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4.4 Visitas Subsequentes

4.4.1 A Escola Máximo Gorki

Paulo Freire e sua equipa visitaram pela primeira vez a escola Máximo Gorki em fevereiro de 1976. Esta escola ficava a 50 km ao norte de Bissau, na aldeia rural de Có, na zona de Cacheu.

Foi durante o percurso a Có que Mário Cabral foi contando do surgimento do Centro de Capacitação Máximo Gorki. No ano anterior um grupo de educadores o havia procurado para expor as suas ideias de criar um Centro de Capacitação e superação de professores “num velho quartel do exército colonial que se esvaziara depois da Independência do país” (FREIRE, 2011a, p. 79).

Segundo Freire, tinha muito, naquele antigo quartel, “por higienizar e melhorar, em todos os sentidos, as instalações do que antes tinham sido um ponto fortificado do invasor e um centro também, mas em que os colonialistas torturavam, até a morte, os nacionais, diante de cuja determinação terminavam, não raro, por se assustar.” (FREIRE, 2011a, p. 80).

No momento da visita da equipa, já tinham quatro meses que o grupo de educadores tinha iniciado os primeiros trabalhos para a instalação do centro (FREIRE, 2011a, p. 80): É preciso explicar que depois das Independência era normal o aproveitamento de instalações abandonados pelo governo colonial para educação ou outros serviços sociais como o que acontecia em Máximo Gorki.

Revelando terem sido forjados nas zonas libertadas, os educadores do Centro Máximo Gorki, davam vida a um centro de unidade entre o trabalho manual e o trabalho intelectual (FREIRE, 2011a, p. 80).

Entregavam-se tanto às tarefas de limpeza do imundo quartel, de caiação de suas dependências, de melhoria de suas condições sanitárias, de capinagem do campo em volta, de plantio de árvores, de higienização do poço que fornecia excelente água, quanto, em certas horas do dia, pensavam na organização administrativa do centro, nos meios de eficientemente integrá-lo à vida da comunidade e nas suas

atividades político-pedagógicas, preparando-se, assim, para receber o primeiro grupo de estagiários. (FREIRE, 2011a, pp. 80-81).

Segundo Freire, ele ia tendo a impressão de que o centro, em função da ligação da prática à teoria, estava se constituindo, cada dia que passava, num centro universitário do povo (...) a que nasce no seio do povo trabalhador e que, fundando-se no trabalho produtivo, se dá ao esforço sistematizador do conhecimento que resulta da própria prática (FREIRE, 2011a, p. 81). É que o Centro de Có, “fiel ao espirito que marcou a educação nas zonas libertadas” (FREIRE, 2011a, p. 81), veio se constituindo dentro da prática de superação das dicotomias, para além da já mencionada teoria e prática, mas também do ensinar e do aprender. Desde que recebeu a primeira turma de estagiários vem se constituindo neste esforço.

Em setembro do ano passado, vi suas áreas cultivadas. Milho, mandioca, batata, frutas, hortaliças, a que se junta hoje, com a colaboração do Comissariado de Agricultura, a criação de galinhas, patos, porcos e carneiros, com que o centro vai se tornando autossuficiente (FREIRE, 2011a, p. 82).

Durante a luta de libertação, nas zonas libertadas, campos cheios de vida, tal como o que se descreve no parágrafo anterior eram um dos significados de uma revolução ativa e educadora. Paulo Freira lamentava que, mesmo que já fosse positiva a participação de todos no trabalho produtivo, no Centro Máximo Gorki, não houvesse no próprio trabalho produtivo uma fonte de conhecimentos diversos e não apenas agrícola que ele propiciava: “de outro, que a capacitação e a recapacitação dos professores estagiários, no campo, por exemplo, do ensino básico, não se encontrasse fundada na prática deste” (FREIRE, 2011a, p. 82).

