve e dirige O Exercício da Justiça na EAD, onde ela volta os holofotes para uma imagem de justiça cega, incapaz de ver os estratos marginalizados da sociedade. Vincenzo atenta para os aspectos que conformam e definem uma personalidade própria, inerente à obra da autora:

A manipulação do tempo e do espaço, bem como a intersecção dos vários níveis de realidade, característica da estruturação épica do teatro, será uma das possibilidades técnicas desta autora, e vai revelar-se completamente nas peças dos anos 70 e 80. Mas esta linha épica, desde a primeira peça em que aparece (que é justamente o Exercício da Justiça) assumirá um caráter especial: o da elaboração poemática. Daí podermos considerar o teatro de Renata Pallotini, em sua maior parte, um teatro poético, do qual não está contudo ausente um correto sentido da linguagem coloquial, do dia a dia, e, em alguns casos mesmo, um torneio particularmente popular e brasileiro. 17

16 Dickinson, E. Älguns Poemas / Emily Dickinson”. Tradução: José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008. P-131

17Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

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Segundo Vincenzo, esse teatro poemático deu o tom de sua primeira fase, em peças como O Escorpião de Numância (1967), Pedro Pedreiro (1964) e o Crime de Cabra (1961). Este último foi redigido em 1961 e levado ao palco em 1965, brindando à autora os prêmios Molière e Governador do Estado. Foi sua primeira montagem profissional e o que ela traz de peculiar é sedimentar os contornos de um teatro genuinamente popular. Pedro Pedreiro, levado ao palco em 1968, também traz para o centro da cena o protagonismo do homem simples, migrante nordestino que pretende se ajustar ao meio urbano. Em 1973, a autora se depara mais uma vez com a barreira do Estado. Nas palavras de Pallotini:

Terminei de escrever Enquanto se vai morrer... em 1973 e, em julho do mesmo ano, a Escola de Comunicação de Artes da USP, primeira interessada na montagem da peça, através de Moroel Silveira, então diretor do que seria o TECA [Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo], enviou o texto à Censura. Começamos a esperar pela resposta que não vinha. Depois soube que a censura age também assim: não se proíbe, mas também não se libera. Simplesmente se deixa que o decurso do tempo desgaste e envelheça intenções e projetos.18

No fim daquele ano, ela recebe uma resposta negativa, por supostamente

contrariar a “legislação em vigor”, o que deu vazão ao veto, que impediu sua peça de ser encenada. Vincenzo descreve a peça, buscando dar algumas pistas do que pode ter chamado a atenção dos censores:

Discutia a natureza da liberdade e da punição, tanto quanto a legitimidade dos métodos empregados para obter confissões, a prisão arbitrária, a tortura. E se voltava também para um problema característico do período: o problema do exílio, que além de envolver aspectos humanos evidentes, apresentava traços de um fenômeno político de natureza muito especial: a eliminação violenta e repentina de elementos significativos na vida do país. A eliminação desses elementos abria claros no quadro da vida política e cultural difíceis de preencher, e podia provocar desacertos cujas conseqüências se sentiriam ainda muito tempo depois. 19

Inaugura-se uma segunda fase do legado dramatúrgico da autora, em um sopro nostálgico que se remete ao passado e à memória de tempos longínquos. Conformado por pequenos fragmentos articulados que compõem um todo coerente, a dramaturgia poética aberta da autora coloca à baila uma multiplicidade de personagens, cenas e grandes painéis. Peças acadêmicas – Enquanto se vai

18 Pallotini, R. Cópia do relato fornecida pela autora. In: Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher:

dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da

Universidade de São Paulo, 1992. P-233.

19

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morrer (1972/1973) e Serenata Cantada aos Companheiros (1974) e sua fase ítalo-brasileira – O País do Sol (1982), Colônia Cecília (1985) e Tarantella (1986) caracterizam essa segunda fase, onde se brinda a maturidade de sua obra, que a consagra como uma das mais notáveis dramaturgas brasileiras.

