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Parte I-Problemática e enquadramento

Capítulo 2 Contributos da Sociologia e da História

3.2. Os modelos das relações intergrupais

3.2.2. A Escola de Genève

A abordagem que a Escola de Genève faz da identidade social articula diferentes níveis de análise, para além do nível estritamente psicológico considerado pelos seguidores da Escola de Bristol. Esta corrente de investigação critica a Escola de Bristol pelo facto de, da ligação entre os processos de categorização social, identidade social e comparação social, não ter resultado uma verdadeira articulação entre níveis de análise (Doise, 1982, 1984). E não resultou, uma vez que houve décalage entre um modelo teórico que integrava dimensões explicativas sociológicas e psicológicas numa rede de causalidade complexa e o seu suporte empírico em que não se procedeu a tal articulação (Doise, 1987).

Foi uma variável de ordem aparentemente psicológica: a identidade social que, intimamente dependente de um dado paradigma experimental, passou a assumir uma função causal determinante.

Esta linha de pensamento considera que apenas num quadro em que os diferentes níveis de análise sejam integrados poderá a identidade ser entendida enquanto um processo de significância ou de construção social da realidade das relações intergrupais, processo esse que se exprime em modalidades mais individualizantes ou mais homogeneizantes, consoante as posições objectivas dos grupos (Amâncio, 1994: 147).

Modelo da diferenciação categorial de Doise

Uma das primeiras contribuições da Escola de Genève foi o modelo da diferenciação categorial formulado por Doise (1976, 1984) no início dos anos setenta.

Neste modelo teórico foram integrados contributos teóricos e metodológicos diversos, nomeadamente, o paradigma dos grupos mínimos da Escola de Bristol (Amâncio, 1994: 156-157).

Doise perspectivou a categorização como um processo psicológico de estruturação da realidade social, sujeito à influência de factores contextuais e estruturais (Deschamps, 1984).

O objecto da análise são as representações ou as formas da sua actualização nos diferentes contextos de diferenciação intergrupal, representações que, para o autor, constituem um dos três níveis interrelacionados das relações intergrupais, sendo os dois outros níveis o nível do comportamento e o da avaliação. Alterações num dos níveis teriam, necessariamente, consequências nos outros dois.

O modelo pressupõe que “quando dois grupos se distinguem num critério, este estará necessariamente associado, pelo menos subjectivamente, a outros critérios” (Doise, 1976, 1984).

Numa experiência conduzida em 1969 (Doise, 1976, 1984), sujeitos Alemães e Franceses deveriam tomar decisões cooperativas intra e intergrupais. Cada uma das três condições experimentais correspondia a uma modalidade de diferenciação objectiva entre os grupos. Assim, na condição grupos heterogéneos, interagiam entre si indivíduos de nacionalidades diferentes (Alemães num grupo e Franceses no outro). Na condição grupos homogéneos, interagiam indivíduos da mesma nacionalidade e, na condição grupos mistos, cada grupo incluía indivíduos das duas nacionalidades.

Verificou-se que quando o outro grupo era constituído por indivíduos de nacionalidade diferente, as estratégias cooperativas eram mais frequentes no interior do grupo do que em relação ao exterior. Assim sendo, o tratamento diferencial dos membros do outro grupo não depende de uma mera categorização, mas do facto de esta estar associada a uma dimensão significativa para os sujeitos, dimensão que era a nacionalidade.

Esta diferenciação subjectiva que, sempre que as percepções, avaliações e comparações intergrupais favorecem o grupo de pertença em detrimento do outro, se traduz em discriminação intergrupal, está associada a diversas formas de divisão dos indivíduos em grupos (Doise, 1976, 1984). Tais divisões podem ser baseadas numa divisão concreta, como nas situações de conflito de interesses e competição (Sherif et al., 1961, citados por Amâncio, 1994: 157), numa simples divisão dos indivíduos em grupos para o desempenho de uma tarefa (Ferguson & Kelley, 1964, citados por Amâncio, 1994: 157), na antecipação de uma competição (Rabbie & Wilkens, 1971, citados por Amâncio, 1994: 157) ou na antecipação de uma categorização (Tajfel et al., 1971).

Em todos estes casos, os indivíduos “constroem” uma representação ou manifestam comportamentos que traduzem uma estrutura cognitiva “reprodutora” do contexto em que estão inseridos e as representações constituem justificações do próprio comportamento. Tal é demonstrado pela evolução paralela dos estereótipos mútuos e dos comportamentos intergrupais ao longo das interacções baseadas na competição, na cooperação e nos objectivos supra-ordenados dos estudos de Sherif.

