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3.1 A ESCULTURA E SUA PRESENÇA SIMBÓLICA NA CIDADE

Fig. 25: Piazza Navona, L. Bernini, Roma (Fonte: Guia Arte em Itália, ENIT, 1989)

Inserida na modalidade artística conhecida como artes “visuais” ou artes “plásticas”1, o termo escultura é uma generalização que compreende hoje incontáveis exemplos de manifestações expressivas. Atualmente, considera-se a escultura como um dos inúmeros meios possíveis para a concretização do trabalho do artista, cujas possibilidades ampliaram-se grandemente nas últimas décadas. Trata-se de um dos meios expressivos2 mais antigos, cujas primeiras manifestações datam do período Paleolítico. Foram encontradas, além de pequenas esculturas, várias tentativas de relevo nas cavernas pré-históricas. Complementando o efeito das pinturas, buscava-se evidenciar também o volume das figuras escavando nas superfícies de pedra. Observa-se, assim, uma origem simultânea da pintura, das primeiras esculturas em pedra ou osso e dos primeiros relevos, também inseridos historicamente na categoria que engloba o meio expressivo “escultura”.

1 O termo “artes visuais” refere-se, de uma forma mais abrangente, a todos os meios que trabalham

prioritariamente o domínio do visual. O antigo termo “artes plásticas” já não se enquadrava para definir algumas novas linguagens, principalmente as que lidam com os meios tecnológicos. O atributo “plástico” pressupõe, a princípio, um trabalho manual, ou seja, que lida com a transformação de materiais concretos. Assim, a videoarte, por exemplo, é entendida apenas como arte visual, enquanto que a escultura é arte visual, mas também é plástica. Por convenção, refere-se atualmente como artes visuais as linguagens que trabalham com meios tecnológicos e passíveis de reprodução.

2 “Meio é o veículo pelo qual a arte se concretiza. Exemplos de meios tradicionais são a pintura, o desenho, a

Na origem desta denominação, parecia existir certa distinção entre o que é esculpido (utilizando-se material de certa dureza e desbastando-o com um cinzel ou instrumento similar) do que é obtido por modelagem (como com a argila). Acredita-se terem sido os gregos do período arcaico que fundiram os limites das duas técnicas utilizando a argila e a cera para a produção de esculturas em bronze. Foram os responsáveis, assim, por uma terceira técnica escultórica, obtida agora por meio da fundição do metal inserido em espécies de fôrmas modeladas, deixando-se o trabalho do cinzel para o acabamento.

Ao longo da história, sobretudo a partir do século XX, a linguagem escultórica foi, progressivamente, estendendo seus limites de experimentação e se afastando dos seus materiais tradicionais (pedra, mármore, metal, argila, madeira...), abarcando qualquer objeto artístico que suplante os limites da bidimensionalidade. Na verdade, nem a própria escultura precisa ser tridimensional, não lhe é necessária grande “espessura”. A sua essência consiste em algo que possa ser observado circulando-se em volta dele, algo que cria um espaço. Como coloca Brissac Peixoto:

“A escultura exige ser vista em movimento, por alguém que percorra o espaço criado por ela. (...) Dialética de andar e olhar que constitui a experiência escultórica.” (PEIXOTO, 2004 179)

Esta colocação nos lembra o célebre ensaio de Zevi3 sobre as quatro (ou mais) dimensões da arquitetura: altura, largura, profundidade e tempo. Esta dimensão “tempo” a que ele se refere significa que também é necessário andar e olhar para se completar a experiência arquitetônica. Pois a arquitetura é eminentemente escultórica. O que, então, as diferencia? Segundo Bassani, um dos fatores é a alta densidade que a função nela assume:

“Na literatura de história da arte existe distinção entre as diversas artes, não entre arte e arquitetura. Porém, quando associada à construção das cidades, (...) sua condição de abrigo a associa definitivamente à sobrevivência física do homem, algo completamente distante das outras artes.” (BASSANI, 2002,

151)

Na escultura, não se observa esta função intrínseca de sobrevivência. Ainda que se perceba sua função simbólica e estética, esta linguagem não está associada às necessidades primais do homem:

“ O arquiteto trabalha com forma e volume, à semelhança do escultor, e, tal como o pintor, trabalha com cor. Mas, entre as três artes, a sua é a única funcional. Resolve problemas práticos. Cria ferramentas ou implementos para seres humanos, e a utilidade desempenha um papel decisivo no julgamento da arquitetura. (...) Em outras palavras, a diferença entre a escultura e a arquitetura não está em que a primeira se preocupa com formas

mais orgânicas e a segunda com formas mais abstratas. Até a mais abstrata peça de escultura, limitada a formas puramente geométricas, não se converte em arquitetura. Falta-lhe um fator decisivo: a utilidade.” (RASMUSSEN,

1998, 8)

No entanto, a escultura foi uma das primeiras manifestações expressivas do homem, seus primeiros exemplares conhecidos datando de cerca de 30 000 a.C4. Ou seja, antes do surgimento da própria arquitetura. Na verdade, as primeiras manifestações arquitetônicas (menires, dolmens...) são muito próximas da escultura monumental, o que mostra uma origem comum.

