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A escolha dos recursos expressivos pelas crianças

7 A ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA

7.4 A escolha dos recursos expressivos pelas crianças

Tomando os seis meses de realização das oficinas, observamos a preferência quase absoluta das crianças pelos materiais convencionais: papel, tinta, giz-de-cera e lápis.

Produção de Daniel: tinta, papel (oficina 1) Produção de Tatiana: tinta, papel (oficina 3)

Produção de José: tinta, papel, lápis, canetinha Produção de Karina: canetinha, papel (oficina 8) (oficina 6)

Em algumas oficinas, porém, notamos que estes mesmos materiais fugiram ao seu uso convencional. Muitas vezes a tinta, o lápis e a canetinha foram usados como instrumentos para a agressão:

Karina se pintou. Pintou seu rosto com canetinha. Karina perguntou-me se a tinta ia sair. Eu disse que a tinta da canetinha saía ou com álcool ou com bastante água e sabão. Karina pintou seu rosto, seus olhos, sua boca, seus dentes. (oficina 12)

Karina pintou seus braços com a tinta preta. Parecia que algo não estava bem. Karina estava agitada e tomava atitudes mais agressivas, que me lembravam o início de nossos encontros: marcar-se com tinta (oficina 11)

Vinicius pintava seus braços em um canto da sala. Já havia chorado por ter “apanhado” de Karina (que passou tinta em seu cabelo, correu atrás dele e chegou a segurá-lo com força). Tatiana começou a carimbar suas mãos na parede. (oficina 4)

Vinicius não ficou o tempo todo somente em seu trabalho, passou por entre as crianças. Foi com seu pincel e tentou interferir no trabalho do outro (oficina 3)

Vinicius abriu alguns potes de tinta, mas não se deteve em produzir algo seu. Passava pelas outras crianças e dava uma pincelada no trabalho do outro. (oficina 4)

Tatiana e Vinicius começaram uma invasão, marcando com a ponta do lápis os seus lugares na casa que Karina estava desenhando, a sua casa. Karina se sentiu invadida. Retirei o desenho e disse para Vinicius e Tatiana não mexerem no desenho de Karina sem sua autorização. Após um tempinho, devolvi o desenho a Karina, que continuou seu trabalho. No momento em que eu estava cuidando de Tatiana, retirando-a da porta, Vinicius bateu com a cadeira em Karina, que revidou atingindo Vinicius com o lápis no rosto. (oficina 8)

Outras vezes, o encantamento pela descoberta das possibilidades da matéria entrava em cena e o prazer proporcionado por essa experiência absorvia toda a atenção e o movimento da criança:

Por um bom tempo, Vinicius se dedicou a colocar o pincel com tinta na água. Utilizou vários copinhos de água, principalmente de água limpa. Ele me perguntou se ia virar. Como eu não tinha entendido, pedi-lhe para

explicar-se. Vinicius só falava em virar. Pedi para que ele me mostrasse o que aquilo significava. Ele molhou o pincel com tinta na água e me disse que virou. Fui entendendo que a brincadeira era a de transformar a cor da água na cor da tinta que estava no pincel. Peguei um pincel, molhei na tinta, passei numa folha e disse que tinha virado – a cor que estava no papel era a mesma do meu pincel e a mesma do pote de tinta. Vinicius concordou comigo e continuou sua brincadeira com a água. (oficina 2)

A preferência por tinta, lápis, giz-de-cera e papel, nos faz pensar que estes são os materiais mais conhecidos, comuns e presentes no universo dessas crianças. Na instituição onde estas crianças estão abrigadas é comum o acesso a estes materiais. Na escola, a criança também está habituada a utilizar tais recursos.

De outro lado, a argila foi um recurso bem pouco utilizado. Este material foi somente experimentado pelas crianças quando, em uma das oficinas, oferecêmo-lo a elas como um outro recurso a ser explorado. Fora esta ocasião, tivemos duas crianças que posteriormente usaram a argila como suporte de suas produções.

Produção de José: as “carinhas”(oficina 17) Produção de Daniel: os bonecos (oficina 17)

Produção de Daniel: papel, tinta, argila (oficina 23)

Diferentemente dos recursos descritos anteriormente, o acesso à argila não é tão habitual nos ambientes onde as crianças circulam. Pensamos que o pouco contato com este recurso reforça a idéia de que a criança se distancia cada vez mais do ambiente que possibilita experiências sensoriais (LOWENFELD & BRITTAIN, 1977). O mundo natural, o contato com a terra, com a água, com as coisas produzidas pela natureza estão se distanciando da vivência das crianças na contemporaneidade, principalmente as urbanas. Sujar-se com argila causa na criança repugnância e aflição, enquanto, de outro lado, cada vez mais cedo estas mesmas crianças aprendem a manejar um lápis produzido e fabricado pelo homem. Afastadas da matéria natural, proveniente daquilo que ainda não foi fabricado pelo homem, as crianças desde muito cedo vinculam suas experiências sensoriais àquilo que é produzido, fabricado e, portanto, consumível. Distanciadas da realidade natural, aprendem que aquilo que se sente está naquilo que se compra, tornando a exploração das possibilidades das coisas que estão no mundo como algo pouco interessante e sem muito sentido.

Outro ponto interessante a ser destacado foi o interesse de algumas crianças pela colagem, técnica apresentada por nós em uma das oficinas. A maioria das crianças se utilizou em algum momento desta técnica como recurso para a sua expressão, mas observamos, principalmente em relação a Vinicius e Tatiana, certa preferência por esta possibilidade:

Colagem de Vinicius (oficina 23) Colagem de Tatiana: coração (oficina 22)

Colagem de Vinicius (oficina 22) Colagem de Tatiana (oficina 21)

Por que a colagem foi mais aceita que a argila? Não podemos afirmar ao certo, mas podemos fazer um exercício e tentar algumas hipóteses. A colagem, diferentemente da argila, é também uma técnica mais próxima do cotidiano dessas crianças, elas a aprendem na escola. Por outro lado, nos questionamos: por que a escolha por colar e não fazer um desenho, por exemplo? O significante colar aproxima-se de juntar, unir, grudar. Colar também pode ser tido como objeto de adorno utilizado principalmente por mulheres: Mães? Talvez... Somente o tempo e as crianças seriam capazes de nos fornecer as pistas para tais inquietações. O que a escolha de um recurso expressivo diz a nosso respeito? Pensamos que muito ou “tudo”, mas o aprofundamento desta questão julgamos conveniente deixar para um outro trabalho. Para nós, que passamos pela experiência com as oficinas, a escolha do recurso expressivo atende a solicitações inconscientes do indivíduo. Um lápis deixa seu uso convencional para tornar-se

instrumento de ataque ou defesa. A cola, quando, em repetidas ocasiões, fez parte da preferência daquele sujeito, nos aponta para uma necessidade, talvez de recordar e repetir, repetir, repetir, para mais tarde elaborar.