Leilah Assumpção inaugura o ano em que despontam as peças de autoria feminina com Fala baixo senão eu grito em 1969, que recebeu os prêmios Molière e da Associação Paulista dos Críticos Teatrais atribuídos ao melhor autor do ano. Sua encenação contou com a direção de Clóvis Bueno, e com os intérpretes Marília Pêra e Paulo Villaça e se estendeu por longas temporadas em São Paulo, Rio de Janeiro, depois Curitiba, Belo Horizonte e Salvador. Esteve em cartaz por bastante tempo em Bruxelas, além de Paris e Buenos Aires. O reconhecimento imediato brinda a autora com o cânone e suas possibilidades se multiplicam em uma trajetória de sucesso. A peça trata de uma solteirona estereotipada, que se envolve com um soturno ladrão, confundido com suas mais íntimas fantasias. Leilah trata de quebrar o universo feminino, enquanto o ladrão permanece indefinido – uma força viril, alguém real ou um devaneio criado pela

mente inventiva da solitária protagonista. Vincenzo o descreve como “algo vindo

de fora e que se opõe a princípio a atinge violentamente; e por algum tempo o seu mundo, o mundo ilusório em que se abrigava para defender-se, é abalado.”20

Para Sábado Magaldi, trata-se do encontro de duas solidões, que pretendem romper com o tédio do cotidiano para propor novos desenlaces. O ladrão apresenta um convite ao erotismo, à fantasia lírica e a uma liberdade caótica que revela que a vida pode ir além daquela vidinha remota e desprovida de sentido. O desfecho, porém, se dá como no despertar de um sonho: sete horas da manhã, hora da labuta, se não se apressar, ela perde o ponto. A trama se encerra com um final realista: triunfa o compromisso. “O Homem quis roubar-lhe a paz

artificial dos mortos em vida”21 conclui Magaldi. O crítico observa como a autora explora o ludismo, recriando textualmente o jogo teatral, estraçalhando valores cristalizados em pequenos bibelôs, presentes no nosso cotidiano, ao passo que se projetam imagens à revelia da vulnerabilidade humana e suas flutuações. O diálogo físico e corporal exige uma coreografia, que coloca em ação elementos dramáticos, risíveis, grotescos e poéticos, configurando um universo cênico em sua plenitude.

Com Fala Baixo, senão Eu grito, Leilah Assumpção conquista sua cidadania teatral num território fronteiro ao dos novos colegas, em vários aspectos com características iguais às deles, mas acrescentando

20

Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

(23)

–lhes uma inconfundível sensibilidade feminina, além de um conceito próprio de espetáculo. A peça inscreve-se no que se poderia chamar de

“teatro novo”, e ao mesmo tempo o enriquece com uma personalidade

estranha, cheia de vida interior e um susto imenso diante do mundo. (...) A encenação encontra matéria-prima, também, para enfeixar o particular e o geral, a experiência precisa e a universalidade, um caso recortado no cotidiano e o diagnóstico amplo de um mundo. Tudo isso faz da estréia de Fala Baixo, senão Eu Grito mais do que uma promessa: a peça é já a afirmação de um talento.22

A semelhança temática que lança luz sobre os temas do cotidiano no ambiente familiar leva Vincenzo a caracterizar Fala Baixo, senão Eu Grito como parte constitutiva de um bloco, que denomina “Trilogia da Família”, junto a

Jorginho o Machão (1970) e Roda Cor-de-Roda (1975). Leilah declara na Folha de S. Paulo de 15.07.1979 que o único fio condutor entre as três peças é o fato de terem sido suas três primeiras levadas para o palco, mas alguns elementos cênicos e temáticos fazem com que Vincenzo insista na idéia de uma trilogia, que se situa no questionamento e na quebra de valores enraizados na família burguesa. A sátira, o estranhamento risível e a ênfase ao papel da mulher, que se vê imersa em novas questões, tais como sua inserção no mundo do trabalho, liberação sexual e excesso de eletrodomésticos e bens de consumo pertinentes ao universo das classes médias, no compasso de uma modernização fascinante e incompreensível.

