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A era do horror psicológico

2.2 A S DUAS FACES DO HORROR EM PESSOA

2.2.3 Terror e suspense em Stephen King

2.2.3.3 A era do horror psicológico

Após cerca de 20 anos explorando o horror em diversas escalas do inimaginável, a década de 90 será aquela em que King irá explorar, mais intensamente, o horror psicológico real, onde não necessariamente um ser sobrenatural irá assustar, e sim situações da vida, situações que podem realmente ocorrer, e isso, sem dúvida, pode vir a assustar muito mais do que vampiros, lobisomens e fantasmas.

O interessante é que o próprio autor revela isso. Ele agora quer tirar os leitores da zona do conforto, aquele lugar onde você sabe que não existe nada daquilo, para uma área onde o que ocorre, em alguns de seus livros, pode realmente vir à tona:

Quando eu escrevo, eu quero assustar as pessoas, mas há um certo elemento de conforto para o leitor, porque eles tem consciência todo o tempo de que é somente uma fantasia. Vampiros, o sobrenatural e tudo o mais. Mas estes últimos dois livros [Eclipse Total e Jogo Perigoso] tiram as pessoas da zona de segurança e isso, de certa forma, é ainda mais assustador. Talvez isso pudesse acontecer. (KING, in SPIGNESI, 2003 p. 107)

O que as duas obras da citação irão tratar é, principalmente, de pessoas perigosas. Em ambos os livros o horror é completamente real, sem praticamente nenhum artifício sobrenatural além da imaginação do escritor. Esse artifício tornará as obras desse período extremamente perturbadoras, e farão o leitor pensar se não há um assassino estreitando entre seus conhecidos.

2.2.3.3.1 Viagem no tempo

Uma das premissas dessa obra é a idéia do que acontece com nosso passado e o que aconteceria se nos deparássemos com ele. O conto Langoliers do livro Depois da meia noite

(1990) narra exatamente isso, após um grupo de tripulantes de uma aeronave passar por uma

fenda dimensional e acordar no meio do voo percebendo que a grande maioria dos passageiros simplesmente sumiu, vendo-se num impasse a respeito do que fazer. Logo, o avião é pousado por um dos sobreviventes, que também é piloto, em um pequeno aeroporto em Bangor. Porém, o que eles não sabem é que onde eles estão na verdade é o passado, e logo criaturas nominadas como Langoliers virão para apagar o que eles estão vivenciando.

O que torna a obra tão aterrorizadora é a fusão de horrores que ela traz, o psicológico

onde os sobreviventes têm que contar com a ajuda de um psicopata18 e a idéia de que irão

sumir junto com o passado se não voltarem rapidamente, além do visual, quando percebem seus inquisidores se aproximando como carrascos.

2.2.3.3.2 Coisas Necessárias

Trocas Macabras19 (1991) tratará do horror de uma forma bem peculiar. Após o

aparecimento de um homem em Castle Rock que pode conseguir qualquer coisa a um mísero

18 Os personagens que completam a equipe são um capitão de aeronave, uma paranormal, um espião, um violinista judeu e um psicopata, interessante heterogeneidade de personagens que nos leva a pensar a relação sociocultural que King pode ter tentado passar no conto.

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preço, além de uma pequena atitude maléfica por parte daquele que comprou, a história se desenrola.

O horror causado aqui consiste no medo do que seu próprio vizinho poder fazer por algo que deseja, é um medo íntimo de cada um. Quem nunca teve medo daquele vizinho que não fala com ninguém do final da rua, ou daquele que poucas vezes aparece em casa e poucos da vizinhança o conhecem? Entretanto, em Trocas Macabras, o medo supera essas peculiaridades; ele vai de encontro com aquilo que as pessoas podem fazer para adquirir um bem pessoal, aquém do que a política de boa vizinhança pode sugerir e além do que a sociedade pode aceitar como sendo um bom comportamento porta-a-porta.

Esse é mais um exemplo da fase psicológica de King. Mesmo colocando elementos sobrenaturais, a obra tem como enfoque a traição por parte daqueles em quem, supostamente, deveríamos confiar, e nos traz mais uma vez o horror de que não podemos fugir, o horror de nossa segura vizinhança.

2.2.3.3.3 Saco de Ossos

O interessante nessa obra é descobrir qual é o enfoque principal, ou melhor, se há um principal. Indaga-se se devemos dar maior atenção à assombração que parece consumir Mike Nooman, ou à batalha contra o poderoso e cruel Max Devore.

Na trama, um renomado escritor está sofrendo com a morte de sua esposa, e há quatro anos ele já não consegue escrever. Então, resolve voltar a sua antiga casa onde conhece uma bonita moça que está sendo atormentada pelo pai de seu ex-marido, o qual está tentando tirar sua única filha. Ao mesmo tempo, Nooman começa a perceber coisas estranhas em sua casa quando os ímãs de sua geladeira formam a palavra ―OLÁ‖. Após uma excursão em seu sótão, logo uma trama de assombração e uma batalha que Nooman trava contra Max Devore se desenrolam para um final surpreendente.

O que nos vale nesse livro é a fusão entre horror sobrenatural e real, e como ambos são tratados de maneira semelhante, para levar o leitor mais uma vez para fora de sua zona de conforto.

