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HOMEM ARMADO, MODERNO EM DIFERENTES ÉPOCAS

II.3 As armas de fogo .1 Introdução

II.3.10 A espingarda portuguesa

Os armeiros ferreiros fabricavam armas brancas, mas alguns eram espingardeiros e até relojoeiros. Como os artesãos fundidores, os armeiros também possuíam Carta de Privilégio que geralmente lhes garantia em qualquer parte do território português em que estivessem a serviço do rei o direito a moradia ou uma ajuda de custo para a moradia, a aposentadoria. Também como privilégio, os artesãos recebiam a permissão para ter uma tenda aberta para prestar serviços pagos à população em geral. Os ferreiros e os serralheiros poderiam estar a serviço do rei, como também trabalhando nas obras de uma Instituição, como a Universidade de Coimbra ou uma Igreja. Sousa Viterbo, em suas pesquisas na Torre do Tombo, conseguiu determinar o nome de 56 desses artesãos262 que trabalharam contratados pela Coroa entre os séculos XIV e XVII. Em sua grande maioria, eles eram alemães e espanhóis263. Os espanhóis geralmente eram provenientes de Biscaia, que era a região ao norte da Espanha onde existia grande riqueza de minérios e há séculos seus habitantes se dedicavam às indústrias extrativas e às artes metálicas. No norte de Portugal, a cidade de Braga ganhou fama por possuir as melhores oficinas de armas brancas e espingardeiros. No entanto, não podemos pensar que no Reino se fabricou a maior parte da armaria portuguesa. Apesar da existência do arsenal em Lisboa, das armarias de Barcarena e Santarém e de muitas outras oficinas espalhadas pelos domínios ultramarinos, a importação de armas do estrangeiro sempre foi considerável. As armaduras vinham geralmente de Biscaia, enquanto as espingardas procediam, por intermédio da feitoria que Portugal mantinha em Flandres, da Alemanha e principalmente da Boêmia264.

A espingarda não era apenas uma arma para a guerra, mas também um instrumento de caça. Assim sendo, mesmo durante os períodos de paz, a

262Veja o anexo 2.

263Concluiu Sousa Viterbo em seu estudo que a possibilidade de escrever a história da armaria portuguesa a partir de fontes primárias está bem prejudicada devido ao desaparecimento quase por completo da maior parte dos documentos. Assim sendo, apesar de serem poucos os nomes que conseguiu levantar em suas pesquisas, apenas 56, mesmo assim considera que se tornaram o núcleo de um inventário que outros pesquisadores ainda poderão expandir (VITERBO, 1907, p.12).

espingarda foi cultivada como uma arma da qual se buscava tirar o melhor tiro, o tiro certeiro no ato da caça. No final do século XVII, alguns membros da fidalguia portuguesa demonstravam ser apaixonados pela espingarda de caça, e mantinham às suas custas artesãos e oficinas próprias onde os mestres espingardeiros fabricavam espingardas sempre considerando as modernas inovações que surgiam entre as armas estrangeiras. Nessa época, os fidalgos não se dedicavam à prática do fazer com as próprias mãos, algo censurável e objeto do desprezo. Mesmo assim, alguns de seus membros demonstravam apreciar os mecanismos dos fechos das espingardas e as técnicas de fabricação das coronhas e dos canos. Nas suas oficinas particulares procuravam incentivar mestres artesãos a produzirem a espingarda perfeita. Como consequência, em 1718, nas oficinas de Antonio Pedrozo Galram, foi publicado o mais antigo e mais completo tratado que se conhece sobre a arte de fazer espingardas: Espingarda Perfeita & regras para a sua operação com circuntancias necessarias para o seu artifício, & doutrinas uteis para o seu melhor acerto. Nesse tratado, oferecido ao rei D. João V, seus autores revelaram os segredos tão ciosamente guardados pelos mestres espingardeiros portugueses de uma das mais prestigiadas corporações metalúrgicas. Para não serem punidos pela Corporação, os autores da

Espingarda Perfeita ocultaram os seus nomes verdadeiros. No frontispício da obra (Figura II-49), onde aparece o nome dos autores, Cesar Fiosconi e Jordam Guseiro, segundo afirmam Sousa Viterbo265 e W. Keith Neal266, os nomes que ali estão são anagramas italianizados dos destacados mestres armeiros José Francisco e seu irmão João Rodrigues, cujas marcas de punção constam da gravura que adorna o frontispício do livro267. A maioria dos livros publicados na primeira edição foi destruída e restam conhecidos apenas 16 exemplares. Outro fato, que demonstra que seus autores foram vítimas da censura da Corporação, é que até hoje não se encontrou um único exemplar de espingarda fabricada pelos espingardeiros autores da obra268. O primeiro

265VITERBO, 1908, p.164.

