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Parte I-Problemática e enquadramento

Capítulo 2 Contributos da Sociologia e da História

2.1. O mundo em transformação

Nos últimos anos do século XX, que marcaram também o final de um milénio, o ritmo de transformações na geografia mundial foi verdadeiramente alucinante. Vejamos apenas alguns dos acontecimentos que tiveram lugar na última década do século.44 A nomeação de Gorbachev para presidente Soviético em Maio de 1989 e a sua política de aproximação progressiva do Ocidente esteve na base de um desenrolar de fenómenos em cadeia. Em Novembro desse mesmo ano e 28 anos depois de ter sido edificado, deu-se a queda do muro de Berlim. Em 1990, na Jugoslávia, o monopólio do poder comunista viu o seu fim e a Aliança Atlântica acabou com a guerra fria. A Alemanha Ocidental e de Leste foram reunificadas. Em 1991, o governo comunista da Albânia demitiu-se, o Pacto de Varsóvia dissolveu a aliança militar e foi, posteriormente, dissolvido. Em Agosto deu-se a independência da Letónia, da Estónia e da Lituânia e, desta forma, processou-se um redesenhar de espaços. Em Dezembro, teve lugar o fim da União Soviética e a constituição da Comunidade dos Estados Independentes (CIS) que veio a integrar todas as anteriores repúblicas da antiga União Soviética45 excepto os novos estados bálticos. O parlamento da África do Sul condenou o apartheid, sendo, no entanto, longo o caminho a percorrer para alcançar a igualdade real entre brancos e negros.

Em 1992, a federação jugoslava desintegrou-se e Bush e Yeltsin proclamaram o fim formal da Guerra Fria, o parlamento Checoslovaco aprovou a separação em duas nações. Surgiram conflitos na Croácia e na Bósnia- Herzegovina, dos quais resultaria uma guerra sangrenta e vergonhosa travada no palco da ex-Jugoslávia, uma das mais cruéis guerras civis da Europa moderna. De resto, há já alguns séculos que a região entre o Danúbio e o mar Adriático é palco das ascensões e quedas de numerosos reinos, impérios, dinastias, migrações e de um processo caleidoscópio de unificações, desintegrações e reunificações.

44 Dados recolhidos em http://www//infoplease.com.

Em 1993, de realçar a criação da União Europeia definida pelo Tratado de Maastricht. O caminho da integração na Europa Ocidental tinha-se iniciado com a assinatura do Acto Único em 1986, que aumentara os poderes do Parlamento Europeu e criara as condições para a implementação de um mercado único em 1992. O Tratado de Maastrich negociado em Dezembro de 1991 e ratificado por todos os estados membros no final de 1993, permitiu a criação de uma moeda única, de um Banco Central e de uma cidadania comunitária.

Em 1994, Sarajevo foi atacado pelos Sérvios, deu-se no Ruanda, o genocídio da etnia Tutsi pela etnia Hutu, rivais de longa data e a Tchéchenia foi alvo dos ataques dos Russos.

Em 1995, destaque para a continuação do massacre no Ruanda e para a guerra na Bósnia e na Croácia e em 1996 para a assinatura do tratado de paz na Tchéchénia. Houve o acordo quanto ao limite de armamento entre os líderes nos Balcãs, violência étnica nos campos de refugiados do Zaire, milhares de refugiados do Ruanda e do Burundi abandonaram os campos e milhares de Hutus regressaram ao Ruanda.

Em 1997, o governo de Israel aprovou a instalação dos Judeus em Jerusalém Oriental, um passo importante no processo de paz do Médio Oriente e a União Europeia planeou admitir mais seis países.

Em 1998, os Sérvios atacaram os albaneses do Kosovo e os Europeus chegaram a acordo na adopção de uma moeda única: o Euro.

Em 1999, a NATO lançou bombardeamentos aéreos na Sérvia para acabar com os ataques contra a etnia Albanesa no Kosovo, acabando os Sérvios por assinar um acordo depois de onze semanas de bombardeamentos e estabeleceu-se o acordo de paz entre o primeiro ministro israelita Ehud Barak e Yasir Arafat.

Todos estes acontecimentos, entre muitos outros que foram tendo lugar um pouco por todo o mundo, revestiram-se de importantes consequências no redesenhar de novos espaços, na perda de identidades e na aquisição de outras e teve lugar o que designamos por um processo de redefinição de identidades. A desintegração das ordens sociais nacionais e internacionais ofereceu,

simultaneamente, esperanças e medos de liberdade, proporcionou espaço para a “criatividade social”, espaço no qual indivíduos e grupos passaram a fazer parte de um processo de redefinição e de reavaliação de normas sociais, de sistemas de crenças e de estruturas de poder. O desaparecimento da Checoslováquia, por exemplo, esteve na base do aparecimento da República Checa e da Eslovénia. Neste caso, categorias e identidades que eram usadas de forma rotineira foram substituídas por outras com significados muito diferentes. O significado das categorias Eslováquio ou Checo não é o mesmo, dado que o processo de formação da nação requer que esses conceitos sejam redefinidos um em oposição ao outro (e ainda em oposição à velha ordem Checoslovaca). As mudanças na auto-definição não ocorrem apenas depois do evento de separação. Pelo contrário, as alterações na forma como nos construímos a nós próprios e as nossas relações com os outros constituem uma etapa fundamental no próprio processo de mudança e, sem tais mudanças a nível das representações, a acção que transforma o mundo não prosseguiria (Hopkins & Reicher, 1996: 69-70).

