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Procedimento e pressupostos metodológicos

3 EXPRESSA-TE, INTERAGE-TE, TRANSFORMA-TE

6.2 Procedimento e pressupostos metodológicos

Inicialmente entramos em contato com a coordenação/psicóloga para ter acesso à referida Casa Abrigo. Expusemos nosso interesse em propor oficinas de expressão naquele espaço, com vistas a realizar uma pesquisa. A coordenação não aprovou de imediato a proposta, mas convidou-nos a prestar atendimento psicoterápico a crianças vítimas de violência física doméstica que necessitavam desse acompanhamento. Aceitamos o convite, julgando que este seria um bom começo. Apesar de termos trabalhado anteriormente com oficinas em uma instituição semelhante, tratava-se de um outro começo, o início de um vínculo, um conhecimento mútuo. O atendimento se caracterizava como psicoterapia individual dentro de um modelo convencional, ou seja, com sala, horários fixados, e orientado pelos pressupostos da teoria psicanalítica. Anteriormente a este trabalho, já questionávamos a amplitude e o destino do modelo clínico tradicional de atendimento em instituição. Pensamos que o encaminhamento da criança para a psicoterapia individual focaliza nela o estatuto de saúde e doença e exime da instituição a responsabilidade de colaboração e produção de relações causadoras de sofrimento psíquico. Além disso, acreditamos que a psicoterapia individual tem seu espaço e sua especificidade, mas não deve servir como tábua de salvação para crianças e instituição. A crítica a esses aspectos orientou nosso projeto, que propôs as oficinas como um outro modelo de trabalho com crianças a ser analisado.

Depois de um ano realizando atendimento psicoterápico, reapresentamos nosso projeto à coordenadora e à presidente da Casa Abrigo, numa atitude ainda mais consciente de que a análise e a avaliação de nossa proposta se faziam necessárias. O projeto foi aceito e, a partir de então, começamos a trabalhar no sentido de construir o espaço das oficinas de expressão na instituição.

Com a intenção de colocar em prática na Casa Abrigo os fundamentos teóricos em relação às oficinas, como proposto no capítulo anterior, requisitamos à instituição um espaço físico fixo que pudesse ser de acesso restrito ao grupo determinado de crianças, durante os horários das oficinas. Um espaço físico comum, mas que pudesse tornar-se acolhedor através da vivência e do relacionamento entre um oficineiro8 e as crianças. As oficinas de recursos expressivos ou oficinas de pintura, como foi posteriormente chamada pelas crianças, constituiu-se em um ponto de encontro com as cores, os movimentos, as alegrias, as marcas, as violências, a dor, a gratidão, e sempre flexível às situações novas proporcionadas e guiadas pela própria experiência. Os encontros ocorreram inicialmente na sala de TV – espaço muito concorrido por ser a sala onde filmes podiam ser assistidos – e, posteriormente, em uma das diversas alas9 da instituição.

Por não fazer parte de nossos objetivos e pela situação em que se encontravam as crianças, os pais não foram contatados. No grupo composto para participar das oficinas de expressão, três crianças estavam aguardando adoção e, portanto, não recebiam visitas dos progenitores, e as outras duas tinham destino ainda incerto, pois esperavam decisão da Vara da Infância e da Juventude. Estas últimas recebiam visitas de familiares.

8 Trata-se daquele que está junto às crianças durante as oficinas. O papel do oficineiro também foi se construindo

ao longo deste trabalho e será discutido posteriormente, com base no material coletado e nos referenciais teóricos específicos.

9 A Casa Abrigo era composta de 11 alas divididas entre masculinas e femininas. Cada ala continha 24 leitos

distribuídos por quartos coletivos com treliches e com banheiros comuns. Em cada ala havia uma grande sala onde normalmente as crianças brincavam ou assistiam televisão.

Preocupados em não limitar a experiência advinda do próprio exercício das oficinas, conduzimo-las de acordo com os seguintes princípios:

• Presença do oficineiro nos dias, horários e local previamente combinados para acolhimento das crianças no grupo;

• Respeito à livre expressão da criança;

• Valorização do diálogo entre o oficineiro e o participante;

• Criação de um ambiente que se apresentasse seguro e acolhedor e que favorecesse uma atmosfera de confiança;

• Apresentação de materiais que favorecessem experiências sensoriais, objetivando a ação do participante sobre a matéria, a criação e a solução de problemas;

• Disponibilidade do oficineiro para ajudar na resolução de problemas, quando solicitado pela criança, fornecendo idéias ou instruções básicas sobre a manipulação dos materiais;

• Acolhimento da expressividade e, conseqüentemente, a exclusão da preocupação com resultados e soluções previamente determinados.

