• Nenhum resultado encontrado

A Legitimidade da Pesquisa Empírica na Trajetória da Teoria Crítica

1.3 A MUDANÇA DE EIXO E A QUESTÃO DA PESQUISA EMPÍRICA NA TEORIA

1.3.2 A Legitimidade da Pesquisa Empírica na Trajetória da Teoria Crítica

Tornou-se um ‘lugar comum’ caracterizar como prescindível a questão da pesquisa empírica na trajetória intelectual dos representantes da Teoria Crítica, chegando ao limiar do menosprezo, na opinião de alguns comentadores (DUARTE, 2001). No mínimo, uma questão polêmica, seja por conta do constante rótulo que leva a produção de Adorno e Horkheimer – vistos como autores essencialmente teóricos –, seja por causa das inúmeras aplicações

mecanizadas de alguns conceitos extraídos do ideário da Teoria Crítica – como de ‘razão instrumental’, ‘indústria cultural’ etc. – e que ganham espaço em pesquisas empíricas que desconhecem a relação entre os conceitos empregados e o modo como foram investigados empiricamente (ANTUNES, 2014).

Todo esse processo, somado aos inúmeros ‘estereótipos’ criados a partir do relato de Adorno acerca de suas dificuldades de adaptação à pesquisa empírica dos Estados Unidos35

erroneamente generalizado por diversos comentadores –, levou a uma interpretação minimalista do papel da pesquisa empírica pós década de 40, compreendendo-a como uma mera complementação das matrizes conceituais apresentadas na Dialética do Esclarecimento e outros textos teóricos. Sobre esse assunto, Antunes (2014) apresenta um exemplo interessante: Ziege (2009), em seu livro Antisemitismus und Gesellschaftstheorie, ao propor uma comparação entre duas pesquisas empíricas do Instituto – a saber, Antisemitism among American Labor (Antissemitismo entre Trabalhadores Americanos) e The Authoritarian Personality (A Personalidade Autoritária) –, ao mesmo tempo em que afirma que a primeira está muito mais próxima da Dialética do Esclarecimento, também atribui à segunda um caráter heterogêneo e, portanto, dissidente daquilo que seria o cerne original da Teoria Crítica. Observe o trecho:

The Authoritarian Personality foi ocasionalmente interpretada como uma saída radical da Teoria Crítica. Porém, com relação aos pressupostos filosóficos, o Antisemitism among American Labor está muito mais próximo da Dialética do Esclarecimento, de 1944, do que The Authoritarian Personality. E isso ocorre devido ao heterogêneo grupo de autores. Somente Adorno está envolvido em ambos os estudos, no entanto, o último apresenta uma equipe repleta de colaboradores diversos. Os três coautores mais importantes de The Authoritarian Personality não são sequer representantes da Teoria Crítica e trazem elementos diferentes da psicologia behaviorista americana, da psicologia austríaca da Escola Buhler e do positivismo lógico do Círculo de Viena para a Teoria Crítica (ZIEGE, 2009, p. 11-12, tradução nossa).

Outra questão a ser levada em conta é a própria popularização das obras especulativas e teóricas, que, sem dúvida alguma, são muito mais divulgadas do que aquelas de caráter empírico. Esse fenômeno acabou determinando, para o público leitor, qual deveria ser o pensamento oficial da Teoria Crítica, em detrimento da própria pesquisa empírica, amiúde observada como uma questão importante para a história do Instituto, porém secundária para a

35 Cf. ADORNO, Theodor W. Experiências Científicas nos Estados Unidos. In: ADORNO, Theodor W. Palavras

consolidação da Teoria Crítica (DUARTE, 2001). Sobre isso, conforme nos relata Antunes (2014), é interessante observar o caso da tradução parcial de Studien über Autorität und Familie (Estudos sobre Autoridade e Família)36, pesquisa empírica de grande porte e fundamentalmente

marcante na trajetória da Teoria Crítica, realizada pelo Instituto antes do exílio nos EUA, mas que, até o momento, jamais ganhou uma tradução completa em qualquer língua. De toda a obra, com quase 950 páginas, foram realizadas traduções apenas da parte teórico-geral de Horkheimer, que apesar de importante, não é suficiente para oferecer uma compreensão exata de todo o processo empírico que envolveu o projeto. Como resultado, a obra frequentemente passou a ser considerada pelos comentaristas a partir de um enfoque estritamente teórico.

