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CAPÍTULO II – Enquadramento Teórico

1. A narrativa de ficção

1.1 Funções narrativas

1.1.4 Pragmática narrativa

Se a semântica nos revela a necessidade de que o texto signifique algo para o espectador, a pragmática opera ao nível da eficiência desse mesmo texto para com a audiência, isto é, se o significado que o autor incute na sua obra vai surtir o efeito desejado no seu público. Para tal torna-se necessária “a distinção entre o que se conta e o modo como se conta – fundamental para o entendimento dos principais níveis do discurso narrativo”. Visto que o vocabulário oferece uma panóplia infindável de combinações, haverá, por certo, muitas maneiras, nas várias línguas, de contar um evento de uma forma loquaz e inteligível.

Tais questões vêm sendo estudadas há muito pela humanidade. Há mais de dois milénios atrás, Aristóteles – com a sua ‘Poética’ – “falava do logos (o assunto ou conteúdo da narrativa, o que se narra) e do mythos (a intriga ou o enredo, isto é, a forma como se narra)” (Nogueira, 2010: 63).

“[…] O que se narra e a forma como se narra são, portanto, distintos: […] Um e outro articulam-se no ato da narração, momento em que submetemos uma certa história a determinados dispositivos (oralidade, escrita, audiovisual, etc.) que a reconfiguram aquando da sua apresentação – é então que surge a narrativa enquanto junção dos dois aspetos: o quê (história) e o como (enredo)” (ibidem).

“ […] Esta duplicidade é retomada e reforçada, no início do século XX, pelos formalistas russos, para quem

a fabula é o conjunto dos acontecimentos cronologicamente apresentados e causalmente inteligíveis, ou

seja, a história, a qual se contrapõe à intriga (sujzet, na terminologia formalista), que consiste no arranjo ou tratamento dos acontecimentos” (Nogueira, 2010: 63, 64).

Isto significa que o conteúdo, apesar de se opor à forma, na realidade necessita dela para que a sua organização temporal consiga extrair o máximo de sumo dramático, cativando a audiência pela intensidade e emotividade das ações organizadas, o que, além disso, contribui para uma maior compreensão da narrativa.

“A ordem em que as ações são apresentadas pode ou não coincidir com a sua sequência cronológica e nem todas as ações de uma história possuem o mesmo valor dramático ou narrativo. Daí que a história seja refeita através do enredo: por exemplo, os acontecimentos podem ser apresentados anacronicamente, através de analepses e prolepses; alguns deles podem ser suprimidos, sem que se perca a inteligibilidade da história, através de elipses; outros são estendidos, através de paráfrases; outros são enfatizados através de hipérboles; outros são atenuados, através de eufemismos. O enredo

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ganha grande parte da sua relevância, portanto, em função da ordem e da perspetiva em que se apresentam os acontecimentos, desse modo dando-lhes um valor estratégico.

O propósito último é, então, criar para o espectador aquilo que poderíamos designar por um ideal narrativo: insinuar o mistério, fomentar a dúvida e revelar a surpresa. Atingir este ideal narrativo garante vários resultados: que o desafio intelectual é estimulante, que o envolvimento afetivo é premente e que a intensidade dramática é elevada” (Nogueira, 2010: 92, 93).

Daquilo que mais ajuda a definir o enredo são os atos de fala. Para além do arranjo das ações no tempo, também é de notar o hipertexto constituído pelo ordenamento daquilo que é dito no tempo, e como é dito. Os atos de fala podem ser divido em três subclasses: locutórios, ilocutórios e perlocutórios. Genericamente, o primeiro concerne à proferição, o segundo à intenção e o terceiro ao impacto disso no alocutário.

Note-se aqui todos os momentos comunicativos essenciais à narrativa: a fala como forma de expressão de uma intenção que vai ter um impacto em terceiros. E repare-se na existência do ato perlocutório interior e exterior à narrativa ao qual o autor deve ter atenção nos diálogos: quando um personagem emite uma intenção, num contexto audiovisual, o ato perlocutório vai agir não só para com outro personagem, como também para com o público, e essa intenção pode reproduzir, ou não, o mesmo efeito nos dois diferentes alocutários conforme o contexto da narrativa.

“Quando falamos de diálogo e das suas modalidades, importa desde logo referir que entendemos por diálogo qualquer forma de discurso verbal que possa surgir numa narrativa fílmica. Daí que modalidades como o monólogo, a narração (voz off) ou o solilóquio surjam lado a lado com a interlocução, essa sim, a modalidade técnica exata do diálogo, que pressupõe a conversação entre dois (ou mais) intervenientes da história”.

(Nogueira, 2010: 124)

No que concerne, então, aos atos de fala que compõem um diálogo, deve-se ter em atenção “tanto o tom como o ritmo, [que] ajudam a definir o [seu] estilo. […] Se é certo que um diálogo num guião se concretiza naturalmente numa forma escrita, não deixa de ser verdade que, na maioria dos casos, ele reproduz situações de conversação oral” (Nogueira, 2010: 127, 128).

Um bom diálogo deve, por isso, evitar “um tom excessivamente literário”, assim como “as redundâncias, banalidades, divagações e incongruências que, inadvertidamente, impeçam a sua

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inteligibilidade” e alimentar-se das “hesitações, interrupções, pausas, tiques, sotaques, calão, clichés ou pronúncias” (Nogueira, 2010: 127, 128).

Assim, Nogueira (2010) adverte que o “tom, a pontuação, o léxico devem ter em atenção a especificidade estilística da oralidade”, de modo a que funcionem como “dispositivos adequados à escrita de diálogos sempre que as personagens e as situações narrativas o justifiquem, [uma vez que] ajudam a sublinhar a singularidade das personagens” (ibidem).

Porém, o registo discursivo do texto poderá operar a um nível interno dos personagens, dependendo das situação e do estilo adotado pelo autor para comunicar a sua obra ao público. Para tal, o guionista recorre à voice-over, que poderá ocorrer como narração em off, ou como monólogo. “A narração em voz-off […] tende a ser mais sofisticada estilisticamente, procurando cumplicidade ou eloquência com o espectador, enquanto o monólogo interior tende a ser mais cru, denotando autenticidade e espontaneidade” (Nogueira, 2010: 128).

Criar uma narrativa pressupõe sempre várias escolhas. Independentemente das várias hipóteses que se tem para comunicar um dado acontecimento, importa, por fim, encontrar a solução adequada, aquela que será, no entender do autor, a que poderá melhor expressar a sua intenção dentro de um contexto narrativo, social e cultural, aos quais não estão alheios o sistemas de linguagem e a própria língua.

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