2.2.3.3.4 – Divina providência

A idéia da existência ou não de Deus na literatura do horror não é muito difundida, ao menos não diretamente, apesar de várias vezes termos personagens que utilizam o artifício divino. Porém, a obra de King, À espera de um milagre (1996), trata John Coffey de uma

Spignesi o compara a um avatar de Cristo, avatar esse que nos tem vigiado desde sua morte há dois mil anos.

A história trata de John Coffey, um grande homem negro que é acusado por um crime que, aparentemente, cometera, e agora está condenado à morte na cadeira elétrica. Porém durante seu período no corredor da morte, Coffey realiza pequenos milagres com suas mãos, mostrando um poder sobrenatural a todos, um poder benevolente que torna tanto aqueles que leram, ou os que apenas assistiram à adaptação cinematográfica, propensos a sair transformados após a leitura.

Mas o que há de horror nessa obra fica muito mais suspensa do que olhos não perceptíveis podem ver: o horror aqui é o da morte eminente, o poder de não controlar o que está por vir, o inevitável fim a que qualquer ser humano está propenso: a morte, seja ela justa ou não.

2.2.3.4 – Um retorno às origens e uma aventura épica

Os últimos dez anos de King foram tanto uma viagem pelo passado como uma aventura por novas terras, principalmente a fantasia. Nessa década, King escreveu seu maior

épico, contendo sete livros e mais de duas mil páginas, intitulado A Torre Negra (2004) 20‖,

uma aventura em que ele irá explorar um novo mundo criado por ele mesmo e tendo como idéia o mundo J. R. Tolkien (O Senhor dos Anéis).

Durante esse tempo serão vistos diversos elementos já consagrados do autor, entretanto, a maioria dessas obras foi escrita após o acidente em que King quase perdeu sua vida. Logo, alguns personagens, como o menino em O Apanhador de Sonhos, serão um reflexo dele mesmo. Assim, o escritor irá nos proporcionar mais uma dose do que ele serve de melhor, o terror.

2.2.3.4.1 – Mais um conjunto de terror

Em mais uma coletânea de contos, King irá viajar em seu próprio mundo de fantasia mais uma vez nos brindando com o melhor do gênero. No entanto, um dos quatorze contos que formam esse livro retrata um terror explorado de forma magnífica em Poe com seu conto

O Enterrado Vivo, em que o escritor narra a curta história de uma pessoa que acorda após já

20 Mesmo sendo uma das principais obras de King, esta obra não será abordada nesse capítulo, principalmente por se tratar principalmente de uma aventura e não do terror a que está sendo o foco do estudo. Entretanto não é possível deixarmos totalmente de lado a aventura de Roland pelo mundo fantástico de King, pois ela retrata a busca do homem pelo seu destino, e as peripécias que acarretarão sua busca. Além disso, A Torre Negra será referenciada em diversas obras do autor, e essas referências cruzadas serão de grande valia para um estudo mais aprofundado do escritor.

estar sepultado e vive seus últimos momentos enclausurado dentro de sua própria cova, tema esse posteriormente explorado várias vezes, mas nunca com o mesmo teor.

Poe diz não haver maior pesadelo do que ser enterrado vivo, mas o que ele diria sobre sofrer uma autópsia enquanto está vivo nunca iremos descobrir. E é exatamente isso que King trata no conto Sala de Autópsia 4.

Howard Cottrell foi declarado morto pelo médico legista e se encontra em uma mesa de autópsia. Entretanto, o que os médicos não sabem é que ele continua vivo, vendo, ouvindo e, o pior de tudo, sentindo tudo o que toca nele. Sem dúvida, esse é um conto extremamente aterrorizante para qualquer um, e King irá mesclar tanto o medo da morte como o medo de permanecer vivo, fornecendo ao leitor um banquete da melhor espécie do gênero.

A história é contada com tanta realidade e o terror de Howard é comunicado de forma tão eficaz que ela nunca falha em perturbar os fãs que já tiveram a oportunidade de lê-la. Para mim, é uma das histórias mais assustadoras de King. (SPIGNESI, 2003 p. 183)

2.2.3.4.2 Não atenda o Celular

Em sua investida no universo dos zumbis, King irá usar como artifício um objeto que praticamente todos possuem e usam hoje em dia, o celular.

A obra Cell (2006) narra a história de um artista gráfico chamado Clay Riddell, que após um tempo sem produzir nada de bom consegue emplacar um bom projeto. Feliz com a boa perspectiva, Clay sai para tomar um sorvete e o horror começa: um tipo de vírus se espalha por todos aqueles que estavam usando o celular naquele momento e Boston se transforma num filme de George Romero em poucos instantes.

O teor principal de obra é, segundo Luiz Antonio Guiron, a maior sátira de Stephen King quanto ao consumismo, e não seria menos que isso. A obra transborda de informações contra os padrões que a indústria coloca, e nos faz repensar o porquê de comprarmos tudo o que nos é mostrado. O horror se faz exatamente por esse tema. Assim como Romero, King usa um ser sem mente própria, que nesse caso é dominado por algo para causar o terror naqueles que sobreviveram, e assim providenciar uma sociedade utopicamente livre do consumismo.