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5.1.2 – GRAFITES E PICHAÇÕES

5.1 PINTURAS MURAIS, GRAFITES E PIXAÇÕES

5.1.2 – GRAFITES E PICHAÇÕES

O grafite, segundo tipo de pintura mural em ocorrência, mistura-se com o caso das fachadas pintadas por partilharem algumas vezes do mesmo mercado, conforme comentado anteriormente. Mas optou-se por reconhecê-lo como uma manifestação diferente dentro da mesma categoria, pois esta é uma das formas de arte urbana mais reconhecidas e estudadas. Conhece-se a sua origem: surgiu, talvez simultaneamente, em várias partes do mundo, notadamente Paris11 e Nova York12. Nesta última cidade, esta expressão viria a encontrar o seu auge e seu reconhecimento dentro dos templos eruditos da arte13, como no emblemático caso de Basquiat. Entretanto, até hoje esta linguagem continua a ter sua imagem atrelada à rebeldia juvenil, a modas e estilos de música negra americana, quando não simplesmente associada a atos de vandalismo14.

Neste momento cabe fazer uma precisão quanto a um desdobramento do termo grafite em terras brasileiras, denominado de “pichação”, que será abordada mais adiante. Segundo Armando Silva, esta distinção só existe (ou só começou a ser empregada) em nosso País, para separar desenhos e pinturas feitas com spray de “meras” grafias, assinaturas, rabiscos ou frases. Muitas vezes, tratam-se dos mesmos jovens que executam os grafites e as pichações. Mas qual o sentido comunicativo destes fenômenos? Com qual finalidade os praticam? O mesmo Armando Silva denominou os grafites de “tatuagens urbanas”, o que oferece uma pista que leva a hipóteses como: afirmação de identidade, necessidade de ser reconhecido por um grupo, ou mesmo marcação de território, pois quando se trata de pichações com

11 Década de 1960: “Naquela época, eram jovens de classe média, estudantes, que, em diferentes partes do

mundo, usavam o espaço público para afirmar seu protesto contra a cultura estabelecida. Eram dizeres que se repetiam, como “Abaixo a ditadura”, no Brasil, e os de maio de 68, na França: “ Quando penso em revolução quero fazer amor” ou, ainda, “É proibido proibir”. Nos Estados Unidos, alguns ficaram famosos, como “ Faça amor, não faça a guerra” ou “Flower Power” .” (BUENO, 1999, 263)

12“Foi nos bairros mais desfavorecidos de Nova York que os primeiros grafites - números de telefone e

endereços de fabricantes de droga - apareceram em 1961 (...) depois, os jovens descobriram as tintas em spray que permitem o desenho a uma escala bem maior. Assim, os grafitistas nova-iorquinos tomaram, progressivamente, possessão de fachadas de lojas, de muros inteiros, de monumentos, além de lugares oficialmente reconhecidos na cidade como “writers corners” (cantos dos escritores) .” (POPPER, In:

CAUQUELIN, 1977, p.221) (tradução livre da autora)

13 “(...) aquilo que começou como uma marca agressiva acabou se convertendo em expressão artística. Ou seja,

como as assinaturas viraram pinturas que passaram a influenciar e circular nos segmentos artísticos avançados, estabelecendo uma confluência entre o alto e o baixo, a elite e os excluídos. Esta interpenetração do culto com o popular gerou uma nova forma de arte que não se define mais a partir desse parâmetro.” (BUENO,

1999, 263)

14 Mesmo sendo reconhecida, esta manifestação ainda gera polêmica, como se constata através de um dos temas

propostos no seminário Arte e Cidade (Salvador, 23 a 26/05/2006) na sessão temática “arte e cenário público”: “grafite: vandalismo ou arte?”.

assinaturas, observa-se o costume de inserir também o bairro de origem. Talvez estes tenham sido os impulsos iniciais do seu aparecimento, mas a expressão grafite terminou por derrubar fronteiras:

