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Algo que chama atenção logo na abertura do livro, Cartas à Guiné-Bissau, é que Freire, para além de falar da sua satisfação de estar em Guiné-Bissau e agradecer o convite do governo para trabalhar naquele país africano, ele constata que o povo africano não partia do zero, apesar da espoliação material que tinha sofrido, mas que iniciava das suas fontes culturais e históricas e apresenta o que lhe parecia a manifestação cultural única de um povo que o colonialismo não tinha conseguido extinguir (FREIRE, 2014, pp. 13-14).

Por isso ele refutava, nos Cadernos de Cultura Popular, que os africanos não tinham cultura (FREIRE, 2011b; FREIRE, 2011c) e ele retoma esse posicionamento em vários outros escritos sobre África.

Cabral afirmava que a história dos movimentos de libertação era precedida por “uma intensificação das manifestações culturais, que se concretizam progressivamente por uma tentativa, vitoriosa ou não, da afirmação da personalidade cultural do povo dominado como ato de negação da cultura do opressor”30. O dirigente africano referia- se ao fato de que antes da constituição dos movimentos de libertação nacionais a cultura foi a primeira expressão de resistência do povo africano. Na África colonizada pela França teve a revista cultural, Presence Africain, em Cabo Verde e Guiné-Bissau, a revista literária Claridade, em Moçambique teve o Brado Africano (Andrade). Teve movimentos literários como a negritude. Ao nível das artes plásticas houve paulatinamente mudanças de temas e novas formas de expressão artística. (FANON, 1968).

Por isso para Freire, tal como na luta de libertação nacional, contra o colonialismo, a luta pela emancipação completa do povo guineense, continuaria sendo a expressão da cultura (FREIRE, 2011). Para o pedagogo pernambucano, a cultura popular seria o ponto de partida no processo de alfabetização como ação cultural, por isso mesmo que irá dizer na entrevista a Faundez (FREIRE & FAUNDEZ, 1988):

Creio que uma aproximação ao estudo e à compreensão crítica de como se dão as coisas no mundo da cotidianeidade pode ser muito útil ao analista político no seu entendimento de como a ideologia dominante não chega reduzir toda a expressão cultural, não chega a reduzir a criatividade popular a ela mesma, ideologia dominante. As vezes, podemos ser levados, numa compreensão acrítica do que seja esta luta, a pensar que tudo o que se acha na cotidianeidade popular é pura reprodução da ideologia dominante. E não é. Haverá sempre algo, nas expressões culturais populares, da ideologia dominante, mas há também, contradizendo-a, as marcas da resistência, na linguagem, na música, no gosto da comida, na religiosidade popular, na compreensão do mundo (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p.36).

O que Paulo Freire afirma acima resultava, em grande medida, não só das suas experiências do Brasil, Chile, mas também da África como ele disse nessa entrevista em vários momentos (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p.36).

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Os africanos resistiram secularmente através das canções, das advinhas, da alimentação, das vestes, das filosofias e da literatura. Aliás, os intelectuais africanos também acreditavam que a primeira resistência sistemática contra o colonialismo foi feita ao nível da literatura, mas esta resistência estava ainda ao nível do ideal e do erudito (ANDRADE, CABRAL, 1978; MONDLANE, 1995). Talvez Paulo Freire tenha razão ao afirmar: “A leitura crítica da realidade, tem de juntar a sensibilidade do real e, para ganhar esta sensibilidade ou desenvolvê-la, precisa de comunhão com as massas. O intelectual precisa saber que a sua sensibilidade crítica não é superior nem inferior à sensibilidade popular” (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p.39).