266NEAL, 1994.

267Na verdade, a obra possuía três autores, que eram irmãos: “César Fiosconi”, na realidade José Francisco; “Jordan Guseiro”, que é João Rodrigues; e Manoel António. Não se sabe a razão de o terceiro autor não ter o seu nome colocado no frontispício da obra (NEAL, 1994).

capítulo do livro tem no seu cabeçário as letras IHS269, que é o símbolo da Companhia de Jesus, um pequeno detalhe que também se encontra na primeira obra portuguesa sobre Artilharia –Tratado da Artilharia e Artifício do Fogo – Tirada de Vários Autores –,um trabalho feito pelo condestável da cidade de Elvas, Balthezar [Baltazar] Dias, em 1700, ao qual voltaremos a nos referir mais tarde, em outro capítulo. Qual a razão de a Companhia de Jesus deixar sua marca em algumas obras sobre armas e Artilharia? Os autores seriam militares que se converteram à vida religiosa como membros da Companhia de Jesus, o que na época não era raro? A busca das respostas a estas perguntas fogem ao escopo desta Tese, no entanto deixo-as aqui registradas na esperança de provocar a curiosidade de outros pesquisadores270.

A qualidade do texto, a linguagem rebuscada e precisa com a qual foi escrita a Espingarda Perfeita, nos deixam a impressão de que seus autores possuíam uma formação incomum para artesãos ou receberam de letrados, fidalgos ou religiosos o apoio na revisão do texto final. O texto é um legado à posteridade, como foi a obra de Vannoccio Biringuccio, A Pirotechnia (1540), e a obraDe Re Metallica(1556), escrita por Georgius Agrícola.

269A três letras IHS, símbolo da Companhia de Jesus, significavam “Iesus Hominum Salvator”, ou “Jesus Salvador dos Homens”.

270Ao incauto leitor, pode parecer que a ação missionária não combina com conhecimentos da arte da guerra. O jesuíta Adão Schall Von Bell, nascido em Colônia, foi enviado a Macau pela Companhia de Jesus, via Lisboa e Goa, e acabou por assumir as funções de Primeiro-Ministro do Imperador da China, em Pequim, onde fundiu canhões de grande envergadura (DACHNHARDT, 1994, p.16).

Figura II-49:Frontispício da obra Espingarda Perfeita & regras para a sua operação com circunstancias necessarias para o seu artifício, & doutrinas uteis para o seu melhor acerto.

A forja era a principal ferramenta dos espingardeiros, e o carvão que as alimentava era muito importante para se obter o melhor resultado, e dele o espingardeiro não poderia se descuidar. Em Portugal, no final do século XVII, os espingardeiros não utilizavam carvão vegetal:

O carvão com que se trabalha nesta cidade [Lisboa] nos ofícios do fogo é de pedra [carvão mineral], e este vem de fora do Reino, como é de Castilnovo, Scorcia, Mistor, e de outras partes, e de todas as sobreditas, o melhor é de Castilnovo, por ser mais forte [sic].271

O carvão mineral era mais caro, porém mais durável e produzia um fogo forte. Nunca poderia estar contaminado com o enxofre, o que impediria que se caldeasse com perfeição. Na forja deveria haver boa ventilação através de foles. Os ingleseseram os mais recomendados porque promoviam sempre um vento brando, o que não ocorria com os portugueses.

Com o mesmo ferro com que o ferreiro fazia a charrua também poderia fazer uma espada, mas não seria com ele que faria uma ferradura ou o cano de uma espingarda. O bom ferreiro deveria saber escolher o ferro mais adequado ao uso que lhe daria. Os autores da Espingarda Perfeita afirmaram que os espingardeiros portugueses trabalhavam com ferro estrangeiro, não porque o que era produzido em Portugal era de má qualidade, mas porque o outro chegava em grande quantidade aos portos portugueses. O ferro produzido em Portugal, que dava mostra da sua boa qualidade, era todo gasto na fundição de artilharia272,273. Como nem todo o ferro importado era de boa qualidade, deveria o artesão saber avaliá-lo. Com um golpe de talhadeira se retirava uma lasca do ferro e, a seguir, com a mão a quebrava para que mostrasse seus grãos. As barras importadas da Alemanha e da Suécia não eram homogêneas, o que não se verificava nas que chegavam de Biscaia. A aparência da granulação e dos veios contidos em uma barra determinava o melhor uso que se poderia dar ao ferro examinado.