Isabel Câmara está entre os jovens dramaturgos que estreiam sua carreira profissional em 1969. Seu repertório literário traz à baila referências sofisticadas e uma escrita delicada, pertinente a um universo ficcional onde o escritor, mais que o dramaturgo, dá a última palavra. Sábato Magaldi a considera antes uma

escritora, que dramaturga, mas não deixa de enxergar seu potencial: “Pode-se ter a certeza (...) que Isabel Câmara, ao afeiçoar-se mais à linguagem própria do palco, acabará realizando um grande teatro.” 23O rigor da escrita, cujo vocabulário goza de certo requinte, recria um universo enigmático, onde o espectador vagueia por um labirinto de possibilidades que permanecem abertas no decorrer da trama. Sua estreia se dá com a encenação de As Moças, onde a dramaturga retrata as solidões de duas mulheres, a velha tia e sua sobrinha, cuja relação intercala afeto e desafeto, amor e ódio, em um diálogo oscilante, que revela algo além do que a fala pretende. A troca de insultos entre as personagens cria uma aproximação de duas angústias, que encontram subterfúgios diferentes para lidar com o assombro

22 Id. Ibidem. P-237 e 240.

23

Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:

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de uma falta de sentido para a existência humana. A paralisia do medo e a entrega aos prazeres frívolos e mundanos entram em choque com violência, mas o estranhamento promove uma identificação entre as possibilidades da mulher se ajustar psicologicamente a uma vida fragmentada propiciada pela ruptura da estrutura familiar tradicional. A problemática da existência desempenha um papel central e tempera a peça com um ar melancólico. São ultrapassadas as barreiras convencionais, por via de um mergulho no universo interior das personagens, em uma perspectiva que combina elementos da psicanálise com a filosofia existencialista. Nas palavras de Sábato Magaldi:

Não se destina a peça ao êxito fácil nem os que gostam de situações claras terão satisfeito o seu desejo. Quando a psicanálise ao alcance de todos se veiculou principalmente num certo teatro e cinema de digestão imediata, As Moças repele as exegeses simplificadas e não esgota, até o fim, a sondagem proposta, porque sugere que há sempre novas zonas a explorar.24

Consuelo de Castro inaugura sua carreira como dramaturga com uma voracidade implacável e um engajamento político contundente contra o poderio

do Estado ditatorial. “Minha única arma contra a violência é o teatro, que é minha

própria violência respondendo à violência deles”25, diz em um depoimento para Samuel Weirner e Joana Fomm da Revista Aqui, São Paulo em 1976. O conteúdo político de suas primeiras peças entrava em confronto direto com a censura, com a qual teve que bater de frente, em um jogo que intercala proibições e premiações. Ao receber um prêmio pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1976, a dramaturga Consuelo de Castro se manifesta:

Declaro aqui, com toda a raiva do mundo que sinto, que recusarei terminantemente qualquer prêmio do SNT ou de qualquer outro órgão deste governo. Se alguém quiser me premiar, libere minhas peças. Libere Papa Highirt de Vianinha, também premiado pelo SNT em 1968. Libere Plínio Marcos... Deixem a gente ir para o palco, que não

24

Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:

Perspectiva, 2008. P-246.

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é de prêmios que precisamos todos, público e escritores: é de liberdade.26

No teatro infantil, a escrita de Maria Clara Machado e Tatiana Belinky é recebida com bastante apreço. A primeira, autora do consagrado “Pluft, O Fantasminha” e fundadora do Teatro Tablado, escreveu incessantemente, do início da década de 1950 até o fim da vida, em 2000, quando lançou sua última peça “Jonas e a Baleia”. Sua obra rendeu-lhe prêmios e homenagens carnavalescas, em enredos de escolas de samba como Porto da Pedra, União da Ilha e Unidos do Jacarezinho. Belinky escreveu uma adaptação de “Sítio do Pica-pau Amarelo” de Monteiro Lobato, e o roteiro de “Três Ursos” e “Fábulas Animadas” para a TV Tupi, entre 1952 e 1966. Desde 1948 ela já escrevia peças para o público infantil juntamente com seu marido, o médico e educador Júlio de Gouveia, encenados nos teatros da Prefeitura de São Paulo. Sua trajetória também obtém reconhecimento, rendendo-lhe o Prêmio Mérito Educacional em 1979 e o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do ano em 1989. Ambas conseguem ocupar lugar de destaque e renome, antes mesmo da iminência do teatro politizado sessentista, quiçá por escreverem para crianças, um público bastante particular.