Até mesmo quando as obras de pesquisas empíricas são traduzidas, causam estranheza justamente por estarem associadas aos principais nomes da Teoria Crítica – que geralmente são reconhecidos por seus projetos teóricos. Perrin e Olick (2011), por exemplo, responsáveis pela tradução inglesa de Gruppenexperiment: ein Studienbericht (Experiência em Grupo: um relatório de estudo)37, apontam que, apesar da obra ser o primeiro grande projeto de pesquisa

empírica após o exílio, ainda assim, a realização da tradução foi observada por muitos como uma surpresa, uma vez que, para o público leitor, os integrantes do grupo (especialmente Adorno, Horkheimer, Marcuse e Löwenthal) não são reconhecidos como cientistas sociais38.

O fato é que a trajetória da pesquisa empírica recebeu nas últimas décadas inúmeras interpretações. Wiggershaus (2002) observa que a passagem do projeto empírico interdisciplinar – vislumbrado por Horkheimer em seu discurso de inaugural de posse do Instituto, em 1931 – para a redação da Dialética do Esclarecimento, não deve ser compreendida como abandono da empiria, mas como uma opção metodológica de Horkheimer, isto é, pela escolha de um “terceiro caminho” entre os extremos da especulação filosófica solitária e o

36 Sobre a tradução parcial para a língua portuguesa, cf. HORKHEIMER, Max. Autoridade e Família. In:

HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2008h, pp. 175-236. Sobre a versão original e completa da obra, cf. HORKHEIMER, Max; FROMM, Erich; MARCUSE, Herbert et. al. Studien über Autorität und Familie: Forschungsberichte aus dem Institut für Sozialforschung. Lüneburg: Dietrich zu Klampen Verlag, 1987, pp. 948.

37 Sobre a versão original, cf. POLLOCK, Friedrich (Ed.). Gruppenexperiment: ein Studienbericht. Prefácio de

Franz Böhm. Frankfurt: Europäische Verlagsanstalt, 1955. Obra presente na coleção Frankfurter Beiträge zur Soziologie, vol. 2, editada por Theodor Adorno e Walter Dirks. Sobre a edição e tradução inglesa, cf. POLLOCK, Friedrich; ADORNO, Theodor W.; et al. Group Experiment and Other Writings: The Frankfurt School on public opinion in postwar Germany. Tradução de Andrew J. Perrin e Jeffrey K. Olick. Cambridge, London: Harvard University Press, 2011.

38 “Para muitos leitores, a própria existência deste volume – a primeira tradução em inglês do Gruppenexperiment,

o primeiro grande projeto da Escola de Frankfurt após o retorno do exílio – pode parecer surpreendente. Os teóricos críticos da Escola de Frankfurt – principalmente Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Leo Löwenthal – não são conhecidos como um grupo empiricamente atuante de cientistas sociais” (PERRIN; OLICK, 2011, p. XV, tradução nossa).

trabalho empírico em grupo39.

No texto The Frankfurt School in Exile, Jay (1985) chama a atenção para o fato de que, na verdade, essa disparidade nada mais é do que a tensão entre duas vertentes que desde sempre coexistiram na Teoria Crítica40: uma primeira, de tendência interdisciplinar e coletiva,

que tinha como objetivo harmonizar as asperezas existentes entre trabalho teórico e empírico; e uma segunda, de caráter mais crítico, voltado para a reflexão das condições filosóficas e socioculturais que antecediam o próprio dado empírico. Neste sentido, para o autor, a mudança de eixo na Teoria Crítica a partir da Dialética do Esclarecimento é o resultado da predominância de uma pesquisa orientada pelo impulso da segunda vertente41.

Todavia, apesar dos esforços de Wiggershaus (2002) e Jay (1985; 1989), nenhum deles apresentou de que modo ocorreu a mediação entre teoria e empiria no Instituto, isto é, entre o núcleo especulativo da Dialética do Esclarecimento e as pesquisas empíricas pós década de 40, como por exemplo, Antisemitism among American Labor (1944-1945), The Authoritarian Personality (1950), Gruppenexperiment (1955) e outros trabalhos. De acordo com Duarte (2001; 2003), o Research Project on Anti-Semitism (Projeto de Pesquisa sobre o Antissemitismo)42 pode, no entanto, oferecer uma pista interessante sobre essa questão da

medição, não só porque retoma o trabalho de pesquisa empírica iniciado ainda na Alemanha – Studien über Autorität und Familie –, como também serviu de ponto de partida para os trabalhos posteriores dos Studies in Prejudice, em especial The Authoritarian Personality. No trecho abaixo de Experiências Científicas nos Estados Unidos, Adorno descreve justamente a