Com a forja preparada para o trabalho, após a escolha do melhor ferro, o espingardeiro estaria pronto para iniciar a confecção do que considerava ser o mais perfeito cano de espingarda, fruto da experiência que os mestres artesãos espingardeiros portugueses acumularam durante os três séculos que precederam o século XVIII.

No século XV, D. Afonso V contratou muitos mestres artesãos de fazer bestas, mas também nesta época começam a surgir em Portugal os mestres estrangeiros espingardeiros274. Um fato relevante para a história das técnicas é que o aparecimento do arcabuz e do mosquete não fez desaparecer a besta. As duas armas de arremesso conviveram até o século XVII, demonstrando que uma inovação tecnológica não faz desaparecer imediatamente a tecnologia precedente, ao que já nos referimos quando estudamos as lâminas de espadas de aço em substituição às de bronze.

272FIOSCONI, GUSEIRO, 1974, p.80-88.

273O grifo é meu. Onde estão as peças de artilharia de ferro fundidas no Reino português? Entre as peças de artilharia expostas no Museu Histórico Brasileiro, no Museu Naval do Rio de Janeiro ou no Museu Militar de Lisboa, não há nenhum exemplar de peça de ferro fundida nos arsenais portugueses em época anterior ao século XVIII. Desta forma, não podemos considerar confiável a afirmação de que em Portugal se utilizava o ferro para fundir peças de artilharia (MARTINS, 2009a).

Em 1461, Pero Vasques, residente em Lisboa, é provavelmente o primeiro mestre de fazer espingardas que exerceu o seu ofício em Portugal275. Entre os primeiros também podemos citar Juda Abenrey276, que fabricava bestas e espingardas, e Mousem Farache277, ambos judeus. No século XV, em Portugal, as artes metálicas eram dominadas por artesãos judeus e mulçumanos, ao ponto de haver uma espécie de ferro denominado aço mourisco278.

As primeiras espingardas surgiram no século XIV. Estas eram apenas um cano, semelhante a um pequeno canhão, preso à extremidade de um cabo de madeira. Dois homens seriam necessários para servir a este tipo de espingarda primitiva. Enquanto um segurava e apontava a arma para o alvo, o outro, portando uma mecha acesa, dava fogo à arma. Por volta de 1470, em Nuremberg (Figura II-50), surge um novo tipo de espingarda, o Mosquete de Nuremberg, a qual possuía um sistema para produzir a ignição da pólvora que dispensava o uso do segundo homem. A nova invenção modificou para sempre a composição de uma espingarda, que deixou de ser formada por apenas por um cano preso a uma coronha, e ganhou um terceiro elemento que se movimentava como um cão carregando a mecha acesa na boca. O terceiro elemento, ocão, levava o fogo até a cassoleta, que era o nome que se dava à cavidade na extremidade do ouvido da arma, o qual nada mais era do que um pequeno depósito de polvorim na entrada do ouvido da arma (Figura II-51). Para proteger a pólvora da chuva e do vento, a cassoleta tinha uma pequena tampa que era mantida fechada enquanto a arma não estivesse em uso.

275Torre do Tombo. Chancelaria de D. Afonso V, liv. 1, fl. 105.

276Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 29, fl. 253 v.

277Mestre de espingardas, Judeu serviu ao rei em Portugal e na África (Tenencia, liv. 170, fl. 124-126 v.).

Figura II-50:Cidade de Nuremberg, em 1493. (Fonte: Wikipedia, em 14/10/2012, imagem de domínio público, escaniada por Michel Wolgemut do livro original, editado em 1493, Die Schedelsche Weltchronik [Crônica de Nuremberg], de autoria de Hartmann Schedel.).

Figura II-51:Fecho de Mecha de Nuremberg, século XV (Fonte: DAEHNHARDT, Rainer.

Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente.

Portugal: Texto Editora, 1994,p.72).

O fecho de mecha de Nuremberg rapidamente se espalhou pela Europa central, passando da Alemanha para a Áustria e desta para o Império Otomano, onde dele fizeram uma nova versão, o Fecho Otomano, introduzido pelos mulçumanos na Pérsia e na Índia (Figura II-52)279.

