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CAPÍTULO II – Enquadramento Teórico

3. Interpretação literária e transição para o visual

3.2 O papel do guionista em contexto de produção

3.2.1 O nível performativo

Já muitos filmes foram bem-sucedidos nos esquemas atuais, poder-se-á alegar. Mas quem sabe o que realmente se passou por detrás das câmaras? Poder-se-á pensar que as coisas funcionam bem no estado atual das coisas: o guionista escreve, o realizador dirige e tudo está bem quando acaba bem. No entanto, quando as coisas correm bem poderá haver uma multiplicidade de motivos para isso sem que ninguém se tenha apercebido de tal. Como explica Hauge, “o processo de fazer um filme envolve tantas pessoas, tanto dinheiro, tanto talento, tantos egos, tantos obstáculos físicos, e tantas coisas que podem dar errado que é quase um milagre que a cada vez que um filme acabe mesmo por ser feito e, considerado de forma isolada, seja algo de bom” (Hauge, 2011: 321).

Como tal, se a muitas vezes um produto audiovisual denota características primorosas ao nível da encenação ou da representação, isso pode significar que simplesmente houve mérito do realizador que, não só terá sido capaz de trabalhar estas questões a alto nível, como de conseguir interpretar o guião de forma precisa. Ora muitas vezes, podemos não ter noção disso, mas poderá ter havido um

página | 96 contributo oculto do guionista (e de muitas outra pessoas) para tal. Em todo o caso, se quando corre bem o realizador é um génio, quando corre mal também é o realizador que fracassa. Sendo que uma produção audiovisual é um trabalho plural e multidisciplinar, não podem haver se não vantagens para o realizador em partilhar as suas tarefas com a pessoa de quem extrai as ideias. Poderá ser, de facto, um mecanismo de consolidação e de defesa das produções.

No que toca à direção de atores é isso que acontece. “A direção de atores é um dos meios que se encontra à disposição do cineasta para criar o seu universo fílmico pessoal” (Martin, 2005: 91, 92). Ora se isto é verdade para um filme de autor, que deve a sua existência ao ímpeto criativo de um realizador, à sua vontade pessoal de comunicar algo, o mesmo não se pode dizer de uma produção comercial, onde o realizador deve colocar os interesses económicos (e também do público-alvo), à frente das suas afeções e caprichos.

Um realizador não deve impor uma forma de representar diferente daquela que foi pensada pelo guionista, sob pena desta poder correr mal. Deve, isso sim, intervir e “negociar” com o guionista a forma de o fazer se isso for justificável para a unidade e coesão da obra.

“É possível definir esquematicamente, sem se descurar as evidentes interpenetrações, diversas conceções de representação: hierática: estilizada e teatral, voltada para o épico e para o sobre- humano («Ivan Grozny – Ivan, o terrível»); estática: baseia-se no peso físico do ator, na sua presença

esta forma de representar é ditada por considerações dramáticas […] mas também o pode ser pela tradição cultural (é o caso de uma boa maioria dos filmes japoneses); dinâmica: característica dos filmes italianos, traduz geralmente a exuberância do temperamento latino; excêntrica: lembremos o estilo de representação praticada nos anos 20 pela escola soviética do F.E.K.S. (Fábrica do Actor Excêntrico) e que […] tinha como objetivo exteriorizar a violência dos sentimentos ou da ação” (Martin, 2005: 91, 92).

Aqui logo se pode compreender que há muitos níveis de representação, podendo-se, então, admitir que o realizador pode não conseguir dominá-los a todos. Já o guionista, se escreveu os diálogos – e teve de fazer investigação para isso – deverá ter mais facilidade em nominar os vários registos dos diálogos e a própria mímica das cenas.

“Os diálogos têm uma grande importância no cinema e parece que os diálogos «realistas» são os mais especificamente cinematográficos, não sendo possível definir qual deve ser a regra na matéria. Tudo é permitido, aqui como noutros domínios da linguagem fílmica, e parece que um único defeito

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será redibitório: não estar em situação. […] O essencial é que sejam utilizados inteligentemente, isto é, que haja entre eles e a imagem uma relação dialética de valor” (Martin, 2005: 226).

O guionista conhece a personagem como ninguém. Numa produção audiovisual em que haja algum espaço para a experimentação, o realizador poderá procurar alterar algumas características do personagem em virtude do estilo que dá à sua obra. No entanto não deve mexer em algo tão sensível se quer adaptar a sua visão com êxito e sem criar incongruências na narrativa.

“A personagem é o elemento narrativo em torno do qual gira a ação. Quer isto dizer que qualquer evento é sempre consequência da ação de (ou sobre) uma personagem (seja enquanto agente ou enquanto paciente). Por isso é muito importante reter que é aquilo que acontece às personagens que dá espessura dramática e tensão emocional à narrativa”.

(Nogueira, 2010: 111, 112)

“A forma de expressão das personagens é algo de decisivo na sua caracterização […].O que as personagens fazem, mais do que o que elas dizem, permite desenhar e reconhecer o seu perfil, a sua forma de ser” (Nogueira, 2010: 120). Como tal, torna-se relevante essa coordenação entre o guionista e o realizador que expressa sempre uma situação bastante mais simplificada nos casos em que trabalho é feito por uma mesma pessoa, mas necessária para a eficácia narrativa, visual e performativa, no caso de ser um trabalho separado.

De facto, tais ideias não são sequer novas e remontam já ao tempo de Eisenstein, pelo que se estranha esta perda, ou esquecimento de tais valores de produção. Como podemos constatar através de Bordwell:

“os termos que ele [Eisenstein] usa reforçam acentuam a intervenção do criador – não apenas a “montagem” como assembleia criativa mas o recorrente prefixo “mise” como um reconhecimento de que a atuação e a encenação e o enquadramento são colocados no sítio por alguma inteligência primordial. Ao procurar o desdobrando máximo da expressividade de uma essência emocional, Eisenstein faz de toda a representação numa interpretação do narrador dos dados emocionais, assim como falamos de uma “interpretação” do encenador relativamente a uma peça de teatro” (Bordwell, 1993: 15).

página | 98 E a questão reside aqui. Tal como acontece no teatro, onde o encenador “interpreta” uma peça, também o realizador tem de “interpretar” um guião. E se a interpretação é uma leitura mental subjetiva, o mesmo não se pode dizer se estiver um guionista a orientar a performance do seu próprio trabalho. Aí estaremos a falar de uma descrição objetiva da sua subjetividade, saltando assim o nível interpretativo e comunicando diretamente as suas intenções aos intérpretes da ação (atores). Eis a vantagem e o imperativo de ter sempre um guionista presente em pleno momento de rodagem.

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