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Parte I-Problemática e enquadramento

Capítulo 2 Contributos da Sociologia e da História

2.3. A relação nós/outros

É extremamente complexo datar o nascimento da inquietação face ao outro. O casamento misto e a relação entre indivíduos de diferentes origens nele envolvida é condenada na própria Bíblia. No Livro de Esdras (Esdras.10, 2-3) é dito:

Pecámos contra o nosso Deus, tomando por esposas, as mulheres estrangeiras, [...] Entretanto, resta ainda uma esperança para Israel. Façamos, agora, uma aliança com o nosso Deus e mandemos embora todas essas mulheres e os seus filhos [...], ... .

Ladmiral e Lipianky (1989: 135) salientaram que a tomada de consciência da recusa do outro é quase tão antiga quanto a recusa em si. Assim, de acordo com os autores, já Montaigne comentava:

Chacun appelle barbarie ce qui n’est pas de son usage.

Ainda segundo os autores (1989: 135), no início do século XIX, Gérando escrevia:

Rien n’est plus ordinaire que de juger les moeurs des sauvages par des analogies tirées de nos propres moeurs, qui ont cependant si peu de rapport avec elles.

No século XVIII, Montesquieu55 interrogara-se incrédulo:

Comment peut-on être Persan? (Ladmiral & Lipianky, 1989: 136).

55 Montesquieu-(1689-1755)-Escritor francês, autor de Cartas persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência (1734) e do Espírito das leis

(1748). Esta última obra inspirou os redatores da Constituição de 1791 e tornou-se a fonte das doutrinas constitucionais liberais, que repousam na separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário.

O tema do "perigo amarelo" foi uma expressão clássica do racismo (Touraine, 1995: 28). As noções de alteridade e de diferença foram utilizadas por teóricos literários e por Antropólogos culturais, para demonstrar como as visões eurocêntricas do mundo se tornaram dominantes.

Revelando-se a inquietação tão constante ao longo da História, interrogamo-nos, necessariamente, sobre o que está na sua base. O reconhecimento de um outro implica, obviamente, o reconhecimento de uma diferença e, longe de ser neutro, causa inquietação, receio, uma "inquietante estranheza" (Memmi, 1993: 28), sendo a reacção naturalmente defensiva. Memmi (1993: 28) apelida-a de “alérgica” (recordando que alergia significa, precisamente, reacção ao outro, do grego allas-outro e ergon-reacção).

Há, então, que colocar o outro de quarentena, que fugir de uma possível relação, mediante a qual se poderia incorrer no perigo de se tornar diferente.

O grau em que se perspectiva o outro como potencialmente perigoso é variável.56 Neste aspecto, o conceito de limiar de tolerância de Memmi (1993: 78) revela-se particularmente adequado. O autor refere que é como se a questão residisse na maior ou menor concentração de um dado produto tóxico no organismo colectivo. Se nos limitássemos a ver o outro, talvez pudéssemos tolerá- lo; o pior é quando esse outro se torna muito visível, quando as barreiras protectoras desaparecem. Não existe qualquer problema quando a diferença passa ao lado, quando, por exemplo, um zulo está do outro lado a viver e a divertir-se como um zulo. De facto, o problema só surge quando os zulos começam a sair com as nossas filhas e a viver como nós.

O que é mais curioso é que a diferença percebida pode nem sequer existir, pode apenas ser criada ou, se preferirmos, meramente inventada. As qualidades mais óbvias do outro são alvo de reinterpretação: “os judeus são demasiado inteligentes, o que os torna temíveis” (Memmi, 1993: 42); “os negros são dotados para o ritmo, porque não têm aptidão para actividades mais nobres” (Memmi,

56 O autor introduz o conceito a propósito da reacção dos habitantes de uma cidade da região de

1993: 42); “em todo o alemão há um prussiano adormecido e, mais recentemente, um industrial obstinado em governar a Europa”, “Em todo o inglês há um adversário desleal que nunca renunciou à ambição de dominar os mares” ou, ainda, “Os italianos são desordeiros, cobardes e ladrões”.

Ao tecer considerações deste tipo procedemos a uma generalização de características, segundo a qual todos os membros do grupo são perspectivados como partilhando essas mesmas características como, por exemplo, na afirmação “Em França todos os criados são russos”.

A caracterização permanece imutável ao longo do tempo, sendo os “maus” definitivamente “maus” e os “bons” definitivamente “bons”. Quando, por exemplo, se afirma que “o negro não domina a técnica” está implícita a ideia de que não só nunca a conseguiu dominar, como também que nunca a conseguirá dominar.