Com efeito, ao invés do que acontecia nas zonas libertadas, em que a revolução era uma verdadeira escola do aprendizado da relação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, em que aquele brotava deste, no pós-independência começava o mecanicismo: achamos que é isso que Freire criticava acima.

Mas em geral podia se assistir algo positivo em Có como o espírito de que quem sabia alguma coisa ensinava aos outros numa verdadeira relação dialética entre o ensinar e o aprender que “ganha sentido revolucionários” (FREIRE, 2011a, p. 83). Naquele momento, com apoio de Mário Cabral, os professores efetivos do centro, pensavam em organizar alguns seminários de aprofundamentos de aspetos da educação em geral e das ciências sociais (FREIRE, 2011a, p. 83). Logo depois a Independência,

sobretudo para pessoas que se tinham formado nas zonas libertadas, ainda havia muita militância e voluntarismo.

A experiência de Có, para Freire (2011a), uma das melhores experiências de educação de adultos em Guiné-Bissau naquela época, foi possível com a participação das populações das tabancas37 vizinhas. Os seus mentores notaram, tal como aconteceu na luta pela libertação do país, que um centro daquela natureza só poderia ser viável com o engajamento das populações para sua materialização: “o sonho da equipe devia ser assumido também pela comunidade como algo seu, sem o que não teria sentido.” (FREIRE, 2011a, pp. 83-84)

Foi nesta experiência que se fez “o melhor levantamento sócio económico e cultural de uma área, na Guiné-Bissau” e que possibilitou a escolha de palavras geradoras adequadas para o início do esforço de alfabetização no sentido dinâmico (FREIRE, 2011a, p. 84).

Com ajuda da população o centro ia estendendo e intensificando suas atividades. Tinham um posto sanitário com uma equipa de três estagiários com preparação de socorristas. (FREIRE, 2011a, p. 85) “As consultas são diárias, somando, as vezes, mais de cem por mês.” (FREIRE, 2011a, p. 84)

Em ligação com o Comissariado de Saúde cuja política é de medicina preventiva, o centro preocupava-se ao máximo com a educação sanitária das populações, realizando-se sempre em coordenação com os comités das tabancas reuniões de estudo em que se discutiam certos aspetos “mágicos” ligados a saúde (FREIRE, 2011a, p. 84)

Estas reuniões, poderia dizer, estes seminários em que se discutem problemas sanitários com o povo às vezes no terreiro limpo, uma espécie de pequena praça no centro de uma tabanca, ou à sombra de uma árvore ou ainda em “palotas”, palhoças, construídas pela população, como as que vi funcionando os Círculos de Cultura, se centram constantemente na análise da prática social da comunidade (FREIRE, 2011a, p. 85)

A experiência de Có (FREIRE, 2011a, p. 85) ia alcançando também professores das escolas primárias da área maior em que se situava o centro sempre em coordenação com o comitê político da tabanca.

Mesmo sendo uma experiência extraordinária, para Freire, o centro poderia integrar mais problemáticas para os professores efetivos do centro como a relação entre

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a saúde, educação e o modo de produção “ao lado da formação em torno de conhecimentos específicos nos campos da saúde, da agricultura” (FREIRE, 2011a, p. 85). Ele achava que poderiam integrar ainda a questão da alienação cultural provocada pelo colonialismo em certas faixas da população. Freire tinha também opinião de que dentro da relação entre o centro e a comunidade este tinha o desafio de ir ajudando cada vez mais aquelas populações a ir sistematizando os seus conhecimentos que da sua relação derivava e ir “ultrapassando, assim, a mera opinião sobre os fatos por uma crítica compreensão dos mesmos” (FREIRE, 2011a, p. 87).

