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2.3 ANÁLISE DAS TENDÊNCIAS IDEOLÓGICAS MANIFESTAS

2.3.2 A Escala do Etnocentrismo

Os critérios de aplicação, coleta de dados e análise da escala do Etnocentrismo (E) aparecem no capítulo “Estudo da Ideologia Etnocêntrica”, escrita por Daniel J. Levinson. Para os autores, o etnocentrismo está relacionado ao modo como o indivíduo é fechado etnicamente ao seu grupo, levando-o a rejeitar aquilo pertence ao grupo alheio. Trata-se de outro ponto de partida interessante para a análise de uma personalidade autoritária, uma vez que ele proporciona o conhecimento dos aspectos psicológicos que permeia as relações entre grupos, de modo a perguntar por que os indivíduos se inclinam ao conflito ou competição – afetos esses que, apesar de não serem nocivos por si mesmos, sem dúvida, estão presentes na base de qualquer ação fascista (ADORNO; et al, 1969).

O etnocentrismo trata-se de um sistema ideológico que orienta a ação dos grupos por meio da distinção realizada entre endogrupos (ingroups) e exogrupos (outgroups). O endogrupo é aquele em que o sujeito manifesta um grau de identificação com seus participantes, segundo critérios que podem ser diversos (étnicos, políticos, econômicos, religiosos, afinidades artísticas ou profissionais etc.); já o exogrupo, pelo contrário, é aquele em que o sujeito compreende como alheio aos seus critérios de identificação. É neste ponto que se localiza a ideologia etnocêntrica: ela não só identifica o exogrupo como alheio, mas também como rival a ser combatido, implicando assim em uma disjunção lógica exclusiva (isto é, ou ‘nós’, ou ‘eles’):

Uma característica primária da ideologia etnocêntrica é a generalidade da rejeição do exogrupo. É como se o indivíduo etnocêntrico se sentisse ameaçado pela maioria dos grupos aos quais ele não tem sentimento de pertença; se ele não pode se identificar, ele deve se opor; se um grupo não é “aceitável”, passa a ser “alheio” [pária] (ADORNO; et al, 1969, p. 147, tradução nossa).

Para a construção da escala do Etnocentrismo foram utilizados os mesmos procedimentos metodológicos da escala AS, ou seja, a aplicação de questionários do tipo Likert, levando em consideração a redação de itens essencialmente negativos. Portanto, quanto maior os escores nesta escala, maiores serão os resultados que afirmam um caráter etnocêntrico. A escala inicial do Etnocentrismo constava com 34 itens, subdivididos em três subescalas (“Negros”, “Minorias” e “Patriotismo”). A função das subescalas era justamente desdobrar o tema central da escala, de modo a ter acesso a determinadas facetas que podem passar despercebidas. Além do que, a correlação das subescalas com a escalas dão uma maior segurança para comprovar a hipótese inicial: que o etnocentrismo – assim como o antissemitismo – é um fenômeno total, que opera de maneira padronizada nas estruturas mentais dos indivíduos.

a) Negros: levando em consideração o histórico de opressão contra o negro, bem como as imagens elaboradas popularmente a partir dele, os autores acharam conveniente apresentar uma subescala específica para esse grupo. De modo geral, os itens desta subescala tentam enfocar parte da ideologia que permeia a relação de negros com brancos, isto é, a partir de algumas noções negativas como ‘preguiçosos’ e ‘ignorantes’, que não ambicionam nenhuma igualdade com os brancos – igualdade essa que, na opinião dos brancos, seria um desejo apenas dos líderes negros.

Os itens do questionário, como “Há algo inerentemente primitivo e incivilizado no negro, como se mostra em sua música e em sua extrema agressividade” ou “Seria um erro permitir que negros cheguem a ser capatazes ou chefes de brancos” (ADORNO; et al, 1969, p. 105, tradução nossa), fazem questão de enfatizar determinadas características negativas do negro na tentativa de justificar a sua condição de inferioridade na sociedade. A lógica preconceituosa prevista em tais itens é a da transferência da responsabilização: o culpado pela situação do negro é o próprio negro – e não o branco. Desta forma, o que os autores tentavam captar em tal questionário era o padrão de pensamento camuflado por trás desta transferência, cujo objeto não era emancipação do negro, mas a manutenção de sua subordinação.