Figura II-52:Evolução do fecho de Nuremberg de cerca de 1470 até 1680,quando passou da Alemanha para a Áustria e, a seguir, para o Império Otomano, que o conduziu à Índia (Fonte: DAEHNHARDT, Rainer. Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente.Portugal: Texto Editora, 1994, pp.66-67).

O cão no fecho de Nuremberg era movimentado lentamente de trás para frente, recolhendo-se em seguida à posição inicial. Para fazer o movimento do cão mais rápido, na região da Boêmia os espingardeiros desenvolveram um novo tipo de fecho, o Fecho da Boêmia (Figura II-53). Neste, o cão passou a ter duas posições: uma de descanso sobre a cassoleta e outra recuada da cassoleta sobre a tensão de uma mola que traria a boca do cão contra a cassoleta tão logo fosse destravada, o que seria feito pressionando um botão com o dedo polegar. O inconveniente deste fecho era que a colisão da mecha contra a cassoleta eventualmente poderia apagá-la ou espalhar o polvorim depositado na cassoleta.

Figura II-53:Fecho da Boêmia com botão. Como gatilho, possui um botão que se pressiona com o polegar da mão direita, libertando o cão para que seja empurrado pela força da mola e conduza a mecha acesa para dentro da cassoleta (Fonte: DAEHNHARDT, Rainer.Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente. Portugal: Texto Editora, 1994, p.76).

No século XV, Portugal importava a maior parte dos arcabuzes e mosquetes da sua armaria da região da Boêmia280 (Figura II-54). Com essas armas, no final do século, os portugueses causaram admiração e espanto aos ameríndios. No entanto, o mesmo não ocorreu com os povos que habitavam a Índia, os quais já fabricavam espingardas nos seus arsenais. Em 1510, com a conquista definitiva de Goa, os portugueses resolveram ampliar o arsenal do porto para reparar seus navios e ali fabricar armas e pólvora. Em 1513, Afonso de Albuquerque enviou para Lisboa alguns exemplares de espingardas que foram fabricadas pelos espingardeiros goeses, para que o rei D. Manuel I as examinasse. Na opinião de Albuquerque, as espingardas goesas eram tão boas quanto as que Portugal importava da Boêmia.

No Arsenal de Goa os espingardeiros portugueses e goeses trabalharam lado a lado fabricando espingardas, trocando conhecimento. Desta parceria, surgiu um novo tipo de espingarda que fundia as características das espingardas luso-alemãs que vinham de Lisboa com as espingardas goesas e mulçumanas. Assim surgiu a espingarda de mecha Indo-Portuguesa, para a qual se criou em Goa aCasa das Dez Mil Espingardas281. Com a expansão das rotas marítimas para o leste (Figura II-55), cerca de 1543, dois náufragos portugueses introduziram uma dessas espingardas em Nagasáqui, uma arma

280No século XIV, os principais centros da espingardaria na área germânica foram Nuremberg e Augsburg, no sul da Alemanha, e na Boêmia, a região de Pilsen, atualmente localizada na República Checa..

que foi copiada aos milhares durante séculos no Japão282. Em Nagasáqui, os portugueses estabeleceram uma feitoria e no arsenal, pela primeira vez, se fundiu canhões no Japão.

Figura II-54:As espingardas que os portugueses utilizaram para conquistar Goa eram armas importadas principalmente da Boêmia. No arsenal de Goa, os espingardeiros goeses e portugueses trabalharam juntos trocando conhecimentos, e um novo tipo de fecho de mecha surgiu, o Fecho Indo-Português, que os portugueses introduziram no Japão, na Malásia e no Ceilão, onde dele os povos locais fizeram novas versões Fonte: DAEHNHARDT, Rainer.

Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente.

Portugal: Texto Editora, 1994, pp.66-67).

A principal razão de Goa ter sido escolhida como principal arsenal de Portugal no Oriente foi sem dúvida o fato de ali já existir, na época da conquista, um elevado número de excelentes artesãos que se ofereceram de boa vontade para trabalhar lado a lado com os portugueses. O intercâmbio de técnicas foi tão produtivo que o Vice-Rei da Índia, Afonso de Albuquerque, promoveu a ida de espingardeiros goeses para o Arsenal de Lisboa283,284,285.

282DACHNHARDT, 1994, p. 31.

283DACHNHARDT, 1994, p. 38.