Um outro dado que se evidencia muito na escultura é que, dependendo de sua escala, esta assume um caráter eminentemente público, assim como a arquitetura. É inegável que desde a Antiguidade a escultura se faz presente nos espaços da cidade. Mas este meio já teve seus momentos de subordinação à arquitetura, principalmente na Idade Média, onde esta se encontrava colada ao suporte arquitetônico, havendo-se perdido a possibilidade do circundá-la. Ainda mais crítico para a escultura foi o movimento iconoclástico no Império Romano do Oriente, que quase baniu para sempre este meio por apontá-lo como herético. Pois a escultura parece ter sido desde suas origens associada a uma função mítico/religiosa que suplanta a noção (bem mais tardia) de “obra de arte” e produz objetos de culto, de adoração, ídolos. Além disso, a escultura, talvez desde os egípcios, ultrapassou esta função mítico/ religiosa para servir como meio de exaltação pública dos detentores do poder através da execução de colossos, estátuas eqüestres5 e bustos. Reis, generais, conquistadores, líderes religiosos: todos convertidos a objetos de adoração assim como deuses, virando ídolos esculpidos. Estas “funções” citadas persistem até hoje e podem ser observadas em nossas cidades.

Na cidade contemporânea, a escultura é um produto cultural imediatamente reconhecível como sendo objeto de arte. Exposto ao público, ela se eleva a um status diferente dos demais objetos no contexto do espaço urbano, pois ela se evidencia, como colocado anteriormente, pela sua presença eminentemente simbólica e não pelo seu uso prático no quotidiano. Por essa razão, a escultura parece se prestar melhor a representar aspectos do imaginário social, particularmente os seus mitos, como observado em relação à feitura de imagens. Assim, no caso mais específico da escultura figurativa, algumas vezes parece haver o acúmulo de funções tais como “objeto de culto” e “objeto de arte”.

4 Período Paleolítico, conforme comentado anteriormente.

5 A primeira estátua eqüestre de que se tem notícia é a de Júlio César, erigida no Fórum Júlio. Entretanto, a

primeira escultura “sobrevivente” deste tipo de monumento é a do imperador romano Marco Aurélio, em Roma (fonte: JANSON, 2001, 268).

Talvez o surgimento da escultura dita “abstrata”, no séc. XX, tenha evidenciado de maneira mais radical o aspecto eminentemente estético e simbólico da escultura. Mesmo que toda escultura seja uma representação do imaginário social, percebe-se que, quando o cidadão não associa a imagem representada a algo tangível ou decodificável, existe um estranhamento mais declarado. Sem poder nomeá-la (por exemplo, estátua de Padre Cícero ou Marechal Deodoro), o objeto escultórico apresenta maior possibilidade de estranhamento e de descoberta, mas nem por isso necessariamente de maior deleite estético.

Figs. 26 e 27: Esculturas abstratas de Miró e de Calder em La Défense, Paris (Fonte: Bassani, 2003)

A escultura não é apenas monumento escultórico, pois este termo parece evocar sempre algo de escala desmedida e de caráter perene, quase sempre associado a um fato histórico ou personalidade (permite uma leitura decodificável). A escultura pode ser monumental ou uma intervenção mínima na paisagem, ou até mesmo efêmera. A relação das pessoas com a escultura no espaço público vai depender de inúmeros fatores, dentre os quais a linguagem, a escala e o modo de implantação nos parece ser os mais importantes. São esses elementos que vão definir sua presença matérica na cidade, a princípio o dado que a privilegia em relação aos outros meios expressivos:

“Considerando o contato corporal físico e matérico, ao mesmo tempo

sincrônico e histórico e ao mesmo tempo simbólico,nenhuma modalidade

artística interage de maneira mais sólida e material com o ambiente urbano do que a escultura.” (BASSANI, 2002,147)

Reforça-se que desde a antiguidade a escultura se faz presente nos espaços públicos. Comparando-a com a pintura, é a sua característica destacada de tridimensionalidade que aporta a sua escolha como presença dentro da cidade. Entretanto, não se quer aqui afirmar que a escultura é único meio expressivo adequado ao espaço público. Existem outros exemplos de arte urbana que se valem exclusivamente da bidimensionalidade e que se mostram perfeitamente adequados na interação arte/ público/ cidade.

presentes nos espaços públicos de Maceió. As considerações acima desenvolvidas objetivaram ambientar o leitor acerca da inserção desse meio expressivo na história em sua relação com o espaço público. Desta forma, pode-se compreender as razões pelas quais a escultura pública é a modalidade de arte urbana mais presente nos espaços de Maceió.