Estados Unidos, sobre os quais existem opiniões e imagens negativas e que, geralmente, estão sujeitos a atitudes de subordinação, restrição da ação social, segregação e até perseguição88.

Frases como “Qualquer grupo ou movimento social que contenha muitos estrangeiros deve ser observado com suspeita e, sempre que possível, também ser investigado pelo FBI” ou “Estamos gastando muito dinheiro para o tratamento de criminosos e loucos e para a educação de pessoas incapazes por natureza” (ADORNO; et al, 1969, p. 106, tradução nossa), indicam, de maneira implícita, estruturas mentais que já orientam, de antemão, o padrão da experiência etnocêntrica. Neste caso, a afirmação do endogrupo – o grupo do ‘eu’ – ocorre somente na medida em que o exogrupo – o grupo do ‘outro’ – passa a ser restrito, subordinado ou extinto. A ‘suspeita’ (ou qualquer outra imagem negativa) destinada ao exogrupo não seria mais uma deficiência presente no ‘eu’ do que no ‘outro’? Entra em cena, portanto, uma espécie de egoísmo cultural ou grupal que se interpõe a cada nova experiência do indivíduo com outras culturas ou grupos.

Embora o preconceito etnocêntrico seja dirigido contra minorias – visto aqui pelo aspecto quantitativo, em oposição ao vago conceito de ‘maioria’ –, pode-se perguntar se o etnocentrismo não se enquadraria também em grupos numerosos, como por exemplo, o fenômeno do desprezo pelas massas, a incapacidade de pessoas com deficiência e a subordinação das mulheres. Logo, a adesão certos indivíduos, por exemplo, ao item “Embora as mulheres sejam necessárias nas forças armadas e na indústria, elas deveriam retornar ao seu devido lugar, o lar, quando a guerra acabar” (ADORNO; et al, 1969, p. 106, tradução nossa), permitiu aos autores pensarem o etnocentrismo em contextos distintos que o da minoria quantitativa.

c) Patriotismo: essa subescala encara as relações internacionais a partir da noção de patriotismo, tomando o país como endogrupo em oposição às demais nações – consideradas como exogrupos. Segundo Adorno et al (1969), o patriotismo em questão não se aplica apenas ao conhecido ‘amor pela pátria’, mas à cega adesão do grupo a determinados valores culturais nacionais, que leva em consideração tanto a conformidade incondicional às modalidades do grupo predominante, como a rejeição automática de outros povos como exogrupos, conforme

88 Dentre esses grupos de minorias, além dos judeus e negros, estão incluídos as seitas religiosas e partidos políticos

minoritários, os movimentos sociais e sindicatos que possuem uma quantidade excessiva de estrangeiros, bem como outras minorias étnicas, como japoneses e filipinos, nascidos no país. Além deles, também entram como minorias os chamados “zoot-suiters” (isto é, jovens negros e hispano-americanos, que usaram de uma determinada “antimoda” como elemento de reafirmação social), prostitutas, homossexuais, criminosos e outros grupos, em geral, indesejáveis para a sociedade – ou seja, que apresentam atitudes e opiniões hostis ao status quo (ADORNO; et al, 1969).

expressam os itens: “Patriotismo e lealdade são os primeiros e mais importantes requisitos de um bom cidadão” e “Em vista da atual emergência nacional, é altamente importante reservar os cargos governamentais de responsabilidade aos nativos brancos e cristãos” (ADORNO; et al, 1969, p. 108, tradução nossa). Nesse caso, os autores fazem uma distinção entre pseudopatriotismo e patriotismo genuíno, no qual identifica no segundo uma certa disposição crítica para analisar à adesão aos valores nacionais89.

