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A esferográfica de filmar (ou a câmara de escrever)

CAPÍTULO I – Das notas sobre o estágio

3. A moeda de duas caras

3.1 A esferográfica de filmar (ou a câmara de escrever)

Para qualquer objeto de produção, em que meio seja, o ato de criação é um momento íntimo de inspiração singular. No meio audiovisual, e isto tanto pode aplicar-se em televisão como em cinema, também vale essa premissa.

“Se há figura indispensável no processo criativo ela é seguramente a do autor […] (e entendemos aqui por autor todo aquele que, de algum modo, contribui para o surgimento e desenvolvimento de uma ideia ou para a concretização de uma obra). Ainda assim, parece-nos que um aspeto não pode ser, de modo algum, deixado de ter em conta no que respeita ao trabalho do autor: a sua intenção” (Nogueira, 2010: 41,42).

Existe neste dado uma pista escondida para a dinâmica nas relações laborais entre guionista e realizador. É que, se a intenção de um autor constitui um aspeto relevante para a concretização de uma obra, isso poderá significar que não menos importante será a capacidade do realizador de descodificar, entender e executar essa intenção. Mas para além disso não deixa de ser relevante aquilo que realizador irá fazer depois de descodificar a intenção: se vai respeitar as ideias do autor ou se as vai “contaminar” com as suas próprias ideias.

“Tanto na génese do processo criativo como no seu decurso, uma ideia pode assumir uma pluralidade enorme de formas, seja do ponto de vista da expressão, seja do ponto de vista do conteúdo. Revela-se difícil, por isso, saber exatamente o que é uma ideia, a sua origem, a sua causa, a sua forma. Ainda assim, todos nós, de forma mais humilde ou mais assoberbada, mais despojada ou mais abnegada, mais inconsequente ou mais crítica temos ideias [ainda que] de valor desigual” (Nogueira, 2010: 40).

página | 58 As ideias, como já vimos, são geradas pela mente criativa de um autor. Eles podem surgir em qualquer altura, em qualquer lugar mediante um estímulo qualquer. O importante é que o autor de histórias esteja sempre atento e preparado para estas “epifanias” e que crie um banco de dados de ideias para que estas não se percam e possam dar resposta aos momentos de bloqueio criativo. Para gerar novo conteúdo, o autor passa por uma série de dramas interiores no sentido de encontrar respostas para as suas histórias. Para o conseguir terá de usar um reportório de técnicas que muitas vezes é invisível aos demais. Como tal, torna-se pertinente aferir a legitimidade que os realizadores têm para modificar ou transformar as ideias do autor.

A perceção quer do realizador, quer do guionista da necessidade de mudar as ideias é fundamental para qualquer obra, na medida em que esta necessidade de alterar o texto compreende uma dimensão paradigmática que impera em qualquer produção audiovisual: a linguagem.

Doc Comparato, um dos maiores entendidos no que a escrita criativa e a guionismo diz respeito no mundo, e provavelmente a voz mais respeitada da língua portuguesa nesta matéria, defende mesmo que “qualquer realizador que dê valor ao seu próprio engenho, alterará o guião; se não lhe faz nenhuma modificação é porque algo de estranho se passa. Durante todo o período de preparação irão surgindo situações que hão de exigir que o guião seja retocado” (Comparato,1993: 140, 141).

No entanto, aquilo que Comparato não explica é se, realmente, a prática comum do realizador alterar o guião se deve a imperativos de produção ou de linguagem audiovisual, ou se se deve a preciosismos pessoais.

Tal como explica Marcel Martin, o cinema, que foi o primeiro canal de expressão audiovisual, começou por ser “uma atração de feira, um divertimento ao nível do teatro de revista, ou um meio de conservar as imagens da época”. Foi no cinema que se convencionaram as formas de expressão que se foram tornando cada vez mais complexas, até “tornar-se, pouco a pouco, uma linguagem […] isto é, uma forma sob a qual e pela qual um artista pode exprimir o seu pensamento, […] ou traduzir as suas obsessões exatamente como acontece hoje com o ensaio ou o romance” (Martin, 2005: 291). Por acreditar nisso, Martin introduz-nos o conceito de “câmara-caneta de escrever ”, no qual previa a libertação do cinema face à “tirania visual, da imagem pela imagem”, o que o levava a crer que o cinema está “a encontrar uma forma em que se transforma numa linguagem tão rigorosa que o pensamento se poderá escrever diretamente sobre a película” (ibidem).

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No entanto, ao ler estas observações de Martin não poderemos deixar de nos indagar em relação a quem se refere quando fala no “artista” que “pode exprimir o seu pensamento”. É que o artista de que se fala, tanto pode ser quem escreve, como quem realiza, sendo que, relembro, a intenção textual, ou seja, o conceito, é concretizado pelo guionista. O guionista é, a bem dizer, o responsável por toda a forma do filme. Não só lhe imprime um conceito, escondido na mensagem do filme, como também cria os compassos entre os momentos da narrativa de modo a processar “a gestão da atenção, das expectativas, dos sentimentos, das emoções, dos valores, das crenças do espectador”. Deste modo, o guionista consegue dissimular a mensagem na história evitando com isso que a mensagem seja a história, o que requer que “situações dramáticas, tensas, cómicas, aterrorizantes, intrigantes, inquietantes ou provocatórias são [sejam] construídas e colocadas em momentos ou partes específicos e com propósitos bem calculados” (Nogueira, 2010: 43).

Ter noção disto remete-nos para aquilo que é preciso para ser um guionista e para aquilo que é preciso para ser realizador. Qual o perfil pessoal? Que conhecimentos? Quais os seus raios de ação? Como desempenham as suas funções no dia-a-dia?

Uma coisa é certa: tendo em conta o meio para que escreve, um guionista não poderá ser simplesmente um escritor, assim como, por ter de lidar com histórias, um realizador terá de ser, acima de tudo, um narrador. Ora aqui começa-se a constatar como estas responsabilidades se intercetam. Acerca do fenómeno de escrever um guião, Syd Field garante que:

“tudo o que foi dito ou registrado sobre a experiência de escrever desde o início dos tempos resume- se a uma coisa — escrever é sua experiência particular, pessoal. De ninguém mais. [...] Muita gente contribui para a feitura de um filme, mas o roteirista [guionista] é a única pessoa que se senta e encara a folha de papel em branco (Field, 1982: 145).

Mediante esta informação, e sabendo que há trabalhos em que o autor realiza o que escreve, e outros em que há duas pessoas para cada um destes momentos de produção, resta perceber o porquê disto acontecer, quando isto acontece e qual o resultado de ambas as situações. O próximo capítulo serve precisamente para encetar a busca por explicações a estas contendas.

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