Por isso para Freire, em entrevista ao Antonio Faundez,

(...) o ponto de partida do projeto político-pedagógico, tem de estar exatamente nos níveis de aspiração, nos níveis de sonho, nos níveis de compreensão da realidade e nas formas de ação e de luta dos grupos populares (...) o ponto de partida deveria estar precisamente na resistência. Quer dizer, nas formas de resistência das massas populares. (...) A questão é como nos acercar das massas populares, para compreender os seus níveis de resistência, como se encontram entre elas, como se expressam e trabalhar então sobre isto (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p.38)

Paulo Freire tinha, pelo menos, uma certeza que era a de que deveria trabalhar não para as massas, mas com elas. Isto significa acompanhar o povo no seu trabalho, na sua vida cotidiana (FREIRE e Faundez, 1988, p. 45). Por isso ele interessou-se pelo conhecimento popular no seu trabalho de alfabetização:

Não tenho dúvidas de que a compreensão do senso comum das classes populares (...), a compreensão crítica dos seus sonhos, tudo isto é indispensável a qualquer esforço de luta pela transformação da sociedade. Sem compreender essas relações, sem compreender os limites da resistência das classes populares, no sentido de estimulá-la para com elas ultrapassá-los, é difícil atuar politicamente, com eficiência revolucionária (...). Em outras palavras é preciso compreender as manhas para entender também o medo. (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p. 55).

Por isso Freire (e FAUNDEZ, 1988) sugira aos educadores-políticos e aos políticos-educadores que juntem a sua competência científica e técnica à sensibilidade da realidade. Como diria a dado passo:

Neste sentido, me parece fundamental que o educador político e o político educador, se tornem capazes de ir aprendendo a juntar, na análise do processo em que se acham, a sua competência científica e técnica, forjada ao longo de sua experiência intelectual, à sensibilidade do concreto. Se eles forem capazes de fazer este casamento indissolúvel entre a compreensão rigorosa e a sensibilidade sem a qual a rigorosidade também falha, a sua prática irá se afirmar e

crescer. O que tem, portanto, de fazer é- expondo-se aos valores culturais, às formas de resistência, às manhas populares- começar a, mais do que intelectualmente compreendê-las, senti-las. (FREIRE e FAUNDEZ, 1988).

O educador- político e o político- educador, deverão promover o diálogo entre o conhecimento erudito com o conhecimento popular, o que Freire vai buscar não só em intelectuais como Gramsci como nos africanos como Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Frantz Fanon, Julius Nyerere e Eduardo Mondlane. Como diria Cabral, o grande mérito de Mondlane não foi a sua decisão de lutar pelo seu povo, mas a sua capacidade de mergulhar na cultura do seu povo (FREIRE, 2011b). Ou seja, Eduardo Mondlane, como Amílcar Cabral, fez aquilo que Freire e Cabral chamaram de “Reafricanização” ou ainda a chamada reconversão.

3.4 “Reafricanização”

Paulo Freire usou o termo “reafricanização” termo que foi usado pelos intelectuais africanos que estiveram à frente das Independências dos países daquele continente. Mas o termo começou a ser empregue entre os alunos da Casa dos Estudantes do Império31 (CEI), de Lisboa, jovens africanos que estudavam em Portugal nas décadas de 1940 e 1960, como Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane. Ao que tudo indica os futuros dirigentes dos movimentos de libertação, teriam sofrido influência dos intelectuais africanos das ex-colónias francesas que se congregavam na revista Présence Africaine32dado que ainda merece cuidadosa verificação.

A “reafricanizição”, segundo Mário Pinto de Andrade começou por ser cultural e só depois se tornou político. Como movimento cultural, nos países de expressão portuguesa, foi conhecido com escritores como António Jacinto, Viriato Cruz, líderes do “Vamos Descobrir Angola”. “Introduziram o povo na literatura. Seus textos integravam

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A Casa dos Estudantes do Império (CEI) foi criada em 1944 (...) para responder ao reforço do convívio dos estudantes universitários das ex-colónias portuguesas, que não possuíam instituições de ensino superior e que tinham assim que continuar a frequência universitária em Portugal. Este objetivo integrou- se num outro, mais visto, de formação de eleitos que se admitiam virem a ser enquadradoras dos objetivos que o próprio regime colonial prosseguia. Esta informação pode ser consultada em http://www.uccla.pt/casa-dos-estudantes-do-imperio.