Freire tinha opinião que o centro Máximo Gorki poderia se tornar aquela universidade popular de que ele falava e que para tal o centro devia tomar a própria cotidianidade em objeto de sua reflexão(FREIRE, 2011a, p. 87). Para Freire (2011a), a condição para que este passo se dê é a análise da prática realizada ou realizando-se “e se alongue na prática subsequente, qualquer que seja ela, sempre social”. A análise crítica do seu modo de estar na quotidianeidade mais imediata, a de sua tabanca e a compreensão da razão de ser dos fatos que se dão nela os leva a transcenderem para ganhar uma visão global da realidade, “indispensável à compreensão da própria tarefa de reconstrução nacional.”(FREIRE, 2011a, p. 88).

O educador brasileiro achava que uma atividade político pedagógica como a que se levava a cabo no centro de Có e que põe em prática uma teoria de conhecimento dialético é “uma dimensão fundamental do esforço de reconstrução nacional” (FREIRE, 2011a, p. 88). A reconstrução nacional, reflete Freire, que se alongava na criação da “nova sociedade, sociedade de trabalhadores, em que um novo tipo de intelectual deve emergir- o que se forja na unidade entre trabalho manual e o trabalho intelectual, entre prática e teoria” (FREIRE, 2011a, p. 88).

Ele achava que o centro de Có poderia vir a ser um centro que contribuiria para a formação deste novo intelectual (FREIRE, 2011a, p. 88). Freire pensava ainda que se o centro se mantivesse naquele nível de crescimento e em função da exigência das populações e das necessidades locais, regionais e nacionais, poderia vir a formar, entre os membros da comunidade, técnicos agrícolas, avicultores, mecânicos, eletricistas (FREIRE, 2011a, p. 89). Mas isto era já muito ambicioso da parte do Freire uma vez que os atores que dinamizavam o processo que ele testemunhava, mesmo que tivessem as melhores intenções e com o maior dos níveis políticos, tinham baixíssimas qualificações científicas.

Para Freire (2011a, p. 89) a dinâmica daquele centro não surpreende, pois a sua gestão não estava só nas mãos do diretor, se achando também nas mãos dos professores efetivos e de professores estagiários, com igual participação. Semanalmente, se reunia o órgão dirigente para fazer o balanço ou a avaliação do que ocorreu na semana anterior. Sem limite de temo, discutiam ideias “pois se evita, tanto quanto possível, a necessidade de decisão por voto” (FREIRE, 2011a, p. 89). E o diretor explicava que só votavam quando havia desacordos.

Nestas reuniões de direção são esboçadas linhas gerais, mas detidamente estudadas, com relação à vida do centro, incluindo seus projetos de ação na comunidade, linhas que são propostas ao debate da assembleia geral, de que participam todos os estagiários. Nas reuniões de assembleia, não raro, novas surgem, com as quais se enriquecem os planos do comitê diretivo, em benefício do interesse comum (FREIRE, 2011a, p. 90).

Paulo Freire se referia à gestão participativa que guiava a vida do Centro Máximo Gorki. O Centro de Formação de Professores Máximo Gorki foi considerado no de 1975 como a escola modelo do país.

Da visita ao Centro Máximo Gorki, podemos levantar algumas hipóteses de ordem metodológica para um educador ou político educador participante. O visitante precisa observar o ambiente, o que fazem os homens e as mulheres que se movimentam no ambiente. Ele aproveita as histórias que vai ouvindo, não só com as populações, como com os seus guias. Isso permite ir adentrando não só na experiência em observação como também no passado ou origem da experiência. O acompanhamento da experiência não é inocente, o sujeito pesquisador vai não só compreendendo o que vê como pode ir colocando reservas em relação ao seu desenvolvimento.

Do ponto de vista prático, a experiência de Máximo Gorki levanta algumas constatações como a sua validade pelo trabalho coletivo, a gestão participante, a relação entre o trabalho intelectual e trabalho manual, porém suscitava muitos desafios como a discussão da alienação cultural, a abordagem mais dialética da matéria, portanto, olhando para as contradições e a elevação da interpretação dos fenómenos nas populações e se promovendo uma relação mais rigorosa com os fenómenos do quotidiano. Do Có, Freire e equipe, deslocaram-se ao interior.