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O Trágico encerramento

2.3 O S FINAIS NÃO CONVENCIONAIS DE UM CRIADOR DO MEDO

2.3.2 Por que as pessoas gostam do terror?

2.3.2.2 O Cemitério

2.3.2.2.5 O Trágico encerramento

Neste momento estou pensando sobretudo no meu livro O Cemitério e numa cena em que um pai exuma o filho morto. Isto acontece alguns dias depois que o garoto foi vitimado por um acidente de trânsito, e enquanto o pai está sentado no cemitério deserto, ninando o filho nos braços, o cadáver cheio de gases explode em desagradáveis flatos e regurgitações. (MILLER,1990, p. 40)

A cena citada acima retrata a total falta de consciência em que se encontra Louis. Um pouco antes disso, após deixar sua esposa no aeroporto, Louis começa a programar um plano para retirar o corpo do filho do cemitério e levá-lo ao MicMac para trazê-lo de volta. Compra os equipamentos necessários para o ato e parte para sua investida final.

Muito além de um simples choque de realidade, Louis está consideravelmente influenciado por tudo que lhe é mostrado durante a obra. O caminho que foi percorrido pelo médico levando-o ao patamar em que agora se encontra foi demasiado intrigante para todos que chegaram a esse ponto da obra. O final será apresentado de forma tão maliciosa que até

mesmo o mais acostumado leitor de horror, isso inclui os fãs do grotesco horror de Clive

Barker30, podem vir a sentir um gosto amargo ao ler o entrelace da obra.

Louis parte para sua derradeira missão de desenterrar o filho, compra equipamentos para o serviço e invade o cemitério como se fosse um adolescente que foi desafiado pelos amigos a entrar no lugar à meia-noite. Ao encontrar a lápide do filho, Louis se sente um pouco nauseado, talvez pelo ferimento que sofreu ao pular o muro do cemitério, mas consegue desenterrar o filho. Ao pegá-lo no colo, e a descrição na citação acima exemplifica bem isso, a decadência de sua consciência já está completa, e sua missão já gera frutos. Louis escapa do cemitério, entra em seu carro e parte para a ressurreição de Gage.

Durante a aventura de Louis, Rachel retornava da casa de seus pais com um carro alugado a toda velocidade. Ela pressentira algo ruim e corria como louca até Ludlow. Queria ver seu marido, encosta num posto e liga para casa, ninguém atende e ela torna a ligar, mas agora para Jud. O velho, aturdido, conta toda a história para ela e diz que ficará de alerta para que Louis não faça nada que possa se arrepender depois, mas não consegue, pois uma força invisível e onipotente o faz dormir no exato momento que Louis chega em casa com o corpo do filho e logo depois segue ao cemitério. Jud acorda, mas já era tarde demais, como ele constataria em pouco tempo.

Jud Crandall acordou com um estremecimento, quase caindo da cadeira. Não tinha idéia do tempo que dormira – podia ter sido quinze minutos ou três horas. Consultou o relógio e viu que eram cinco e cinco. Teve a sensação de que tudo na sala fora sutilmente mudado de lugar e, por ter dormido sentado, tinha uma carreira de dores nas costas. (KING, 2006, p. 265)

Louis inicia sua caminhada pela íngreme ladeira até o ―Cemitério de Bichos‖ carregando seu filho em um saco. Chega ao local muito cansado, a primeira vez que fora lá carregava Gage nas costas e agora o menino era um saco de ossos carregado como se fosse um instrumento. Imagina que mal conseguiria chegar ao MicMac, e além disso teria de cavar naquele solo extremamente pedregoso. Mas iria até o fim, nada mais importava e seu maior desejo era o de que tudo acabasse logo. Ele teria sua família de volta, um pouco diferente, mas todos estariam lá, felizes como no fatídico dia do piquenique.