O processo de diferenciação categorial é definido como:

[...] um processo que esclarece o modo como, em variadas situações, uma realidade social constituída por grupos se constrói e afecta os comportamentos de indivíduos que, por seu turno, corroboram esta realidade nas suas interacções e é neste sentido que o processo de diferenciação categorial constitui um “processo psicossociológico. (Doise,

1976, 1984)

O processo de diferenciação categorial não é nem universal na sua extensão, nem simétrico na sua expressão. Vejamos, por exemplo, os estudos sobre as categorizações cruzadas, inspirados nas abordagens antropológicas do etnocentrismo, analisadas por LeVine e Campbell (1972). Esses estudos demonstraram que a sobreposição de duas categorias pode anular o efeito diferenciador de uma delas. Tal não se verifica, no entanto, relativamente a

categorias muito significantes e, logo, estruturantes da representação do contexto, como é, por exemplo, o caso da nacionalidade. Assim, os processos de diferenciação perceptiva e avaliativa são mediados pelas pertenças dos indivíduos a categorias sociais reais.

O efeito desta dimensão “sociológica” (Doise, 1976, 1984) na identificação com um grupo de pertença e na discriminação intergrupal foi evidente numa experiência de Doise e Sinclair de 1973, descrita por Doise (1976, 1984). Nessa experiência, os participantes eram alunos de escolas técnicas e alunos de liceu e como medida de diferenciação foram utilizados conteúdos referentes a características estereotipadas, hábitos e costumes culturais dos dois grupos, conteúdos esses previamente obtidos através de entrevistas.

Verificou-se que os alunos do liceu discriminavam em situações de acentuada categorização intergrupal, isto é, quando lhes era dito no início da experiência que deveriam descrever o seu grupo e o outro e quando dois membros de cada grupo se encontravam face a face. Os participantes da escola técnica, por seu lado, apenas não favoreciam o outro grupo na condição em que no início da experiência lhes era dito que não teriam que descrever o outro grupo, sendo a dispersão de respostas maior neste grupo do que no dos estudantes do liceu.

Assim, a partilha de um universo simbólico e de uma realidade social que estabelecem uma estratificação entre os dois ramos de ensino a que os participantes pertencem, orientou o favoritismo e a discriminação em sentidos opostos, consonantes com o estatuto dos grupos.

O contributo de Deschamps

Outras investigações da escola de Genève questionaram a hipótese de Turner, segundo a qual a discriminação intergrupal só existe como meio de atingir uma distintividade positiva, hipótese essa que serviu de base à explicação psicológica da discriminação intergrupal (Tajfel & Turner, 1979).

Assim, os estudos de Deschamps (1977, citado por Amâncio, 1994: 159) sobre as atribuições intra e intergrupais, de Brown e Deschamps (1980/81) e de Deschamps (1983), baseados no paradigma experimental de Turner (1975, citado por Amâncio, 1994: 159), não confirmaram a preponderância do favoritismo pelo próprio sobre o favoritismo pelo grupo. Apontaram, antes, no sentido de uma covariação da diferenciação intergrupal e interindividual (Brown & Deschamps, 1980/81).

Deschamps (1982: 251) considera que a Escola de Bristol tem uma visão “homeostática” dos processos de diferenciação, de acordo com a qual o favoritismo pelo próprio substituiria o favoritismo pelo grupo e vice-versa, permitindo, qualquer dos dois tipos de favoritismo, obter uma distintividade positiva.

Para Deschamps, o comportamento intergrupal seria simultaneamente orientado pelos valores da competição e da solidariedade, os quais corresponderiam a duas modalidades de identificação com o grupo, respectivamente, individuação e fusão. Estes estariam, por sua vez, ligados a duas modalidades de comportamento em relação ao outro grupo, o de diferenciação intergrupal e o de indiferenciação intergrupal, respectivamente.

Desta ideia decorre a hipótese da covariação nos comportamentos intra e intergrupais de diferenciação e de indiferenciação (Brown & Deschamps, 1980/81).

As referidas modalidades de identificação com o grupo: individuação e fusão, foram operacionalizadas por Deschamps e Lorenzi-Cioldi (1981). Nessa experiência, numa das condições era dito aos participantes que iam receber individualmente os pontos das matrizes que lhes fossem atribuídos e numa outra condição, era-lhes dito que iriam receber a média dos pontos atribuídos ao seu grupo. Verificou-se que na primeira condição, na qual a distintividade individual era evocada, também se verificava uma maior diferenciação intra e interindividual, do que na segunda condição, na qual se evocava a fusão do indivíduo ao grupo.

Os estudos de Codol (1975) em França sobre o efeito PIP (Primus Inter

Pares), apesar de apenas analisarem os comportamentos de diferenciação em

situações de comparação interindividual, demonstraram que os participantes resolvem a tensão entre a norma, contextual, do conformismo e a norma, social, da originalidade, afirmando a sua distintividade através da própria semelhança.