Além destes aspectos, a subescala do patriotismo também levou em consideração uma avaliação geral sobre a questão da obediência e da disciplina, que na opinião do senso comum é naturalmente compreendida a partir da noção hierárquica da dominação do superior ao inferior: “Sempre existirão nações superiores e inferiores no mundo e, pelo bem de todos os envolvidos, é melhor que os superiores estejam no controle dos assuntos mundiais” (ADORNO; et al., 1969, p. 108, tradução nossa). Logo, uma vez que a obediência é compreendida hierarquicamente pela questão do domínio, passa então ser legítima a punição aos indivíduos do exogrupo que não se encaixam no status quo, como pode ser compreendida a partir do seguinte item: “O atual tratamento dado aos desertores de guerra, aos que evadem o serviço militar e aos estrangeiros inimigos é muito brando e indulgente. Se uma pessoa não está disposta a lutar pelo seu país, ela merece algo muito pior do que apenas a prisão ou o campo de trabalho forçado” (ADORNO; et al, 1969, p. 108, tradução nossa). A noção de superioridade-inferioridade também abarca questões em torno da supremacia nacional, que, ao mesmo tempo em que identifica algumas nações como perigosas (alemães e japoneses), também almejam o domínio sobre as mesmas ou sobre outras (ADORNO; et al. 1969, p. 108- 109).

Enfim, a partir das frases da subescala do patriotismo, os autores objetivam, portanto, identificar aquelas estruturas mentais que justificam moralmente a exclusão ou a segregação daqueles que não participam do endogrupo patriótico. As questões implícitas também estão presentes: se por um lado o pseudopatriotismo adere cegamente à recusa de uma interferência estrangeira na organização do seu endogrupo, por outro lado, não consegue enxergar a dominação que o seu grupo pode exercer sobre o exogrupo. Nesse caso, a preocupação em barrar uma eventual dominação de qualquer exogrupo, desdobra-se agressivamente, no endogrupo, como justificativa plausível para uma reação autoritária.

89 “Seria mais adequado usar o termo pseudopatriotismo em distinção ao patriotismo genuíno, no qual o amor ao

país e a adesão aos valores nacionais baseiam-se no entendimento crítico. Aparentemente, o patriota genuíno pode apreciar os valores e os costumes de outras nações, bem como ser capaz de admitir muitas outras coisas que não poderia aceitar para si mesmo. Ele está livre do conformismo rígido, da rejeição ao exogrupo e da luta imperialista pelo poder” (ADORNO; et al, 1969, p. 108, tradução nossa).

Adorno et al concluíram que a correlação entre as escalas do Antissemitismo e a do Etnocentrismo possuem aspectos próximos e significativos, porém com a diferença de que a primeira trata de um aspecto parcial e constituinte da segunda, considerada como uma estrutura mental maior: “Pareceria mais adequado considerar o antissemitismo como um dos aspectos deste estado mental mais geral; de todo modo, o que requer explicação não é o preconceito contra qualquer grupo, mas a ideologia etnocêntrica total” (ADORNO; et al, 1969, p. 122, tradução nossa)90.

A partir da análise destas três subescalas, os autores apresentaram uma definição interessante sobre o etnocentrismo, a partir da qual observa-se alguns de seus elementos que estão presentes no padrão da mentalidade autoritária.

O etnocentrismo baseia-se em uma distinção penetrante e rígida entre endogrupo-exogrupo; envolve imagens negativas estereotipadas e atitudes hostis em relação aos exogrupos, imagens positivas estereotipadas e atitudes submissas em relação aos endogrupos, e uma visão hierárquica e autoritária da interação grupal, na qual os endogrupos são altamente dominantes e os exogrupos dominados (ADORNO; et al, 1969, p. 150, tradução nossa). Mais do que simplesmente conceituar genericamente o etnocentrismo, a citação acima ganha uma função estratégica para o texto porque sintetiza, com rara clareza e objetividade, os principais elementos do pensamento etnocêntrico, a partir do qual é possível identificar pelo menos cinco características:

 Generalidade da rejeição ao exogrupo: essa característica indica a dificuldade de aceitação de um indivíduo àquilo que é diferente dos interesses do seu grupo. É como ele se sentisse ameaçado por todos aqueles grupos ao quais não nutrem algum sentimento de pertença ou identificação. O que não torna igual, transforma-se em ameaçador: “se ele [grupo] não puder se identificar [a outro grupo], deve então se opor; se um grupo não é ‘aceitável’, então torna-se ‘estranho’” (ADORNO; et al, 1969, p. 147). A generalidade desse critério passa então a organizar as formas de sociabilidade, indicando não mais as relações entre indivíduos, mas as rivalidades, estranhamentos dos grupos que pertencem.