De acordo com Elza Cunha de Vincenzo, podemos entender a inclinação política da dramaturgia feminina sessentista em sua dupla acepção: seja pela política anti-sistêmica que ganha espaço nos palcos brasileiros, seja pelos ecos dos movimentos feministas que eclodem na Europa e nos Estados Unidos. São postos em questão o lugar da mulher na sociedade, o tédio da vida conjugal, os valores cristãos, a sexualidade feminina e homoafetiva. A complexidade dá o tom de uma política que encontra seus opressores não apenas no Estado, mas também dentro de casa. A mulher se recria e se ressignifica no palco, ao sopro dos ventos que aspiram mudanças radicais.

Dalva de Oliveira, Maria Callas, Coco Chanel, Carmen Miranda... Na minha carreira teatral vivo envolvida com mulheres que existiram de verdade. Mulheres fortes e importantes, que me obrigam a um estudo maior da história da época, além da voz e do gestual. Lendo a história delas e o entorno, procuro tirar as minhas próprias

26

(26)

conclusões. (...) Não me comparo a elas, porque foram internacionalmente revolucionárias. Mas, se me perguntarem, acho que tenho um pouco da perseverança da Chanel e da alegria e do humor da Carmen.

(Ítala Nandi) 27

Inspirada por esse turbilhão criativo, Hilda Hilst não resiste à tentação de mergulhar pelo universo cênico. De acordo com Vincenzo, Hilst não é aplaudida no teatro com os mesmos louvores que a sua recepção poética, permanecendo relativamente marginal. A dificuldade em se destacar como uma mulher dramaturga soma-se aos desafios decorrentes de uma linguagem poética, recheada de recursos líricos e metáforas de difícil compreensão. Mas isso não a impede de ser homenageada em 1969 com o Prêmio Anchieta da Comissão Estadual de Teatro, pela peça O Verdugo. O lugar marginal ao qual a autora foi relegada está em aberto, e suas peças ainda podem ser descobertas por novos e audazes encenadores. Afinal, essas peças falam de descobertas, articulando vozes que sugerem a impotência humana em diferentes cenários. Este trabalho pretende mergulhar nesse universo de descobertas, esboçado e recriado múltiplas vezes pela autora. Ela conversa com os paradigmas do seu tempo numa linguagem misteriosa, que precisa ser analisada detidamente, com cuidado e imaginação.

Ah, essa voz cega, e esses instantes de respiração suspensa em que todo o mundo escuta perdidamente, e a voz que recomeça a tatear, sem saber o que procura, e denovo o ínfimo silêncio, à espreita de não se sabe o quê, (...) um alfinete que cai, uma folha que se agita, ou um gritinho que soltam as rãs quando a foice as cortam em duas (...) Talvez fosse preciso ser cego, cego ouve-se melhor, não são informações que faltam, temos em nossa bagagem afinadores de piano, dão o lá e ouvem o sol, dois minutos depois, não se vê nada de qualquer modo, esse olho é uma miragem.

(Samuel Beckett) 28

27 Ítala Nandi. Entrevista concedida à Revista Aplauso, ano 2005, edição 69, disponível no sítio eletrônico: http://www.aplauso.art.br/home/revistaaplauso/revista_atual.php?id=69.

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Capítulo II

A CASA QUE HABITO, O CORPO QUE HABITO, O RIO QUE ME ATRAVESSA

Dever cumprido. Eu fiz o que pude. Meu pai não pode fazer isso, ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao

saber que era uma menina, ele disse: “Que azar!” Eles, na verdade, se

separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso. Queria uma amante. Aí, minha mãe engravidou. Quando ele soube que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era deslumbrante.29

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade de Jaú, no interior paulista. Apolônio de Almeida Prado Hilst, seu pai, era também um poeta e ensaísta, além de jornalista e fazendeiro. Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso era quem arcava com o sustento da família, já que seu pai fora diagnosticado como esquizofrênico paranóico, e internado aos 35 anos em um sanatório em Campinas. Após a separação dos pais, ela se muda para Santos com sua mãe. Em 1937, é encaminhada para o internato do Colégio Santa Marcelina em São Paulo, onde estuda por cerca de oito anos em um ambiente rígido e religioso. A relação com o pai é regida por fantasias e memórias que marcaram. Ela visita o pai apenas duas vezes. Sua infância é impregnada pelo sentimento de rejeição paterna, mas ela trata isso como uma fonte de inspiração em sua escrita.