Também os cidadãos da Europa Ocidental se encontram em processo de redefinição de si mesmos e das suas relações com os outros. Aqueles com quem os Ocidentais agora se comparam e contrastam são necessariamente outros e a forma como se auto-perpectivam pode, portanto, ser alterada (Hopkins & Reicher, 1996: 70). Assim, Hopkins e Reicher (1996: 70) referem que Harvie (1994) salientou que a ideia da “Europa das regiões” é uma construção relativamente recente que oferece uma visão muito diferente da natureza das categorias que constituem a Europa e das relações de poder entre elas.

Referimo-nos até agora às principais mudanças ocorridas neste final de século e às suas implicações a nível da redefinição de identidades. Em articulação com esse processo, desenvolve-se um processo de globalização, num momento em que mais do que nunca se fala em cultura planetária e em aldeia global e em que as migrações assumem uma enorme relevância e especificidade. Relevância e especificidade se atendermos a que os migrantes de hoje, tal como Gungwu (1992) observou (Cohen, 1995: 11), são muito diferentes dos migrantes do

passado, genericamente trabalhadores não qualificados que procuravam melhores condições de vida ou simplesmente de sobrevivência, em países mais ricos. Os migrantes de hoje somos potencialmente todos nós, habitantes desta imensa aldeia global: os turistas, os empresários, os comerciantes, os profissionais liberais, os estudantes, ... .

... new classes of people educated in a whole range of modern skills are now prepared to migrate or remigrate and respond to the pull of centres of power and wealth and the new opportunities in trade and industry. [...] these people are articulate, politically sensitive and choose their new homes carefully. They study the migrant states, especially their laws on the rights of immigrants and the economic conditions for newcomers. ... Furthermore many are masters not only in the handling of official and bureaucratic connection but also in the art of informal linkages. (Gungwu, 1992)

A globalização não resulta, apenas, da maior movimentação das pessoas decorrente da redução do espaço e do tempo, mas da globalização da informação à escala planetária. Produz-se uma cultura mediática relativamente homogeneizada, que permite que os indivíduos ganhem consciência do grau em que problemas e acontecimentos locais têm significado e repercussões mundiais, processo no qual a internet desempenha um papel central:

Com efeito, das anteriores condições ego e etnocêntricas, o cidadão evolui hoje para uma situação de quase “interveniente” em acontecimentos sociais que o ultrapassam, pela possibilidade que os media lhe oferecem de ser deles testemunha. (Rocha-

Trindade, 1993b: 869)

A globalização é também patente na crescente mobilidade do capital, a qual, por outro lado, está na sua própria origem:

Actualmente, são trocados mais de 1.5 biliões de dólares por dia nos mercados monetários mundiais e são transaccionados cerca de um quinto dos bens e serviços produzidos por ano. (O.N.U.,1999: 1)

Todas estas transformações podem não ser muito diferentes das ocorridas no passado, no entanto, a velocidade a que são transmitidas via media torna-as muito diferentes e não é, decerto, fruto do acaso que o Relatório de

Desenvolvimento Humano da O.N.U. de 1999 seja precisamente dedicado à

“crescente interdependência das pessoas no mundo em globalização de hoje.“ (O.N.U., 1999: 1).

Este duplo processo de globalização das tecnologias, dos instrumentos, das mensagens, dos capitais, do comércio, da cultura e da governação e de retorno à comunidade, às origens, aos nacionalismos, a regionalismos, confere especificidade ao momento em que vivemos e torna-o mais complexo.

Silva (1994: 32) salienta que a tensão entre a globalização e o particularismo é característica da modernidade, referindo-se à “dialéctica entre globalização e localismos”ou, ainda, à “tensão entre dinâmicas de indiferenciação e dinâmicas de identificação diferenciadora.” Para Bourdieu (1980: 69):

Le régionalisme (ou le nationalisme) n’est qu’un cas particulier des luttes proprement symboliques dans lesquelles les agents sont engagés soit individuellement et à l’état dispersé, soit collectivement et à l´état organisé, et qui ont pour enjeu la conservation ou la transformation des rapports de forces symboliques et des profits corrélatifs, tant économiques que symboliques […].

É neste cenário que a questão das nações, do nacionalismo e da identidade nacional assume uma notória centralidade.