Quanto a esse último princípio, cabe enfatizar que, em nossa investigação, a ênfase foi colocada no processo e não no produto propriamente dito. Apesar de utilizarmos o produto final para discutir o projeto, levamos em consideração os determinantes da produção do acontecimento. Não nos interessava a avaliação do produto acabado, distinto e isolado. Pelo contrário, procuramos captar alterações, acréscimos e repetições apresentadas ao longo do trajeto da criança nas oficinas, possibilitando uma visão mais ampliada do processo de produção dos conhecimentos e a sua relação com o espaço criado. Buscamos a relação recíproca entre o ambiente e a polissemia, esta última tida como potencializadora na produção de conhecimento e, conseqüentemente, na construção de imagens e de sentidos.

Cabe destacar ainda que os princípios acima delimitados estiveram sempre atrelados a alguns pressupostos. Em primeiro lugar, pensamos que o conhecimento não é definido como algo acabado, mas produzido na relação, entre pesquisador e objeto do conhecimento. Em segundo, acreditamos que não é a teoria que produz o sujeito, mas sim o seu inverso, a ação do sujeito no processo resultando em conhecimento e, portanto, em teoria. E, finalmente, se o conhecimento não é acabado, não há produto finalizado, há sim produção e sistematização de sentidos advindos da experiência de conhecimento e que estão prontos para se tornarem fonte de investigação novamente para a produção de outros sentidos.

Para o desenvolvimento desse estudo nos valemos também de pressupostos do método psicanalítico para direcionar nossa experiência.

De acordo com Herrmann (2001), após a publicação da Interpretação dos Sonhos, de Freud, a Psicanálise passou a ser reduzida, de forma cada vez mais intensa, a uma ciência de consultório, sustentada por teorias confundidas, muitas vezes, com o próprio método psicanalítico. A difusão e a apropriação de conceitos psicanalíticos como uso do divã, duração das sessões, manifestações do analista em relação ao cliente, dentre outros, tornaram os mesmos conceitos na própria Psicanálise10, processo cujo resultado foi a divisão em diversas psicanálises, cada qual com seus pressupostos e fundamentos teóricos.

Por volta de 1970, Fabio Herrmann, com a Teoria dos Campos, suscitou um importante debate sobre o método de investigação da Psicanálise. Segundo este autor, o método não poderia ser reduzido ao consultório ou a determinado tipo de psicoterapia, pois envolvia a investigação de algo mais abrangente: a psique presente em tudo que o homem faz, produz e cria. Por psique compreendemos as regras inconscientes que constituem e fazem constituir o Homem e a Cultura. Para Herrmann (2001, p. 149),

10 Usaremos a grafia do termo Psicanálise/ psicanálise conforme utilizado por Herrmann (1999, p.24), ou seja,

Psicanálise com letra inicial maiúscula se referindo ao método e à ciência, e psicanálise com letra inicial minúscula nomeando a terapia: “[...] disto que o analista faz em seu consultório, ou de qualquer psicanálise particular, como a psicanálise de um fenômeno cultural, por exemplo.”

No quotidiano, o paciente é construído, a sua revelia, pelas regras que lhe organizam as emoções. São regras culturais, em duplo sentido: provêm da cultura e criam a cultura; não há nisso qualquer contradição, pois a cultura faz e é feita num mesmo movimento, renovado a cada tempo humano. Seu mundo é real, como o edifício; o paciente é real, em sua vida. A construção do desejo, porém, como os andaimes, não aparece: o paciente ignora-se construído pelo desejo, porque este integrou-se no mundo e no sujeito do mundo, constituindo uma série homóloga que não permite destaque, que não o põe em relevo, os andaimes estão dos dois lados da percepção.

Dessa forma, a psique, os andaimes do desejo11, está impressa em toda produção que é humana. É nela que a estampa, o desenho da trama do desejo ou as regras inconscientes podem ser investigadas, caso se possua a ferramenta mais adequada. Para isto, dispomos de método próprio, um caminho capaz de nos conduzir àquilo que comumente está abafado pela rotina, pelo revestimento do edifício. Através da utilização do método podemos fazer uma aproximação do desenho do desejo humano contido nas obras literárias, nos relatos históricos, nos noticiários, ou seja, em tudo aquilo que é produto e produz o homem-cultura.

Para os fins desse trabalho, a conceituação da inter-relação recíproca entre produção humana e desejo é fundamental pois permite que utilizemos o método psicanalítico fora do contexto tradicional e convencional, ou seja, do consultório. Nosso objetivo é que, numa situação de oficina, dentro de uma instituição, possamos abrir espaço para a visibilidade do desenho da trama que faz constituir o tecido do desejo de nosso grupo. Para fazer expressar a trama, utilizaremos uma técnica específica, pois somente esta nos “[...] permite usar o método com maior eficácia.” (HERRMANN, 2001, p. 123).