Quase todo meu trabalho está ligado a ele [o pai] porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. (...) Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele.30

Seu primeiro livro de poesias fora publicado em 1950, quando ainda cursava Direito na Universidade de São Paulo em 1948. Poucos anos depois decide dedicar-se integralmente à poesia. Sua produção é vasta, atravessa e dá sentido ao

29 Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao Instituto Moreira Salles. P-26/41

30

(28)

curso de sua vida, perpassando por diversos desdobramentos: poesia, ficção literária, crônicas e teatro.

George Eliot e Charlotte Brontë devem dividir entre elas a paternidade de muitos romances (...), pois revelam o segredo de que o precioso recheio de que os livros são feitos está em derredor, nas salas de visitas e cozinhas onde as mulheres vivem, e se acumula ao tique-taque do relógio. Miss Willatt (...) era capaz de escrever

páginas sobre “montanhas que se assemelhavam a muralhas de

nuvem, a não ser pelas ravinas fundas e azuis que lhes rasgavam os flancos, e as cascatas diamantinas que caíam brilhando, ora em dourado, ora em púrpura, quando entravam na sombra dos pinheirais, passando depois ao sol para perder-se na miríade de

arroios pelo pasto matizado de flores em sua base”. Porém, quando

ela tinha que encarar seus amantes e a conversa das mulheres nas tendas, ao crepúsculo (...), ela então gaguejava e corava perceptivelmente. (...) A mesma autoconsciência (...) a voz portentosa que unia os diálogos e explicava como as mesmas tentações nos assaltam, seja sob estrelas tropicais, seja embaixo dos umbrosos olmos da Inglaterra.

(Virgínia Woolf ) 31

O corpo na obra de Hilda Hilst lança luz sobre uma multiplicidade de vozes e vontades, que flui como a correnteza de um rio atravessado por ares que sopram de vértices opostos da rosa dos ventos, provocando efeitos bastante avassaladores, descontínuos, e cuja inventividade escorrega na cadência de seus sonhos e desejos mais recônditos.

As barcas afundadas. Cintilantes Sob o Rio. E é assim o poema. Cintilante E obscura barca ardendo sob as águas. Palavras eu as fiz nascer

Dentro da tua garganta.

Úmidas algumas, de transparente raiz: Um molhado de línguas e de dentes. Outras de geometria. Finas, angulosas Como são as tuas

Quando falam de poetas, de poesia

As barcas afundadas. Minhas palavras...32

Esse corpo híbrido que atravessa a poética de Hilst se assemelha a uma concepção de corpo formulada por Friedrich Nietzsche: um corpo habitado por diversos fluxos de força de vontade em permanente dissonância. A força que se

31

Woolf, V. “Memórias de Uma Romancista”. In: “Contos Completos / Virginia Woolf “.

Tradução: Leonardo Fróes, São Paulo: Cosac Naify, 2a Reimpressão, 2007. P-95/96

32

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projeta com maior intensidade corresponde à vontade de potência (ou vontade de poder). É a vontade que grita mais alto em um dado momento. Nesse jogo de forças não há um vencedor invicto, pois tão logo uma força se sobrepõe às demais, outras vozes se reanimam e preparam terreno para uma retomada. Em Nietzsche, o corpo passa a ser pensado como um campo de batalhas, tendo sua própria história inculcada da medula à epiderme, história que por sua vez coexiste em um cenário mais amplo, atravessado por uma multiplicidade de fluxos de vontade no compasso da sociedade.

Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é esse o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza.

Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres da luz!

Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!

É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede que é noturno. E solidão!

É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale.

É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante.

É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.

Assim falou Zaratustra.

