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3 EXPRESSA-TE, INTERAGE-TE, TRANSFORMA-TE

3.2 A linguagem enquanto ato

A corrente proveniente da sóciolingüística radicaliza o conceito de linguagem e propõe que esta é produtora de relações sociais. Orlandi (1987, p. 150), em seu livro A linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso, afirma que a “[...] apropriação da linguagem é social.”. O sujeito se constitui na contradição entre suas necessidades individuais e o social, na bipolaridade entre o eu e o outro, na interação.

Dentro desta perspectiva, a linguagem é tida como trabalho necessário, não arbitrário e natural. Ela é resultado da interação entre homem e realidade natural e social, portanto, produção social. Como mediadora entre homem e realidade, a linguagem promove a ação que transforma a realidade e a relação entre os homens. Sem dúvida, não podemos olhar para a linguagem sem levar em consideração os processos histórico-sociais que a produziram.

Orlandi (1987, p. 26) privilegia a análise do discurso por ser esta a instância que “[...] explicita o modo de existência da linguagem que é social.”. O discurso nessa vertente é entendido não como uma mera transmissão de dados, mas como “[...] efeito de sentido entre os interlocutores [...]” (ORLANDI, 1987, p. 26); daí que os interlocutores, a situação, o contexto sócio-histórico, as condições de sua produção compõem o sentido da seqüência verbal que foi produzida. Outro ponto importante é que o discurso deve ser compreendido como um estado de processo discursivo, pois sempre parte de um outro discurso que se redireciona a outro e este processo é resultante de discursos institucionalizados. Assim, o sujeito que produz um discurso também é reproduzido por ele.

Izidoro Blikstein (1983) é outro autor que compartilha das mesmas idéias, dado que compreende a linguagem como produção social. Para ele não há linguagem sem práxis4. A percepção depende de uma prática social que fabrica o referente. Em sua discussão, enfatiza a preponderância do referente como mediador da relação entre significante e significado. A práxis determina a percepção/cognição do sujeito e, a partir dela, se constituirá o referente. O referente é o lugar de onde parte a linguagem.

Blikstein (1983) se utiliza de um exemplo de Shaff (1974, apud BLIKSTEIN, 1983, p. 57) para representar sua formulação sobre a constituição do referente. Neste exemplo, Shaff (1974, apud BLIKSTEIN, 1983) lembra que os esquimós reconhecem trinta espécies de neve, diferentemente de nós, que geralmente percebemos a neve como sempre a mesma em todo

4 Termo referido no texto em seu sentido marxista, ou, segundo o autor: “conjunto de atividades humanas que

engendram não só as condições de produção, mas, de um modo geral, as condições de existência de uma sociedade.” (BLIKSTEIN, 1983, p. 54).

lugar. Por uma questão de sobrevivência, estes sujeitos “[...] não podem perceber a realidade de outro modo.” (BLIKSTEIN, 1983, p. 57). Nesse sentido, Blikstein (1983, p. 58, grifo do autor) afirma que a “[...] percepção e a linguagem é que estariam indissoluvelmente ligadas à práxis social, que é indefectível e vital para a existência de qualquer comunidade.”.

A partir da práxis, o homem desenvolve mecanismos de “diferenciação e identificação” (BLIKSTEIN, 1983, p. 60) para lidar com a realidade que lhe é vital. Através desses mecanismos, passa a articular traços que discriminam, reconhecem e selecionam os estímulos como cores, formas, funções, espaços e tempos provenientes do ambiente. Sendo discriminatórios, tais traços adquirem valor positivo ou negativo dentro de uma práxis e, desse modo, se transformam em traços ideológicos. A partir desse conceito, podemos pensar no valor que os espaços fechados constituíram-se para nós. Entre a proteção e a prisão, os lugares fechados circulam entre valores positivos ou pejorativos. Podemos nos questionar sobre a discriminação que se faz das Casas Abrigos, que se propõem a abrigar crianças em situação de risco, mas que ao mesmo tempo se constituem em lugares fechados, de isolamento e aprisionamento.

Diante dos padrões discriminatórios e seletivos constitutivos de nossa percepção, Blikstein (1983) ressalta o caráter estereotipado de nossa percepção. É através dos corredores isotópicos, ou seja, dos traços ideológicos construídos sócio-historicamente que vemos uma realidade que é, ao mesmo tempo, fabricada e fragmentada. Fazendo uso dos “óculos sociais” (BLIKSTEIN, 1983, p. 61) produzimos o referente, o lugar de onde dizemos e para quem dizemos. O autor se refere ao caráter fascista da linguagem, quando enfatiza o mergulho de nossa percepção/cognição nas estereotipias, fazendo-nos tomar uma realidade como algo programado e naturalizado.