Assim como acontecera no dia em que levaram Church ao local, Louis ouve um barulho que lhe estremece por um tempo, o Wendigo de que ele ouvira falar parecia estar presente, ali ao lado dele, e ele chega a achar que o monstro está andando muito próximo,

protegendo o local sagrado a que Louis se encaminhava, e numa típica cena do romance The

Call of Cthulhu, o monstro parece passar em cima de Louis. O terror é tão intenso que Louis

para por um momento e analisa se aquilo poderia ser real, mas levando em consideração que ele estava levando alguém para ser ressuscitado, qualquer coisa poderia ser real.

Louis parou completamente, atento ao ruído... ao inevitável ruído de aproximação. Sua boca se abriu, cada tendão que lhe sustentava o queixo simplesmente cedeu. Era um som completamente diferente de tudo que já ouvira – um som com vida própria e um som enorme. De algum lugar nas vizinhanças, e cada vez mais perto dele, os arbustos vinham se rompendo. Ouvia o estalar da vegetação sob a pressão de pés inconcebivelmente grandes. O solo de geléia começou a estremecer numa forte vibração. Tomou consciência de que estava gemendo... (KING, 2006, p. 253)

Louis está extremamente cansado, não ligaria se deitasse ali mesmo e dormisse por um tempo. Divaga se alguém já tinha visto aquele lugar de cima e o que teria pensado, mas não importa, havia cumprido o que tinha se comprometido a fazer. Desenterrara e enterrara seu filho novamente. Quantos pais tiveram a infelicidade de fazer uma blasfêmia dessa não passa nem pela cabeça de Louis.

Retorna sua trajetória para casa, e logo que chega sente-se completamente exausto, deita, ainda sujo da lama e dos dejetos do filho, imaginando ouvir um barulho no andar de baixo. Talvez fosse Gage, mas em seu subconsciente ele acreditava que ainda era muito cedo para ele voltar, que o mais provável seria durante a manhã, assim como Church. Louis adormece e quando acorda, ao descer para tomar café, vê um carro em frente à casa de Jud. Aqui tudo já estava quase concretizado, em pouco tempo Louis enfrentaria mais uma batalha, e dessa vez seria contra seu filho-monstro e o resto de capacidade sã de consciência que lhe sobrara.

Enquanto Louis dormia, Gage retorna da morte como um ser inominável. Apenas o corpo de Gage ainda é o mesmo, o que está dentro do menino agora é algo maligno, algo que Louis, em seu íntimo, acreditava que poderia acontecer, mas queria acreditar que não. Jud encontra pela última vez o filho de Louis. O menino primeiramente passa em casa – o barulho realmente advinha de Gage quando o garoto pegara um bisturi da maleta do pai. Jud se assusta com o garoto, tenta fugir mas parece que uma força indomável está a favor de Gage, o garoto se aproxima e mata Jud enquanto seus lamentos escoam por sua mente.

— Oh, meu bom Jesus – Jud exclamou erguendo a mão direita para proteger o rosto. E então houve uma ilusão de ótica; certamente seu cérebro devia ter sido atingido porque viu o bisturi de ambos os lados da palma da mão ao

mesmo tempo... mas alguma coisa morna começou a pingar de seu rosto e ele compreendeu. (KING, 2006, p. 267)

Rachel chega em Ludlow e corre em direção à casa de Jud. Ao entrar fica paralisada, pois Zelda, sua irmã, estava lá. Ela havia voltado como prometera anos atrás, e agora faria Rachel ter as costas como a dela. Rachel sofreria como ela sofreu e não havia nada para ser feito, mas em pouco tempo ela percebe que não era Zelda, que se enganara tremendamente, era Gage, Gage havia voltado, mas não do jeito que ela desejava.

Gritou o nome do filho e estendeu os braços. Gage correu e pôs-se entre eles – mas continuava com uma das mãos atrás das costas, como se escondesse um buquê de flores colhido em algum fundo de quintal — Trouxe uma coisa pra você, mamãe! — ele gritou. — Trouxe uma coisa pra você, mamãe! Trouxe uma coisa, trouxe uma coisa! (KING, 2006, p. 271)

Louis acorda e vê Church. Sai de casa, atravessa a rua e vai à casa de Jud, achando estranho um carro que ele nunca havia visto estar estacionado ali. Era o carro alugado de Rachel. Lá dentro o clímax final da obra é montado, assim como a batalha de criatura e criador em Frankenstein, Louis lutaria contra seu filho, e acabaria vencendo. O menino- monstro é derrotado e tudo se encaminha para um final menos pessimista do que poderia ser.

