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Como vimos no capítulo anterior, Paulo Freire, sempre pensou que o colonialismo, entre vários artifícios, recorreu também ao modo de produção capitalista para dominar os povos africanos e não só. Por isso, parece-nos natural, que dentro da

sua concepção do processo de libertação equacionasse a mudança do modo de produção capitalista para o modo de produção socialista.

No capitalismo os fatores de produção se combinam em função do capital, e o capitalista produz em função do valor de troca, do valor vendável das mercadorias, enquanto no socialismo se produz para o bem estar coletivo e pelo valor de uso das coisas:

Se a produção se orienta no sentido do bem estar coletivo e não do lucro do capitalista, privado ou estatal, a acumulação, indispensável ao desenvolvimento, tem uma significação e um fim totalmente distintos. Agora, numa perspectiva socialista, o que deixa de se pagar ao trabalhador já não é uma usurpação, mas a quota que ele dá ao desenvolvimento da coletividade, e o que se deve produzir com esta quota não é uma mercadoria que se define por ser vendável, mas o socialmente necessário (FREIRE, 2011b, p.193).

Na educação na África, pareceu lhe lícito contribuir na luta africana de construção de uma sociedade de igualdade, cooperativa, em que todos trabalhariam para o bem coletivo e para o bem da sociedade.

A educação revolucionária que ele concebe tem a situação existencial como sua base de sustentação com o trabalho como dimensão fundamental. Neste caso, o trabalho concebido como o processo de transformação coletiva do real: “Programa que estreitamente ligada à produção, busca incentivar a responsabilidade social e o trabalho cooperativo, com vistas ao interesse comum e que, em última análise, se fundamenta numa profunda crença nos seres humanos” (FREIRE, 2011b, p. 238).

Freire, contra o sistema capitalista, discute com os africanos uma nova escola, que integrando o trabalho no seu seio, se torna em uma entidade dialética que integra a teoria e a prática, a ação e reflexão, trabalho manual e trabalho intelectual:

Uma vantagem de uma projeto como este, ao propor a reflexão crítica sobre a realidade contextual em “convivência” com ela, é a do surgimento de um novo tipo de escola- a que, em sintonia com o projeto de nova sociedade que se procura criar em Guiné-Bissau e em Cabo Verde, não dicotomiza teoria da prática, reflexão de ação, trabalho intelectual de trabalho manual (FREIRE, 2011a, p. 238) Ele concorda com a implementação de uma educação que forme trabalhadores, rurais e urbanos, como pretende o marxismo. Por isso, contra o sistema capitalista, que quanto menos os trabalhadores entendam o seu trabalho melhor, ele aposta numa educação que levasse a compreensão, pelo operário e pelo camponês, da sua atividade:

Numa sociedade revolucionária, que visa ao socialismo, pelo contrário, quanto mais consciência política, tenham os indivíduos enquanto recriadores de uma sociedade que se vai tornando uma sociedade de trabalhadores, tanto mais criticamente se engajam no esforço produtivo. Neste sentido, sua consciência política é fator também de produção (FREIRE, 1978, 119)

Na sociedade que se reconstrói na linha do socialismo, pelo contrário, fundando-se na nova realidade material que vai tomando forma, a educação deve ser eminentemente desveladora e criticizante (FREIRE, 2011b, p. 193).

Por isso, nos Cadernos de Cultura Popular vai se dedicar a “combater a posição ideológica de que só se estuda na escola” (FREIRE, 2011c, p. 74). E no artigo sobre São Tomé e Príncipe escreve claramente que o conhecimento fora da escola é considerado inferior: “[o saber fora da escola] é tido como inferior sem que tenha nada que ver com o rigoroso saber intelectual” (FREIRE, 2011c, p. 74).

Com efeito, Freire (2011a; 2011b; 2011c), falava para os educadores africanos que a educação deve partir de onde o povo está empenhado em alguma atividade coletiva, de interesse comum e que possibilita a ajuda mútua, a cooperação e o desejo de crescimento coletivo. Estas condições se tornam propícias para levar a cabo uma educação militante em que os educadores e educandos tentam construir um mundo novo de trabalhadores, sem a exploração do homem pelo homem, em que os ganhos são coletivos.

As condições dos países africanos em que Paulo Freire colaborou eram concordantes com os ideais socialistas, pois que esses governos estavam a realizar a reconstrução nacional com recurso a políticas inspiradas em sociedades socialistas europeias (e não só), mas, sobretudo, da União Soviética para além de terem tido em conta a experiência da reconstrução nas zonas libertadas. Por isso Freire colaborava com Estados de partido único e estava de acordo com esse modelo, como podemos demonstrar a partir de algumas passagens dos seus escritos africanos. Por exemplo, nos extratos dos Cadernos de Cultura Popular ele demonstra aquiescências com os partidos únicos existentes nos Estados africanos de língua portuguesa:

O MLST guiou a lua de libertação do nosso Povo.

O PAIGC guiou a luta de libertação do Povo da Guiné-Bissau e cabo Verde.

O MPLA, Partido do Trabalho, guiou a luta de libertação do povo angolano.

A independência de todos nós, Povo de São Tomé e Príncipe, guineense, cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos, não foi presente dos colonialistas. A nossa independência resultou da luta dura e difícil. A luta de todos nós como Povos oprimidos, buscando a libertação (SÂO TOMÉ, 1978, p. 21).

Este trecho dos Cadernos de Cultura Popular era a ressonância do que se dizia nesses países. A última parte, expressa o que os próprios partidos libertadores diziam de si próprios como que, cada um, congregava as aspirações de todo o Povo de cada nação e, por isso, seu legítimo representante. Para além disso, Paulo Freire, tinha o cuidado de conceber ideias que se ajustavam não só com os governos como com o partido (único) de cada país. Exemplo é duma passagem em que fala da situação da Guiné-Bissau: “Esses requisitos são básicos na medida mesma em que coincidem também com os princípios políticos do Partido e do Governo que estimulam a participação criticamente consciente do povo” (FREIRE, 2011b, p. 232).

Nas Cartas à Guiné-Bissau ele discute duas experiências que conheceu, uma da China comunista e outra do Caribe que considerava modelos e que achava que os coordenadores de alfabetização da Guiné-Bissau deveriam conhecer e tirar as lições que achassem importantes. Nestas experiências ressaltam a aprendizagem comum, aprendizagem no trabalho, a emergência de um intelectual trabalhador, a consciência crítica, a militância, a cooperação, a superação da dicotomia entre ensino e aprendizagem, trabalho manual e trabalho intelectual e a reflexão e a ação.

A implantação do modo de produção socialista poderia ter maior sucesso, como todas as outras transformações se repousassem nas experiências culturais populares. Não foi por acaso que Paulo Freire fez alguma incursão pela resistência cultural.