Nossa técnica esteve fundamentada principalmente em três postulados: deixar que surja, transferência e tomar em consideração.

Em nossos encontros, priorizamos os assuntos, as idéias, as produções que partiam das crianças. Deixávamos que surgissem os conteúdos de nossas conversas e produções. A atitude do oficineiro mediante o novo que surgia se pautava em uma “passividade receptiva”

11 Segundo Herrmann (1999, p. 35) desejo é “[...] uma espécie de matriz que permite (e obriga) alguém possuir

certo repertório de emoções e não outro qualquer. Interpretando, o analista vai compondo, junto com o paciente, o esboço lento do desenho de seu desejo.”

(HERRMANN, 2001, p. 174) que incluía acolher os conteúdos e as manifestações que se dirigiam a ele e, para isto, não há regras objetivas. Concordamos com Herrmann (2001, p. 176) quando afirma que a espontaneidade é a “atitude mais próxima de uma efetiva neutralidade.” Guiado por esta postura, que vale mais do que uma regra, e atento à transferência, o grupo mostrará ao oficineiro o primeiro campo12 limite, ou seja, “[...] o limite temático e de meios interpretativos e expressivos que cada análise faculta.” (HERRMANN, 2001, p. 177). Por meio da transferência13 o oficineiro poderá realizar uma leitura das

representações atribuídas a ele e, portanto, tomará em consideração os conteúdos trazidos pelas crianças que disserem a respeito dessa relação. Ao realizar esta leitura, o oficineiro poderá interpretar, ou melhor, provocar rupturas de campo para que a expressão do inconsciente, como em uma radiografia, ganhe luminosidade e destaque. O destino desta ocorrência é a “cura”. Para Herrmann (2001, p. 274), “[...] curar do desejo é cuidar dele/.../ Bem curado, o queijo atinge o ponto de equilíbrio, picante e perfumado na medida certa.” e, portanto, a “cura” está distante do sentido patológico do termo trauma. Para nós, trauma está ligado à imobilidade, a “[...]um nó do desejo que obriga a repetir.” (HERRMANN, 2001, p. 23). Nosso objetivo no cuidado com o desejo é sua mobilidade pois concordamos com Herrmann (2001, p. 277) quando afirma que, com a ruptura de campo e, conseqüentemente, com a expressão do inconsciente, “[...] vários possíveis são ensaiados, alguns dos quais podem mostrar-se eficazes e pertinentes, enriquecendo a vida comum. É o trânsito pelos possíveis que provoca mudanças.”

Vale destacar que entendemos a ruptura de campo como parte do processo de “cura” que foge do domínio do oficineiro. O papel do oficineiro em nossa concepção é aquele que

12 Por campo entendemos o “[...] conjunto de determinações inaparentes que dotam de sentido qualquer relação

humana, da qual a comunicação verbal é tão-só o paradigma.” (HERRMANN, 2001, p. 27).

13 A transferência é entendida como um princípio ordenador de uma relação. Em nosso caso é aquela que regula

a relação entre as crianças e o oficineiro. Não que não esteja presente entre todos no grupo, mas é o oficineiro quem deverá estar atento ao direcionamento da relação, pois será através dele e dos outros que estarão circulando as atribuições/fantasias das crianças. É através dessas atribuições que a oficina será ordenada. Segundo Herrmann (2001, p. 110), “Transferência é o nome que se dá/.../ ao sentido que toma as representações no processo analítico, por força do Campo Psicanalítico e da escuta que este inspira ao terapeuta.”

buscará favorecer dentro do grupo a expressão do inconsciente, pois este é o caminho para se cuidar do desejo. Como isto se realiza? Através da livre expressão. Quando o oficineiro perceber que um movimento expressivo se repete porque pode estar aprisionado em algum nó da trama, ele poderá fazer uso da interpretação14 para produzir ruptura no campo aprisionado e poder fazer circular outras expressões inconscientes. A interpretação do oficineiro deverá se constituir como toques emocionais através da fala ou de pequenas ações que rompam as representações cristalizadas e dêem mobilidade à expressão inconsciente. Devemos lembrar que em nossa oficina de expressão não caberá perguntar sobre a vida atual ou passada da criança, mas deixá-las falar pela boca ou pelas mãos, através dos materiais.

Outro ponto a se observar é que este estudo esteve sempre atrelado à permanência do participante na Casa Abrigo. Neste sentido, trabalhamos com a possibilidade da saída da criança da instituição, fosse pela via da adoção ou pelo regresso à vida familiar. Desse modo, a análise de dados será feita a partir do material que foi possível apreender.