(Friedrich Nietzsche)33

A história de Hilda Hilst precisa atravessar seu corpo; corpo este que se faz presente a cada momento de sua obra. Corpo híbrido, poesia corpórea e visceral. O teatro de Hilst é um teatro encarnado, ou seja, que atravessa o corpo passando por todos os pontos nevrálgicos e sensitivos, aquilo que Artaud chama de “sensibilidade fisiológica”, por onde vibram as cores e suas intensidades, a trepidação, o envolvimento comunicativo, e as paixões, que pululam de um

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sentido para outro, da palavra para um feixe de luz, do gesto para um grito. Hilst vai além das imagens que a retina capta com retidão, e explora a linguagem para além da palavra literal. A linguagem se corporifica e seus sentidos se expandem abrangendo gesto, voz, tom, respiração, olhar, grito, silêncio, noite. O texto produz imagens que se multiplicam e criam novas possibilidades. Assim como em Artaud:

O encavalamento das imagens e dos movimentos levará, através de conluios de objetos, silêncios, gritos e ritmos, à criação de uma verdadeira linguagem física com base em signos e não mais em palavras. (...) Nessa quantidade de movimentos e de imagens tomados num tempo determinado, introduzimos tanto o silêncio e o ritmo como uma certa vibração e uma certa agitação material, composta por objetos e gestos (...) Pode-se dizer que o espírito dos mais antigos hieróglifos presidirá a criação dessa linguagem teatral pura.34

Os sentimentos movimentam o corpo. A separação entre corpo e mente, espírito e matéria não encontra ressonância em Hilst. Seu desejo atravessa o corpo, mas vai além de sua acepção material. Hilst imerge naquela materialidade fluídica da alma, aquilo que Artaud considera indispensável ao universo cênico. Tornar cônscios os pontos onde timbram os afetos, algo que corre no sangue palpitante, em jorros que seguem os movimentos que inspiram e expiram o ar. Com a respiração, circulam os afetos introjetados pelo corpo. Os músculos se contraem em um trabalho extenuante, mas a tensão se alterna com jatos de vazio. A afetividade toca os músculos, e se desdobra de um jogo de respirações por onde penetra a poesia, e irrompe com uma força incomensurável, como sugere o atletismo da alma de Antonin Artaud. Afetos que em Hilst se localizam no frágil limite entre a pele e o desejo.

Empoçada de instantes, cresce a noite Descosendo as falas. Um poema entre-muros Quer nascer, de carne jubilosa

E longo corpo escuro. Pergunto-me Se a perfeição não seria o não dizer E deixar aquietadas as palavras

Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante Ainda que imperfeito, quer nascer.

Estendo sobre a mesa o grande corpo Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar Sobre as suas ventas. Nasce intensa E luzente a minha cria

No azulecer da tinta e à luz do dia.35

34

Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-146.

35

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O corpo de Hilst ocupa o espaço do entre-muros, de uma noite adentro que se encontra no limiar do crepúsculo. Algo está para nascer. Seu poema pulsante passa pela respiração, junto com amor e ar, como elementos indissociáveis, alimento indispensável para a alma. O crepúsculo assinala o nascer de um novo dia, de um poema ensolarado que se desdobra em diferentes intensidades de azul. O corpo se estende, se envolve na bruma, é um elemento participante do espetáculo que dá luz a um novo dia.

Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios de matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector) 36

Michel Foucault define o corpo como “superfície de inscrição dos acontecimentos (...), lugar de dissociação do Eu que supõe a quimera de uma unidade substancial, volume em perpétua pulverização.”37 A história molda o

corpo e o corpo interfere na história, como dois elementos imbricados que se confundem em suas trajetórias. Como em Nietzsche e depois em Foucault, o corpo em Hilst passa pelo poderio do Estado. A violência se faz presente nesse corpo, ele é amestrado por forças que vêm de fora em forma de imperativos e imposições. O corpo resiste: encontra maneiras de burlar aquilo que o impele a um estado de passividade, ele escorrega para depois se expandir pelas brechas onde a ordem de dominação não penetra. Alteram-se os fluxos que atravessam o corpo, altera-se a ordem discursiva; metáforas e alegorias burlam a censura, a expressividade cênica encontra outros meios de dizer o indizível. O corpo assume outras formas para escapar à passividade que lhe é esperada, as antigas palavras se desfazem para dar luz a outras linguagens, a mente encontra subterfúgios para exteriorizar o que foi proibido pelos novos censores.