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Présence Africaine é uma revista cultural, política e literária pan-africana, trimestral, publicada em Paris, França e fundada por Alioune Diop em 1947. Em 1949, a Presence Africaine expandiu-se para incluir uma editora e uma livraria em Paris. A revista foi altamente influente no movimento pan- africanista, na luta de descolonização das antigas colônias francesas e no nascimento do movimento Negritude.

gente do musseque33: o desempregado, o feirante, o contratado. Homens sem terra que viajavam de aldeia em aldeia em busca das grandes plantações de café”34.

Mário Pinto de Andrade explica que ele e os seus colegas da Casa dos Estudantes do Império é que deram “um conteúdo revolucionário” a “reafricanização”: “Tudo o que foi feito depois é uma materialização do nosso primeiro grito de “reafricanização””35

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Sem dívidas que Freire toma essa palavra de Amílcar Cabral com a qual o líder africano queria dizer voltar a ser africano. Para Freire “reafricanização das mentalidades” equivaleria ao que Aristides Pereira designaria por “descolonização das mentes” (FREIRE, 2011a, p. 26).

Para Freire (2011a, p. 26) a “reafricanização das mentalidades” implicava a “transformação radical do sistema educacional herdado do colonizador” (FREIRE, 2011b, p.26), mas que não pode ser feito de maneira mecânica (Idem, p. 26) e exige uma decisão política em consonância com o projeto de sociedade que se pretende criar; “e esta transformação radical requer certas condições materiais em que se funde, ao mesmo tempo que as incentiva” (FREIRE, 2011a, p. 26). Para Freire, criticando um pouco os dirigentes africanos, a “reafricanização” devia compreender o regresso à cultura africana incluindo o resgate das línguas nacionais para além de se virar à produção e à mudança do modo de produção.

Obviamente que a “reafricanização” sendo uma reconversão a africanidade ela precisa se alicerçar em novas condições também económicas e sociais, o que, naturalmente, vai tocar a produção dos bens materiais e nas respetivas relações de produção desses bens, como se disse anteriormente. Por isso a transformação radical desta situação vá requerer uma clareza política “na determinação do que produzir, do como, do para que, do para quem produzir” (FREIRE, 2011a, p. 26).

Esta transformação deve ser iniciada dentro das condições existentes e tendo em conta um dos seus principais aspetos como a superação da dicotomia entre o trabalho manual e trabalho intelectual, teoria e prática, etc. Naturalmente deverão se esperar

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Palavra de língua nacional angola que significa subúrbio.

34 Entrevista a Mário Pinto de Andrade do jornal Nô Pintcha de 12 de Setembro de 1976. Mário Pinto de Andrade (1976), "Nô Pintcha - Órgão do Comissariado de Informação e Cultura", Domingo, 12 de Setembro de 1976, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85920 (2017-7-19).

resistências “da velha ideologia” que sobrevive não somente em nível da compreensão, mas através da manutenção das práticas coloniais (FREIRE, 2011a, pp. 26-27).

Dai que a transformação radical do sistema educacional herdado do colonizador exija um esforço Interestrutural, um trabalho de transformação ao nível da infraestrutura e uma ação simultânea ao nível da ideologia. A reorganização do modo de produção e o envolvimento crítico dos trabalhadores numa forma distinta de educação, em que mais que “adestrados” para produzir, sejam chamados a entender o próprio processo de trabalho (FREIRE, 2011a, p. 27).

Haveria que capacitar novos quadros e recapacitar os quadros antigos rumo a “reafricanização”. Só assim se poderia junto marchar na direção da construção consciente e livre da História. Se a história nos traz a natureza e a extensão dos desequilíbrios e das contradições enfrentadas por uma sociedade ao longo do tempo, a cultura é uma síntese dinâmica feita pela consciência social mediante esses conflitos em cada etapa da evolução dessa sociedade em busca da sobrevivência e do progresso (CABRAL, 1978). Por isso antes de se propor alguma mudança é preciso saber quais são as condições do grupo a quem se faz a proposta (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p. 109).

Para Faundez, como para Freire, era necessário partir do conhecimento positivo e negativo das camadas populares, “para então propor, com elas, a resposta a essa necessidade” (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, p. 110). Isso demonstraria o respeito pela história dessa sociedade.

Tomando assim a libertação como um fato de cultura é necessário adotar-se uma nova teoria do conhecimento.