284Sousa Viterbo (anexo 4) não descobriu nenhum documento que fizesse alguma referência aos espingardeiros goeses (VITERBO, 1908).

285Os portugueses conseguiam uma boa integração com diferentes povos com diferentes culturas. Para isso, muito contribuiu a atitude de incentivar os poucos portugueses que chegavam a terras distantes a constituírem famílias com as mulheres locais. Outra atitude importante foi o oferecimento de armas quando se presenteava um potencial inimigo, o que seria uma demonstração pública da confiança no futuro do novo relacionamento (DACHNHARDT, 1994, p. 27).

Figura II-55:Os portugueses, armados com espingardas fabricadas no arsenal de Goa, com fechos do tipo Indo-Português, seguiram para o leste e estabeleceram novas feitorias no Ceilão, na Malásia e no Japão (Fonte: Localização no mundo, www.pt.wikipedia.org, em 13/10/2012).

O fecho da Boêmia, também conhecido como modelo Schnapp-Lunte, com o rápido movimento do cão que colidia contra a cassoleta, poderia produzir acidentalmente faíscas e a ignição da pólvora, mesmo em uma arma onde o cão não estivesse conduzindo uma mecha acesa, um perigoso inconveniente que fez com que tivesse sido utilizado nas espingardas com uso militar apenas até a primeira metade do século XVI286, o que fez deste tipo de fecho na atualidade uma raridade. O fecho da Boêmia é totalmente diferente de quase todos os mecanismos das armas de mecha européias e indianas ainda existentes, onde o cão se aproxima devagar da cassoleta, comunica fogo e novamente se afasta para trás. Este foi o mecanismo que se manteve em uso até o século XVIII. No entanto, a raridade do fecho da Boêmia fez com que não se percebesse que ele é o “pai das armas de mecha japonesa, malaia e cingalesa, como também das armas de pederneira de todo o mundo”287.

O violento e inadequado movimento do cão no fecho da Boêmia, o qual provocou o seu abandono, fez surgir um novo tipo de fecho, o Fecho de Pederneira, no qual o cão passou a conduzir na boca uma pedra de sílex no lugar da mecha acesa, e a tampa da cassoleta passou a ter a forma de uma cantoneira em ângulo reto. O impacto da pedra sílex contra a parte elevada da

286DACHNHARDT, 1994, p.58.

tampa, ofusil, provoca concomitantemente faíscas e a abertura da tampa. Com a tampa da cassoleta aberta, as faíscas alcançam o polvorim. Como neste fecho não se usava uma mecha acesa, as espingardas que o utilizavam se tornaram as preferidas para o uso noturno ou nas emboscadas O primeiro dos fechos de pederneira inventados em Portugal foi o Fecho de Anselmo, que foi utilizado desde a primeira metade do século XVI (Figura II-56)288.

Figura II-56:Fecho de Anselmo de uma só posição. Trata-se do primeiro tipo de fecho de pederneira. Uma pedra de sílex, presa entre os lábios do cão, é lançada contra a tampa da cassoleta no fuzil, que enquanto abre a tampa, lança faíscas na pólvora localizada na extremidade do ouvido da câmara da arma de fogo (Fonte: DAEHNHARDT, Rainer.Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente. Portugal: Texto Editora, 1994, p.85).

Nos fechos de Anselmo, o cão, antes do disparo, deveria ser recuado e permanecer em repouso afastado do fusil. Mas o mecanismo não tinha nenhuma trava de segurança, o que eventualmente causava disparos acidentais e de graves consequências. Para dar solução ao problema, foi criado um novo tipo de fecho, o Fecho de Molinhas, que tinha uma trava de segurança à moda Alemã (Figura II-57).

Figura II-57:Fecho de Molinhas com segurança à Alemã. Este é o mais antigo exemplar de fechos de pederneira que se conhece, e que foi fabricado no Arsenal de Lisboa entre 1540 e 1550, possivelmente por um espingardeiro alemão que pode ter sido o inventor do fecho (Fonte: DAEHNHARDT, Rainer. Espingarda Feiticeira – A introdução da Arma de Fogo pelos Portugueses no Extremo-Oriente.Portugal: Texto Editora, 1994, pp.87-88).

Provavelmente, este fecho foi desenvolvido pela pimeira vez no Arsenal de Lisboa por um artesão alemão, demosntrando que, nessa época, Portugal ocupava uma posição de vanguarda entre as nações que fabricavam espingardas, tanto no ocidente quanto no oriente (Figura II-58 e Figura II-59).