"Quanto ao extraordinário fenômeno dos grafites do metrô de Nova York, podemos falar de uma reação contra um entorno sórdido e ultrapassado? (...) Este fenômeno, que representava no seu começo um ato individual de desafio, auto-expressão ou auto-satisfação, tornar-se-ia logo mais um meio de comunicação clandestina, depois um jogo criativo sutil e finalmente uma

expressão coletiva e indomável de um forte impacto social e estético.”15

Quanto aos grafites observados em Maceió, as temáticas mais recorrentes são desenhos de super-heróis ou paisagens edificadas no estilo dos quadrinhos da Marvel Comics. Em segundo lugar, aparecem as caricaturas. Mais raramente aparecem também algumas pinturas abstratas ou paisagens. Encontrou-se com freqüência frases inseridas entre os desenhos. Curiosamente, o que constava em cem por cento dos grafites observados foi o nome e o telefone para contato do artista ou grupo que os tinham executados (fazendo sempre a menção “grafites” logo abaixo do nome). Isto demonstra a inserção mercadológica que esses artistas vêm alcançando em Maceió. Eles já reconhecem sua mão de obra como um valor e cobram pelo seu trabalho.

Figs. 155 e 156: Grafite em fachada de loja, no Jacintinho, e detalhe do telefone para contato do grafiteiro (Fonte: IP, 2005).

Neste momento, ao se constatar a não “espontaneidade” dos grafites encomendados,

coloca-se mais uma vez a questão de como categorizar tais manifestações: são expressões da arte ou mero veículo publicitário? Se o ponto fundamental de distinção estiver em sua inserção mercadológica, em seu caráter comunicativo voltado para a promoção do consumo, em sua

função enquanto mensagem publicitária, pode-se afirmar que, neste caso, pinturas e grafites deixam de ser arte? Segundo Silva, a característica intrínseca à expressão grafite é justamente a transgressão ao sistema social e econômico:

“(...) o que se opõe diametralmente ao grafite é a publicidade: enquanto o

primeiro busca um efeito social de forte carga ideológica ou, de algum modo, transgressora de uma ordem estabelecida, a publicidade busca o consumo do anunciado e assim sua intenção comunicativa é antes de tudo funcional para um sistema social político e econômico. Entre publicidade e grafite existirão várias ordens intermediárias nos muros (do latim murus, o epidérmico).” (SILVA, 2001, p.6)

Seria a aparente ausência de uma carga ideológica /crítica e de uma “atitude” artística suficientes para a exclusão de tais manifestações do entendimento da arte? Caso afirmativo, estar-se-ia pressupondo que todas as expressões artísticas oficialmente reconhecidas seriam portadoras de tais características. Empreendendo uma comparação entre a arte oficial e a arte das massas, Nestor Canclini (1984) coloca ambas como instrumento de dominação e perpetuação do sistema: "A função dos artistas, em ambos os casos, é “programar” as ilusões coletivas, requeridas pela perpetuação e expansão do sistema (...).”

Acredita-se, diante das reflexões aqui expostas, que o fato das pinturas e dos grafites estarem inseridos em fachadas comerciais não os desmerecem como expressões artísticas. Toda forma de arte possui uma inserção mercadológica, em maior ou menor grau, até mesmo aquelas de conteúdo crítico mais evidenciado. O distanciamento do universo dos circuitos eruditos da arte também não apresenta em si um empecilho, uma vez que se trata de expressões legitimamente populares de caráter urbano. Todavia, para se reconhecer o valor artístico de manifestações como as acima citadas, foi necessário resgatar o sentido da ação artística e desmistificar certos preconceitos que são produto de filtros ideológicos. Só desta forma pode-se valorizar a presença destas manifestações populares no sentido de ampliar o entendimento de como a população se expressa através da estética urbana de uma cidade.

Pela sua origem comum e pelo interesse em desvendar seus aspectos comunicativos, fez-se necessário também observar as ditas “pichações” nos espaços da cidade. Assim como na origem do grafite, que já foi um desdobramento das pichações, estas últimas apareceram primeiro também no caso de Maceió. As primeiras pichações16 datam do final da década de 1970, enquanto que o grafite se fará presente apenas no final da década de 1980, através da influência do movimento punk inglês. O primeiro “personagem” a se tornar conhecido na cidade chamava-se “Aranha”:

“Maceió foi tomada da noite para o dia com frases criadas por um certo Aranha, que explicitava seu sinal: “O aranha arranha e assanha” e outros dizeres repletos de nonsense”. Esse personagem se misturou pelos muros da cidade com inscrições sobre o regime militar que, na época, propunha uma

distensão rumo a uma democracia.”17

Ao se efetuar esta pesquisa, terminou-se por descobrir a identidade do dito “Aranha”. Tratava-se, na verdade, de um pequeno grupo de jovens de classe média que se tornaram os pioneiros da pichação na cidade. Liderados pelo hoje professor da UFAL Ricardo Cabús, esses jovens se reuniam na intenção de propagar mensagens contra a ditadura militar. Além do engajamento político nascente, provavelmente estes também se encantaram com o ato de rebeldia que isso representava na época. Mas no período da ditadura tal ato poderia vir a ter conseqüências desastrosas. Assim, apesar da repercussão na cidade, esses garotos obrigaram- se a manter sigilo de suas identidades, reveladas só agora, trinta anos depois, por este estudo.

Foi o primeiro posicionamento político de Cabús, que anos depois se engajaria nos movimentos de militância de esquerda. Algumas frases freqüentes do grupo foram fornecidas pelo mesmo, como por exemplo: “milica go home” e “avi sobra silmude” (“aviso: Brasil mude”). Curiosamente, o estopim para a dissolução do grupo se deu justamente devido a uma frase pichada18 por um dos componentes, que não obteve a concordância de todos os seus membros, principalmente do líder Ricardo. A polêmica dizia respeito à questão de que, para ele, a orientação primordial do grupo deveria ser o engajamento político, e não o nonsense, como se poderia deduzir da tal frase. Sobre esta questão, ele coloca:

“Essa era talvez a minha posição pessoal, mas havia uma clara visão

anárquica (ideológica) no grupo e creio que alguns membros estavam apenas por rebeldia ou diversão. Foi um processo no qual, com o tempo, alguns membros optaram por um engajamento político, enquanto outros preferiram o surrealismo. Surgindo daí a divergência que culminou

com a dissolução do grupo.” 19

O engajamento político e o nonsense não eram os únicos aspectos possíveis da pichação em Maceió. Por exemplo, um outro personagem que se tornou conhecido era o que sempre pichava frases fazendo referência à Nigéria20. Apesar de na época as pessoas deduzirem tratar-

17 Caderno de textos do Centro de Comunicação Social (UFAL), autor desconhecido, final da década de 1980. 18 A frase era a seguinte: “O aranha é fruto da imaginação do nada suspenso no vácuo etéreo do plasma”. 19 Depoimento de Ricardo Cabús a esta pesquisadora, abril de 2007.

20 Caso acontecido por volta de 1979, em Maceió: “Alguém grafou toda a cidade com duas frases: “Para que

lado fica a Nigéria?” e “Nigéria Air Lines: o vôo da solidão”. A cidade, tomada de surpresa, começou a indagar a origem de tais dizeres. Uns achavam que estava se formando uma entidade que representasse os anseios da comunidade negra; por ocasião da campanha pró-anistia, muitos pensavam que se tratava de algum partido de esquerda, então proscrito, que fazia alusões ao país africano por uma série de infinitas semelhanças; outros imaginavam que tal atitude se tratava da criação de uma nova agência de turismo, já que a cidade

se de referências políticas, na verdade dizia respeito a uma desilusão amorosa.

Observando-se atualmente as pichações na cidade, pode-se constatar que hoje esta expressão se caracteriza pela diversidade de mensagens. Quando se trata de palavras ou frases, constatam-se conteúdos tão diversos como: referências a torcidas de futebol, frases obscenas, de humor, incitação ao consumo de drogas, mensagens políticas agressivas e proclamações de fé religiosa, entre outras. Mas, para além das frases, abundam também grafias ou assinaturas que funcionam mais como marcação de território e auto-afirmação. A questão do desafio de se escalar edifícios altos para pichá-los também está presente, mas não é muito característico de Maceió como se observa abundantemente em grandes centros com São Paulo.

Figs. 155 a 158: algumas pichações espalhadas pelos bairros de Maceió(Fonte: IP, 2005).

A pichação, dissociada do grafite, parece ter perdido algo do seu “status”, sendo associada mais ao vandalismo do que a uma expressão artística. Mas, como se viu, muitas vezes eles contém uma forte carga comunicativa, funcionando como uma via de expressão popular. Além disso, a linguagem escrita também possui uma visualidade que pode ser explorada, como se faz, por exemplo, na poesia visual. Por esses motivos, consideramos a pichação como uma forma legítima de arte urbana, importante também para Maceió.