39 “Assim esboçava-se uma concepção que [...] teria, aliás, excluído um verdadeiro trabalho interdisciplinar e a

realização de uma teoria da tendência social global da época baseada em dados, e ela teria significado uma ruptura aberta entre seu próprio trabalho filosófico e o trabalho de um instituto de pesquisas sociais. Ora, essa eventualidade fazia Horkheimer recuar. Chegou-se, pois, na prática, a um terceiro caminho que se apoiava ora na colaboração ocasional de especialistas, ora na transformação provisória dos filósofos em especialistas. Dois temas foram abordados com esse método: a teoria do racket e o problema do anti-semitismo” (WIGGERSHAUS, 2002, p. 348).

40 “Desde o começo a Teoria Crítica já continha uma tensão inerente entre, primeiro, sua insistência no inter-

relacionamento de todos os fenômenos sociais e culturais – uma ênfase holística que se derivava, em grande medida, de suas raízes hegelianas e marxistas – e, segundo, sua compreensão de que uma ênfase exagerada entre unidade e coerência, seja no nível da teoria ou das próprias relações sociais, apenas minaria a possibilidade de uma verdadeira reconciliação no futuro” (JAY, 1985, p. 31, tradução nossa).

41 “Na década seguinte, o equilíbrio entre esses dois impulsos na Teoria Crítica sofreu um giro decisivo na segunda

direção: rumo a uma ênfase maior na não-identidade, no indivíduo, mesmo que interpretado problematicamente, como o refúgio das forças emancipatórias, e na necessidade de preservar as verdades da teoria contra as meias- verdades da prática política” (JAY, 1985, p. 32, tradução nossa).

42 O Projeto de Pesquisa sobre o Antissemitismo foi oficialmente lançado em 1941, na publicação nº 9 da revista

Studies in Philosophy and Social Science. Trata-se da mesma revista Zeitschrift für Sozialforschung (Revista de Pesquisas Sociais) criada pelo Instituto na Alemanha, em 1932, que, a partir da edição nº 8 (1939-1940) – em decorrência do exílio nos Estados Unidos –, também passou a ser editada como Studies in Philosophy and Social Science (Estudos em Filosofia e Ciências Sociais).

importância do projeto sobre o Antissemitismo para as atividades do Instituto e para outros estudos posteriores:

Ainda no período em que estivemos em Nova York, Horkheimer havia empreendido, em vista dos horríveis acontecimentos ocorridos na Europa, investigações sobre o problema do anti-semitismo. Havíamos traçado e publicado em comum com outros membros do nosso Instituto o programa de um projeto de pesquisa, ao qual recorreríamos depois com frequência. Continha, entre outras coisas, uma tipologia de anti-semitas que, amplamente modificada, reapareceria nos trabalhos posteriores (ADORNO, 2005a, p. 159).

Em publicação de época, mais especificamente na introdução do Research Project on Anti-Semitism, de 1941, Horkheimer ressalta a centralidade da temática do antissemitismo para pesquisas passadas e futuras: “Como publicado aqui, o projeto contém não apenas problemas de pesquisa, mas concepções teóricas que foram, em parte, realizadas através de pesquisas anteriores e que, em certa medida, deveriam ser comprovadas através de outras investigações” (HORKHEIMER, 1941, p. 121, tradução nossa). De fato, se há algum tema mediador que aproxima o texto da Dialética do Esclarecimento – obra emblemática que, para muitos autores, significou a despedida da pesquisa empírica para a Teoria Crítica – com os projetos de pesquisas futuros do Instituto – como por exemplo, The Authoritarian Personality, publicado em 1950 – , sem dúvida alguma, ele pode ser encontrado na questão do antissemitismo.

A pertinência dessa tese decorre do fato de que, tanto a Dialética do Esclarecimento como para The Authoritarian Personality, a presença do antissemitismo – enquanto tema de pesquisa estruturante – apresenta-se como algo incontestável. Na seção “Elementos do Antissemitismo: limites do esclarecimento”, apresentada na Dialética do Esclarecimento, o tema aparece como componente fundamental no processo do esclarecimento enquanto mistificação das massas. Embora, para os autores, a “psicologia antissemita” não exista segundo os moldes do Terceiro Reich, ela “foi, em grande parte, substituída por um simples ‘sim’ dado ao ticket fascista [adesão acrítica de estereótipos sociais], ao inventário de slogans da grande indústria militante. [...] Quando as massas aceitam o ticket reacionário contendo o elemento antissemita, elas obedecem a mecanismos sociais” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 165). Em diversos trechos de The Authoritarian Personality, Adorno et al. também expõem abertamente essa ideia do antissemitismo como tema estruturante para as pesquisas relacionadas ao preconceito e ao caráter autoritário: “A presente investigação sobre a natureza do indivíduo potencialmente fascista teve o antissemitismo como foco de atenção” (ADORNO; et al., 1969, p. 2, tradução nossa). Ou ainda: “Uma das formas de ideologia social mais

