• Nenhum resultado encontrado

4.4 Visitas Subsequentes

4.4.2 Reunião com Camponeses

No âmbito do conhecimento da realidade da Guiné-Bissau, Paulo Freire e sua equipe, visitaram uma comunidade camponesa a norte da escola de Có. Era a primeira

vez que entravam em contato com comunidades camponesas. Tratava-se de uma reunião entre um número significativo de residentes daquela zona rural com o Comissário da Educação e o responsável político.

Em relação ao grupo de Freire o objetivo da participação na reunião era inteirar- se, tanto quanto possível, sobretudo, como viam a si mesmos em suas relações com o Partido e com o Governo, no quadro geral da luta pela reconstrução nacional (FREIRE, 2011a, p.91). O objetivo do IDAC seria ainda compreender o que significava para eles a luta pela reconstrução nacional, enquanto continuidade da outra, a de libertação nacional, à qual haviam dado seu apoio na medida do possível, em face da repressão colonialista em que se acharam submetidos.

A reunião decorreu à sombra de uma árvore secular. Enquanto se dirigiam àquela sombra Freire ia sendo assaltado de pensamentos:

A impressão que tive é a de que a área sombreada da árvore é uma espécie de centro político-cultural da população. Um lugar de encontro, em que se conversa informalmente, mas também em que se discutem os planos de trabalho comum. Pensei, então, como se poderia aproveitar aquela sombra em programas de educação informal (FREIRE, 2011a, p. 92).

Com efeito, as reflexões de Freire mostram o quanto deve ser ativa a visita ao terreno no método dialógico em que as reflexões do educador vão abrindo para sugestões; buscar relações, nexos, sentidos e construindo assim o conjunto.

Ele conta ainda que a caminho da árvore lembrou-se de que era também numa árvore onde Amílcar Cabral orientava os seminários de avaliação, com os seus “militantes armados”, das ações contra o colonialismo. Diz se de Cabral que, no interior da Guiné, durante o recenciamento agrícola, em que conversando com os camponeses, pegou na semente de dendê e procurou um sítio adequado e plantou e disse para os camponeses: “antes da palmeira nascida desta semente dar frutos muita coisa vai acontecer na Guiné feita por nós”.

E diz-se que alguns anos depois Cabral fez a reunião do PAIGC naquela aldeia ao lado da palmeira que dava o seu primeiro cacho. Para Freire (2011a), Cabral ao proferir aquelas palavras que não se limitaram a pura expressão como ao plantio da árvore, falava uma linguagem de esperança. Não era uma falsa esperança que se limitasse a uma imobilidade num tempo de espera vã (FREIRE, 2011a, p. 93). “A espera só é esperançosa quando se dá na unidade entre a ação transformadora do mundo e a reflexão crítica sobre ela” (FREIRE, 2011a, p. 93).

Para Freire (FREIRE, 2011a), explicando ainda as suas lucubrações enquanto se dirigiam a árvore,

Ao falar aquela linguagem, em uma relação horizontal com os camponeses, Cabral começava o enraizamento, no meio do povo, do PAIGC em formação, ao mesmo tempo que se intensificava o aprendizado de sua “re-africanização”, associado ao “suicídio de classe” que se impunha aos intelectuais revolucionários africanos para “não trair os ideias da revolução” e sobre que falou tão claramente em seus textos (FREIRE, 2011a, p. 94).

Aberta a reunião, Mário Cabral explicou da presença do grupo em Guiné-Bissau, o trabalho que faziam junto com os nacionais na educação e explicou que ele estava ali como responsável da educação com o objetivo de ouvi-los e com eles debater, livremente, “as suas necessidades mais prementes” (FREIRE, 2011a, p. 94).

De imediato cincos dos mais velhos afastaram-se da assembleia e, em círculo pequeno, falaram em voz baixa enquanto os demais permaneciam calados (FREIRE, 2011a, p. 94). Um jovem que estava ao lado de Freire, enquanto o grupo trocava ideias, explicou que eles estavam a combinar a ordem em que falariam bem como os pontos a abordar. E ele acrescentava que eles faziam sempre assim. Freire aproveita a apresentação desta cena para comentar que um educador intolerante poderia já correr para criticar afirmando que aqueles camponeses ao fizeram aquela concertação significava que não estavam preparados.

Vale a pena ler diretamente as palavras de Freire:

Em dado instante, um a um, começaram os cinco a falar. De modo geral, ricos no uso de metáforas, de gestos, com os quais sublinhavam suas afirmações.

Referindo-se à violência dos colonialistas, um deles curvava-se e recurvava-se para encarnar as palavras com que descrevia os maus tratos recebidos. Andava de um canto ao outro, dentro do círculo de sombra em que estávamos, com diferentes movimentos corporais, para expressar melhor um ou outro aspecto da história que contava. Nenhum falou estaticamente, dissociando a palavra de seu corpo. Nenhum disse sua palavra para que fosse apenas escutada. Na África, a palavra é também para ser “vista”, envolvida no gesto necessário. Nenhum, como de modo geral ocorre na África, com exceção dos intelectuais que, “des-africanizados” negam suas raízes, revelou medo ou vergonha de usar seu corpo, no processo de sua expressividade E enquanto os via e os ouvia falando com força de suas metáforas e a ligeireza de movimentos de seus corpos, pensava nas possibilidades inúmeras que se abrem, com essas fontes culturais africanas, a uma educação libertadora (FREIRE, 2011a, p. 95).

Estas análises e aproximações da realidade mostram a atenção, especulações, interpretações, extrapolações que enquanto um educador dialógico se movimenta vai fazendo.

Em seguida falaram do momento de reconstrução nacional que viviam da sua vontade de participar e das dificuldades que enfrentavam. Por fim, o mais velho, “entre os homens grandes”, falou por último “numa linguagem “de esperança” (FREIRE, 2011a, p. 95). Surpreendemos nas palavras de Freire o esforço de uma hermenêutica no processo de interação com os sujeitos durante o trabalho de campo para o educador dialógico. Freire transcreve as palavras do mais velho e último a falar:

O PAIGC, disse ele, mais ou menos nos seus vinte anos, é ainda uma criança. Vinte anos são muita coisa na vida de uma pessoa, mas não na vida de um povo e de seu Partido. O bom do PAIGC é que aprendeu a andar com o povo. Eu não verei as coisas grandes que o povo da Guiné-Bissau, o PAIGC e o Governo vão fazer. Mas os filhos de nossos verão. Eles viverão um tempo diferente. Mas, para isso, é preciso que eu, que não vou ver esse tempo, e todos nós façamos agora o que agora precisa de ser feito (FREIRE, 2011a, p. 95).

Este contato com os camponeses levanta algumas hipótese metodológicas sobre o movimento do educador dialógico como o desencadeamento da reflexão, o esforço de descrição, interpretação e compreensão: temos que no processo de compreensão há empatia. A seguir falamos da alfabetização de uma aldeia que foi alvo de uma experiência piloto em Guiné-Bissau durante o período em que o IDAC prestou seu apoio naquele país africano.