No contexto do estado de exceção, novos movimentos entram em voga, imprimindo novos ritmos à história, que agora dança “na corda-bamba de

36Lispector, C. “A paixão segundo G.H.” Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P-98

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sombrinha”, sabendo que em cada passo em falso pode se machucar. A analogia expressa na música de João Bosco e de Aldir Branc é apenas uma possibilidade de traduzir em imagens os “malabares” que o artista tinha que aprender em um breve perímetro de tempo para comunicar sua mensagem a um mundo recortado e segmentado por novas fronteiras.

Hilda Hilst traduz os grandes temas de seu tempo em alegorias, cuja assimilação requer um mínimo de criatividade. Metáforas que são mais que metáforas. De acordo com o filósofo John Dewey, as palavras passam por um processo de transmutação: os afetos recriam-se em um casulo até que a palavra alce voo no papel e no imaginário do leitor que imergir nesse universo enigmático. A metamorfose envolve essa conversão, que vai além de criar metáforas, pois não isenta de sentido suas ilustrações, suas evocações táteis, seus perfumes, seus gritos e seus silêncios. Há uma verdadeira fusão desses elementos, que opera para além do que impele diretamente o poeta. Nas palavras de Dewey:

Ao consultarmos os poetas, constatamos que o amor encontra expressão em torrentes impetuosas, em lagos serenos, no suspense que antecede a tempestade, no pássaro equilibrado em seu vôo, na estrela longínqua ou na lua inconstante. E esse material tampouco tem caráter metafórico, se por “metáfora” entendermos o resultado de qualquer ato de comparação consciente. A metáfora proposital na poesia é o recurso da mente quando a emoção não satura o material. A expressão verbal pode assumir a forma da metáfora, mas há por trás das palavras um ato de identificação afetiva, não uma comparação intelectual.38

Ampliemos, pois, o conceito de “metáfora”, deixemos que ela se dissocie de uma função consciente para alcançar amplitudes mais vastas. Um ato de transportar-se, como um devaneio da imaginação, algo incomensurável, que transpõe os limites das palavras e seus significados. Gaston Bachelard vê na poesia uma espécie de “convite à viagem”, algo que vai além de uma imaginação evasiva. O convite do poeta nos propõe um doce impulso, que quando posto em voga é capaz de provocar abalos sísmicos. Desperta um “devaneio salutar”, que se desdobra em uma sucessão de imagens, flutuando na imaginação. Nas palavras de Bachelard:

Esse movimento não será uma simples metáfora. Nós o experimentamos efetivamente em nós mesmos, quase sempre como um alívio, como uma facilidade para imaginar imagens anexas, como

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um ardor em perseguir o sonho encantador. (...) Uma realidade iluminada por um poeta tem pelo menos a novidade de uma nova iluminação. Já que o poeta descobre um matiz fugidio, aprendamos a imaginar todo matiz como uma mudança. Só a imaginação pode ver os matizes; ela os apreende na passagem do uma cor para outra. Há neste velho mundo, portanto, flores que tínhamos visto mal! Tínhamo-las visto mal porque não as tínhamos visto mudar de matizes. Florescer é deslocar matizes, é sempre um movimento matizado. Quem segue em seu jardim todas as flores que se abrem e se colorem já tem mil modelos para a dinâmica das imagens.39

As imagens que a poesia evoca estão em constante movimento, e só podem ser traduzidas quando sorvidas pelo imaginário, por pequenos córregos que ora seguem solitários em seus capilares fios, ora se encontram em magníficas cataratas. Deslocamentos, gotejos e relampejos moldam a poesia e a prosa de Hilda Hilst, como uma caverna repleta de estalactites móveis, que se enche de luz em certo momento do dia, para depois se esvair na escuridão profunda. Essas estruturas enigmáticas de Hilst não são apresentadas de forma pronta, pois sua linguagem aberta permite sempre novos deslocamentos.

No posfácio da compilação do Teatro Completo de Hilda, publicada em 2008, Renata Pallotini procura revelar em termos gerais o que está em jogo em cada peça, ou seja, uma entre as muitas leituras possíveis. Meu intuito é manter uma linguagem polifônica, onde há margem para diferentes leituras possíveis. Interessa a complexidade, os fios que se entrelaçam e irrompem num emaranhado aparentemente incompreensível, mas que, se vistos de perto em relação com os outros, podem esboçar uma imagem mais densa e em finos traços da artista.

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora. (...)

Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Referências

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