claramente antidemocrática é o preconceito; e nesse contexto o antissemitismo constitui o ponto de partida frutífero para um estudo psicossocial” (ADORNO; et al., 1969, p. 57, tradução nossa).

Do ponto de vista geral, fica evidente uma aproximação entre a Dialética do Esclarecimento e The Authoritarian Personality por meio da discussão do antissemitismo43. No

entanto, do ponto de vista específico, que conceitos poderiam mediar a discussão desses dois projetos de pesquisa – considerados por muitos como obras aparentemente inconciliáveis? Levando em consideração o diferenciado contexto metodológico das obras, é possível traçar ao menos um paralelo a partir dos conceitos de “Eu” e “projeção” (DUARTE, 2001).

Na Dialética do Esclarecimento, mais especificamente em “Elementos do Antissemitismo”, esses conceitos estão relacionados à imaturidade psíquica do indivíduo que não consegue estabelecer conscientemente um equilíbrio adequado entre as proibições do Superego e os impulsos do Id. Desta maneira, para poder se livrar desta agressividade interna, o Eu acaba projetando no mundo exterior (pessoas e situações) tais repressões por meio de reações violentas, seja pela identificação imaginária – vilão –, seja como pretexto de legítima defesa – autoconservação44. Por isso, trata-se de uma “falsa projeção” (ADORNO;

HORKHEIMER, 2006).

O conceito de falsa projeção implica, logicamente, na existência de uma projeção “normal”. De fato, para Adorno e Horkheimer (2006, p. 155), “a projeção está automatizada nos homens, assim como as outras funções de ataque e proteção, que se tornaram reflexo”. A partir de uma concepção antropológica kantiana, os autores afirmam, portanto, a necessidade de uma projeção espontânea como instrumento de orientação prática e adaptativa no mundo. No entanto, quando se trata da sociedade humana, “o indivíduo precisa de um controle crescente da projeção; ele tem que aprender ao mesmo tempo a aprimorá-la e inibi-la” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 155). Logo, a projeção falsa ou patológica, que pertence à essência do antissemitismo, caracterizaria justamente a perda da reflexão como componente de mediação consciente entre os impulsos internos e os estímulos externos:

43 Segundo Duarte (2001, p. 42), “pode-se dizer que, [O Projeto sobre o Antissemitismo] na medida em que era

um trabalho mais teórico (apenas culminava numa parte experimental), sem ser propriamente filosófico e que foi idealizado por Adorno e Horkheimer, portanto, sem uma heterogeneidade ideológica mais pronunciada, o ‘projeto’ funcionou como um ‘termo médio’ entre a verve mais especulativa da Dialética do Esclarecimento e as exigências mais operacionais da Personalidade Autoritária”.

44 “A projeção patológica é um recurso desesperado do ego que, segundo Freud, proporciona uma proteção

infinitamente mais fraca contra os estímulos internos do que contra os estímulos externos” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 159).

O antissemitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o traço caracterial patológico em que esta se sendimenta. Só a mimese se torna semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela. Se o exterior se torna para a primeira [mimese] o modelo ao qual o interior se ajusta, o estranho tornando-se o familiar, a segunda [falsa projeção] transpõe o interior prestes a saltar para o exterior e caracteriza o mais familiar como algo de hostil. Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. Para o paranoico usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença. No fascismo, esse comportamento é adotado pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente; o sistema alucinatório torna- se a norma racional no mundo, e o desvio a neurose (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 154).

Neste sentido, para Adorno e Horkheimer (2206, p. 156), “o patológico do antissemitismo não é o comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o caracteriza”. Com isso, aquilo que se apresentava como fundamental para a adaptação prática do eu no mundo – por conta da perda da consciência de si e de tudo aquilo que compõe a sua subjetividade –, acaba resultando numa experiência danificada e agressiva. Ou seja, a agressão projetiva ocorre justamente porque, sujeitos alienados de sua própria subjetividade, encontram em padrões estereotipados preestabelecidos pelos movimentos de massa (pensamento em bloco do ticket), uma maneira de adaptação ao mundo. “O comportamento do antissemita é desencadeado em situações em que os indivíduos obcecados e privados de sua subjetividade se veem soltos como sujeitos” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 141).