Orlandi (1987, p. 158) se aproxima de Blikstein (1983) quando trata dos traços ideológicos:

Do ponto de vista discursivo, as palavras, os textos, são partes de formações discursivas que, por sua vez, são partes de formação ideológica. Como as formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada, assim que se considera o discurso como fenômeno social.

Blikstein (1983) também se refere a Schaff (1974, apud BLIKSTEIN, 1983) para afirmar que a linguagem não é somente um lugar de reprodução da práxis, mas pode se constituir em uma atitude dialética e criativa. A linguagem criativa poderá romper com os estereótipos na medida em que houver um desarranjo na práxis. Segundo o autor, “[...] a linguagem deixa de ser fascista quando, subvertendo a si mesma, subverte a percepção / cognição.” (BLIKSTEIN, 1983, p. 84-85). Sugere ainda que é por meio da função poética que podemos subverter os óculos sociais.

Compartilhando das mesmas idéias, Orlandi (1987) cria uma tipologia do discurso, privilegiando o estudo da interação e da polissemia entre o locutor e o ouvinte e as vicissitudes deste encontro. Considera para a formação da tipologia as condições de produção do discurso: a interação entre os sujeitos (se o locutor leva em consideração o interlocutor dentro de uma certa perspectiva, se não o leva em conta ou ainda se a relação entre eles pode ser qualquer uma das duas), a reversibilidade ou a dinâmica da interlocução (a flexibilidade ou a rigidez na troca de papéis entre o locutor e o ouvinte) e a polissemia (multiplicidade de sentidos) ou a relação com o objeto do discurso.

Com base nesses critérios, a autora propõe três tipos fundamentais de discurso5: o lúdico, o polêmico e o autoritário.

No discurso lúdico, o objeto se mantém enquanto coisa e os sujeitos se expõem a ele. A troca de papéis circula, portanto, com maior grau de reversibilidade, resultando na polissemia aberta e em alta escala. O exemplo deste discurso é a brincadeira, o jogo onde as

5 Discurso, segundo Orlandi (1987, p. 157), é tido como linguagem em interação ou ainda “[...] aquele em que se

considera que a relação estabelecida pelos interlocutores, assim como o contexto, são constitutivos da significação de que se diz.”

regras, também flexíveis e mutáveis, são constituídas pelos próprios membros que participam da situação.

No discurso polêmico, o objeto do discurso está presente de forma especificamente dirigida pelos participantes, sendo que a reversibilidade e a polissemia estão mais controladas. No discurso autoritário, a troca de papéis não existe, o objeto do discurso está oculto pelo dizer e a polissemia dá lugar à paráfrase, ou seja, à permanência de um sentido único.

Tendo em vista a sociedade contemporânea, marcada pelo tecnicismo e pelo consumo, podemos pensar na predominância dos discursos polêmicos e autoritários, sendo que o discurso lúdico ficaria à margem daquilo que atualmente é tido como eficaz e produtivo. Orlandi (1987) afirma que não há espaço para o discurso lúdico na sociedade atual, pois ele sempre é marca de ruptura.

Diante das considerações dos autores citados, podemos inferir que a relação entre autor e obra também está determinada por processos histórico-sociais. O espelho, segundo Pain & Jarreau (2001), está a princípio comprometido, restrito por poder refletir a interação entre sujeito e realidade fragmentada pelos estereótipos, como proposto por Blikstein (1983). Orlandi (1987) e Blikstein (1983) propõem a ruptura desse aprisionamento da linguagem e, portanto, da constituição do sujeito, através da própria práxis diferenciada e propiciada pela tipologia do discurso lúdico, objeto desejável onde as brincadeiras e os jogos são possíveis. Brincar de fazer arte ou ser “arteiro” nos coloca no campo da experimentação do diferente. Pensamos que o reflexo do espelho seja a alteridade quando a proposta se finca em fazer o diferente. Fazer diferente? Nosso começo estaria sendo guiado pelas palavras de Herrmann (1999, p. 136): “[...] deixar surgir, para tomar em consideração [...]” .