 Mudanças sofridas pelo exogrupo em diferentes níveis de organização social: a identificação endogrupo/exogrupo dependerá, em muitos casos, do nível da organização social

90 Este aspecto foi implementado, inclusive, pelo acréscimo de mais uma subescala no Etnocentrismo, a dos judeus,

que contou com 4 itens para o modelo do questionário “Forma 45”. Para o modelo “Forma 40” foram excluídos todos os itens relacionados aos judeus, para que assim o questionário não pudesse ser negativamente marcado por questões polêmicas antissemitas.

que os grupos em questão estão inseridos. Por exemplo, no nível das relações internacionais, o indivíduo americano identificará como exogrupo todos os não-americanos. No entanto, quando a discussão se desloca para o nível das relações internas, a identificação do exogrupo seguirá outros critérios; se o indivíduo é cristão-católico, o exogrupo passará a ser todos os protestantes, e assim por diante. Para o sujeito etnocêntrico, pode-se até mudar os contextos de organização, porém jamais o padrão de pensamento ‘endo/exogrupo’: “Parece, então, que o indivíduo que manifesta uma concepção pseudopatriótica da América em relação a outras nações, realmente considera a maioria dos americanos como um exogrupo” (ADORNO; et al, 1969, p.194, tradução nossa).

 A necessidade de um exogrupo: o indivíduo etnocêntrico é caracterizado não só pelo seu fechamento ao endogrupo, mas pela necessidade de existência de um exogrupo para segregar. Essa dependência combativa a todo e qualquer exogrupo, no entanto, impede o etnocêntrico de criar um laço de identificação com a humanidade como um todo, uma vez que ele se torna incapaz de se relacionar com qualquer outro indivíduo sem antes prejulgá-lo como um mero espécime de um grupo objetivado. “A incapacidade de se identificar com a humanidade assume a forma política do nacionalismo e do cinismo sobre o governo mundial e a paz permanente” (ADORNO, et al, 1969, p.148, tradução nossa).

 O conteúdo da ideologia etnocêntrica sobre os exogrupos: não se pode negar o fato de que o conteúdo da ideologia etnocêntrica apresenta variações diversas, tanto por causa dos diferentes indivíduos participantes do endogrupo, como também por conta de que cada indivíduo pode ter conceitos ou atitudes diferentes para com distintos exogrupos. No entanto, apesar destas diferenças, os autores afirmam a existência de determinadas tendências gerais, semelhantes as encontradas na ideologia antissemita, como por exemplo, a caracterização do exogrupo como ‘ameaça’ ou ‘debilidade’ a ser combatida: “Essencialmente, os exogrupos são vistos como ameaçadores e ambiciosos pelo poder. [...] Uma das principais características da maioria dos exogrupos é que eles são objetivamente mais fracos do que os grupos que supostamente os ameaçam” (ADORNO; et al, 1969, p. 148, grifo do autor, tradução nossa). Além disso, tendências moralistas baseadas na relação hierárquica da dominação também configuram as diversas práticas de justiça e obediência (ADORNO; et al, 1969).

 Imagem estereotipada do endogrupo: o membro participante atribui ao endogrupo uma imagem também estereotipada, como assim faz com o exogrupo, porém, com significados opostos: se para o exogrupo há a afirmação de uma estereotipia negativa, para o endogrupo ocorre uma estereotipia positiva. Ao se filiarem como membros, os participantes atribuem ao endogrupo uma moralidade que lhe garante o status de superior. “Os endogrupos são

concebidos como superiores na moralidade, habilidade e desenvolvimento geral; eles também devem ser superiores em poder e status, e quando seu status é rebaixado ou ameaçado, o etnocêntrico tende a se sentir perseguido e vitimado” (ADORNO; et al, 1969, p. 149, tradução nossa). O que os autores concluem é que essa legitimação ocorre não só pela fidelidade do indivíduo, mas pela sua cega submissão ao endogrupo idealizado e estereotipado.