Segundo Codol (1982), este seria um princípio orientador da identidade pessoal, precisamente porque os indivíduos estão sujeitos à pressão dos conteúdos avaliativos e normativos inscritos nos contextos ou nas pertenças categoriais. Sendo assim, a categorização não implica necessariamente uma desindividuação dos membros do grupo, por oposição à individuação descategorizada, podendo existir categorias evocativas da individualidade e, portanto, geradoras de diferenciação dentro e fora do grupo. O comportamento do indivíduo no seio do grupo e em relação ao grupo/s relevante/s não é universalmente orientado por uma motivação, mas sim pela referência a valores e normas colectivas que a categorização intergrupal torna significativas ou a normas contextuais que possibilitam a procura da singularidade, quer através da diferença quer através da semelhança (Codol, 1984). Assim, Codol chama a atenção para o facto da diferenciação ser contextual, isto é, dependente das normas do contexto.

Uma das referências colectivas são as ideologias relativas à estratificação dos grupos sociais numa escala de poder. Deschamps (1982) designa essa escala de poder de “universo simbólico comum de valores”, o qual serve de referência ao posicionamento relativo de todos os grupos e, portanto, à sua interdependência comparativa.

Para Deschamps, os grupos dominantes seriam aqueles cuja identidade social os define em termos de “sujeitos” e os grupos dominados os definidos em termos de “objectos”.

Estas definições sociais teriam implicações a nível do auto-conceito de uns e de outros. Assim, enquanto que os primeiros se perspectivariam como seres “singulares”, “livres” e “autónomos”, os segundos como “elementos indiferenciados numa colecção de partículas impessoais” (Deschamps, 1982).

Esta variável estrutural impõe alguns limites à generalização do efeito PIP. Deschamps (1979) considera que as comparações interindividuais feitas no âmbito dos estudos de Codol, ocorrem entre “semelhantes”. Uma vez que a norma da singularidade se aplica mais aos membros dos grupos dominantes do que aos dos dominados, estes terão uma maior probabilidade de se encontrarem em contextos que envolvam um conflito normativo.

Em 1982, o autor considera que a identidade social de um grupo dominante corresponde a uma percepção individualizada e distinta dos seus membros. Esta ideia implica que numa comparação social pela distintividade psicológica, os membros tanto se diferenciam em termos individuais como em termos intergrupais.

A identidade social de um grupo dominado caracterizar-se-ia por uma percepção indistinta e fusional que se traduziria numa tendência para a indiferenciação.

O significado avaliativo e emocional da pertença grupal a que se refere Tajfel (1972) e as crenças na legitimidade/ilegitimidade da sua condição social e nas possibilidades ou limitações da sua mudança (Tajfel, 1978; Tajfel, 1981/83) são factores que podem adquirir maior peso no caso dos grupos dominados do que no caso dos dominantes. É neste quadro que se percebe que os grupos dominados exagerem a inequidade da distância com o grupo dominante, de forma a salientar a ilegitimidade da situação (van Knippenberg & van Oers, 1984, citados por Amâncio, 1988: 310).

Os estudos da escola de Genève contribuíram para situar a diferenciação intergrupal numa realidade social de relações de dominação simbólica entre grupos (Deschamps, 1982) e salientaram os aspectos de construção social da realidade associados a uma categorização intergrupal (Doise, 1976, 1984).

Doise considera que os conteúdos simbólicos são o ponto de encontro entre a sua perspectiva e a de Deschamps. É nesses conteúdos que se baseia a relação de poder entre os grupos e são eles que constituem a “matéria-prima” das

representações sociais das relações intergrupais e das próprias formas de concepção de si (Deschamps, 1987; Doise, 1988).

Qualquer uma das abordagens salienta a importância das normas do contexto sobre o comportamento dos indivíduos.

Neste quadro podem ainda integrar-se os processos de procura de singularidade (Codol, 1984) e de criação de novas dimensões de comparação, afirmativas da diferença e da especificidade do grupo (Lemaine et al., 1978).

As funções sociais dos estereótipos, consideradas quer no modelo de Tajfel (1981), quer no modelo da diferenciação categorial de Doise, têm que ser perspectivadas no quadro do comportamento intergrupal. O conteúdo dos estereótipos constitui o suporte simbólico da própria relação de dominação. Praticamente todos os estudos que operacionalizam a diferenciação social utilizando as matrizes de Tajfel, têm negligenciado o conteúdo das representações intergrupais ou tem-no utilizado como instrumento de medida independente das matrizes, ainda que incluídos num mesmo estudo (Deschamps & Personnaz, 1978, citados por Amâncio, 1988: 311).

Na análise dos modelos de relações intergrupais muitos outros poderiam ser citados. Apenas uma breve referência aos construtivistas sociais como Wetherell (1996: 224) segundo os quais as identidades individuais e grupais emergem do contexto social, desempenhando o discurso e a linguagem um papel central no processo.