Ao ver que ―Gage‖ havia matado Jud e Rachel, o resquício de consciência que Louis poderia ter é consumido, não havia mais nada a perder. Seu filho morrera pela segunda vez e dessa vez por suas próprias mãos, e por consequência de sua ressurreição sua esposa e melhor amigo estavam mortos. Numa tentativa final de redenção, Louis pega o corpo de sua esposa recém-morta acreditando que, diferente de Gage, que demorou para ser levado ao MicMac, Rachel tinha uma possibilidade de voltar ―normal‖. Tira o corpo de sua esposa da casa e incendeia a residência.

Steve Matherton, que estava preocupado com os Creed, mais com Rachel para ser mais direto, estava chegando para visitá-la quando vê a fumaça. Consegue alcançar Louis e o mesmo está com Rachel enrolada num lençol ensanguentado. Toda essa cena final é mostrada como se o leitor estivesse vendo apenas flashes, e é interessante como King consegue transformar a atmosfera nesse momento. Já sabemos o que irá ocorrer, e mesmo assim é assustador, é horrendo e queremos acreditar que ainda há uma solução, mas não há, tudo termina em pouco tempo, e da pior maneira possível.

Steve tenta acompanhar Louis na subida para o cemitério, enquanto Louis fala coisas sem sentido para ele, como enterrar a mulher e coisa do gênero, ele não consegue acompanhar

Louis retorna de chapéu e luvas, esconde as feridas nas mãos e os cabelos brancos, para responder as perguntas dos policiais. Tudo ainda era muito recente para suposições e Louis é liberado em seguida. Ninguém imaginava o que havia ocorrido com os Creed. Louis retorna para casa e finalmente é revelado seu nada feliz destino.

Os passos cessaram bem nas suas costas. Silêncio. A mão fria caiu no ombro de Louis. A voz de Rachel era um chiado que parecia cheio de terra. — Querido — disse a coisa. (KING, 2006, p. 287)

Para o leitor não habituado com a ficção de King, e até mesmo para os habituados, O

Cemitério é uma obra-prima do pessimismo. Advindo de uma mente perturbada com a idéia

de publicar a obra, O Cemitério mexe com o íntimo do leitor, faz com que ele se sinta impotente diante do que ocorrerá, parece não haver salvação para Louis em momento algum da obra, nem mesmo com as aparições de Pascow, ou Church tendo retornado diferente, faz Louis parar de traçar sua trajetória, a obliteração de sua alma.

Seu final é completamente previsível, mas mesmo assim o leitor é golpeado com algo pontudo ao lê-lo. Louis não só perde seu filho, como acaba fazendo-o morrer de novo, perde sua esposa e melhor amigo, então, finalmente, paga com sua vida por mexer em algo além do conhecimento humano.

Todas as referências religiosas da obra servem para dar ênfase à idéia do ser onipotente que rege o mundo, e que ao mexer em algo fora do que nos é dado, ele deve sofrer as punições. Várias vezes durante a obra King faz referências a uma força impulsionando os acontecimentos. O motorista que atropelou Gage diz ter sentido vontade de acelerar naquele percurso, Rachel quase sofre um acidente no retorno para casa que poderia ter evitado o pior, Jud dorme no exato momento em que Louis chega em casa com o corpo do filho, e o galão de querosene está aberto bem à mostra quando Louis resolve botar fogo na casa. Assim como uma corrente, as ações que levam ao final da obra parecem ter sido entrelaçadas, como se não houvesse o que fazer, estavam todos atados a um poder invisível que controlava tudo, e que acabou vencendo no final.