Em The Authoritarian Personality os conceitos de “Eu” e “projeção” também estão presentes. De modo geral, os autores concebem que, na medida em que o Eu toma consciência de suas pulsões irracionais decorrentes da natureza, ele pode administrar racionalmente tais debilidades no âmbito da personalidade45. No entanto, o contrário também procede, ou seja, na

medida em que o ‘Eu’ fracassa na síntese entre impulsos do Id e proibições do Superego, ele tende a projetar tal insatisfação exteriormente (grupos, pessoas ou situações). A dependência da exteriorização ou do deslocamento46 como condição sine qua non para a decisão moral, cria

45 “Pode-se dizer que uma personalidade madura (se pudermos, no momento, usar este termo sem defini-lo) estará

mais próxima de alcançar um sistema de pensamento racional do que um imaturo. [...] É o Eu que se torna consciente e assume a responsabilidade pelas forças não-racionais que operam dentro da personalidade. Esta é a base para nossa crença: de que o objeto do conhecimento sobre quais são os determinantes psicológicos da ideologia é o fato de que os homens podem se tornar mais racionais” (ADORNO; et al., 1969, p. 11, tradução nossa).

46 Na teoria freudiana, o deslocamento é um mecanismo de defesa que, como o próprio nome já diz, faz com que

o indivíduo desloque as ações de um alvo desejado para um alvo substituto – quando, por alguma razão, o primeiro alvo não lhe é permitido ou disponível. “[...] De acordo com a atual teoria do deslocamento, o autoritário se vê obrigado, por uma necessidade interior, a voltar a sua agressão contra os exogrupos [grupo não pertencente]. Ele necessita fazer isso porque é psicologicamente incapaz de atacar as autoridades do endogrupo [grupo pertencente],

no indivíduo uma couraça de autoproteção que o leva a encarar o exogrupo – o grupo do outro – como um rival a ser batido:

Há motivos para acreditar que o fracasso de internalização do Superego é devido a uma fraqueza do Eu e sua incapacidade de realizar uma síntese necessária, ou seja, integrar o Superego consigo mesmo. Seja ou não isso, a fraqueza do Eu parece ser um concomitante do convencionalismo e do autoritarismo. A fraqueza do Eu é expressa na incapacidade de construir um conjunto consistente e duradouro de valores morais dentro da personalidade; e, aparentemente, é esse estado de coisas que condiciona o indivíduo a procurar um agente organizador e coordenador fora de si mesmo. Quando se depende de tais agentes exteriores para tomar decisões morais, pode-se então dizer que a consciência está externalizada (ADORNO; et al., 1969, p. 234, tradução nossa).

A projeção é entendida, portanto, em The Authoritarian Personality, justamente como o evento psíquico comum que liga a ‘debilidade Eu’ e a ‘exteriorização da agressividade’ por parte do sujeito fascista. Esse evento, isto é, a projeção, não somente desloca os impulsos do Id, deixando-os fora do alcance da função autocrítica do Eu, como também demonstra a própria alienação do Eu com relação à consciência destas mesmas pulsões internas condenáveis, que, por conta do deslocamento de alvo – do eu para o outro –, são abonadas em função da atitude agressiva.

O mecanismo de projeção foi mencionado em conexão com a agressão autoritária: os impulsos reprimidos do caráter autoritário tendem a ser projetados para outras pessoas, as quais são culpadas de imediato. A projeção é, portanto, um dispositivo para manter as pulsões do Id alheias ao Eu, e pode ser considerada como um sinal da incapacidade do Eu em desempenhar sua função (ADORNO; et al., 1969, p. 240, tradução nossa).

Do ponto de vista metodológico, em Research Project on Anti-Semitism, Horkheimer, também apresenta considerações valiosas sobre o tratamento metodológico da pesquisa empírica neste período do Instituto. Mais do que fazer uso positivista dos fatos ou achar que a simples descrição da pesquisa empírica com vocabulário filosófico resolveria o abismo entre teoria e prática, o interesse de Horkheimer é chamar a atenção para o pressuposto de que a formação dos conceitos não decorre unicamente da coleta empírica, mas de um processo