Os estereótipos sobre hábitos alimentares são muito comuns como, por exemplo, na afirmação: ”Os belgas são comedores de batatas fritas e de mexilhões”. Nas ocasiões em que se reconhece a especificidade de um dado membro do grupo, apenas se constata a existência de uma excepção e, de resto, a excepção apenas confirma a regra.

Amâncio (1994: 138) salienta que, no ensaio de Sartre (1954) sobre o anti- semitismo, se encontra o argumento de que o verdadeiro Judeu só existe na mente do anti-semita. Existe, assim, muito de mito, de simbólico, em todo este processo de idealização do outro.

Vejamos, por exemplo, a afirmação:”[…] todas as judias seriam sifilíticas e, às vezes, cortavam, à dentada, o sexo do amante” (Memmi, 1993: 41). Poderemos considerar que o fim último, mesmo que não consciente, deste processo é o aniquilamento, a destruição simbólica, a desumanização do outro, a que Tajfel se refere (1983).

O que também não deixa de ser interessante é que nem sequer nos apercebemos que também nós somos o outro no olhar desse outro e que, se para os imigrantes Europeus na América os índios eram os "peles-vermelhas", também

é verdade que para os Índios, os Europeus eram os "rostos pálidos" (Memmi, 1993: 61). Ao mesmo tempo que perspectivávamos os colonizados como “selvagens”, éramos também percepcionados pelos viajantes europeus como “selvagens” (Silva, 1992: 1). Assim, Yan (1991: 45) refere que para os Chineses, os Europeus representavam os "bárbaros".57

Outra questão, não menos problemática, é a questão: “Quem é o outro?”. A resposta poderia ser, ainda que com algumas limitações: qualquer um. Assim, por exemplo, para conjurar a desgraça, os Antigos sacrificavam uma vítima expiatória aos Deuses. Carregavam o infeliz animal com todos os pecados da cidade, reduzindo dessa forma a culpabilidade colectiva (Memmi, 1993: 47).

Schweisguth (1995: 130) referiu-se à observação de Lévi-Strauss (1949) de que para os Esquimós tradicionais os estrangeiros eram apelidados de "ovos de piolhos”.

No entanto, a escolha dos bodes expiatórias não é fruto do acaso e não foi, decerto, por acaso que se mataram tantas bruxas e tão poucos bruxos (Memmi, 1993: 48). As mulheres, à quais se associava um mítico e pecaminoso poder da “carne”, cristalizavam mais facilmente os medos e os ressentimentos. Ao condená-las ao fogo purificador, a sociedade destruía nelas o que quereria destruir em si mesma, imputando-lhe os seus pecados. Mas os alvos não foram apenas as mulheres:

Prolétaires, femmes, Noirs, homosexuels, vagabonds […] étaient l’object d’attaques idéologiques et de répression politique parce qu’ils représentaient, soit dans les faits, soit dans l’imaginaire symbolique, une menace au bon fonctionnement de l’ordre burgeois. (Schecter, 1989: 50)

Frequentemente, os próprios alvos do racismo interiorizam a hierarquia que lhes é transmitida. Assim, antes da Revolução Francesa, Moreau de Saint- Méry, classificou os Antilhanos de acordo com a seguinte hierarquia (em que o

grau de dignidade é tanto maior quanto mais próximo cada grupo está do "Pai Branco"58): negros, mulatos, quarterões, mestiços, mamelucos, morabitos, griffés, sacatros e, ainda, combinações dos diferentes tipos referidos, tendo mais tarde verificado que os próprios Antilhanos se classificavam de acordo com essa hierarquia. (Memmi, 1993: 44).

Os estudos sobre identidade étnica em crianças são particularmente elucidativos deste aspecto. Phinney (1990), entre outros, refere estudos que demonstram a interiorização da inferioridade em crianças negras e as suas consequências ao nível da auto-estima.

A recusa do outro é orientada por um certo idealismo, simultaneamente o desejo do regresso a um estado anterior e o desejo de instaurar uma nova ordem. Paraíso perdido ou idade do ouro messiânica, espécie de amálgama em que o futuro é perspectivado como uma projecção do passado e em que o passado é reconstruído em função do futuro, o simultâneo lamentar de já não se viver num estado de graça e o desejo de o reencontrar (Memmi, 1993: 49).