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OS SABERES NECESSÁRIOS PARA MANTER UM REI DE PÉ

IV.2 Arsenais de guerra

As longas rotas comerciais marítimas, que se estabeleceram nos mares da Terra do final do século XV ao século XVII, criaram uma rede que intercomunicava as mais importantes cidades através dos seus portos. Com as grandes navegações surgiam novos problemas técnicos. Os arsenais de guerra, geralmente construídos próximos dos principais portos, passaram a ser o local onde os grandes interesses econômicos ligados às rotas comerciais passaram a financiar os melhores artesãos, homens práticos, e os melhores cosmólogos, matemáticos e filósofos, homens teóricos, na busca de soluções para os novos problemas. Esta união fez surgir uma nova classe de homens acostumada a pensar com fins utilitários a complexidade de um saber próprio das academias.

No século XV, Portugal se tornou a principal nação dedicada às rotas comerciais no Atlântico Sul, onde se navegava sob um céu desconhecido e sem uma estrela polar. A necessidade fez surgir novas técnicas de navegação com aplicação de novos instrumentos de observação do céu. Os navegantes, homens práticos, deparavam com novos problemas que homens teóricos, como Pedro Nunes348 (1502-1578), a eles se juntaram na busca de soluções. Foi um relacionamento que inicialmente se fez com preconceitos. Os navegantes não entendiam como seria possível a alguém que nunca tinha comandado um navio lhes ensinar algo novo e útil. Apenas o tempo e os bons

348Médico português, matemático e astrônomo, um dos maiores vultos da ciência do seu tempo que muito contribuiu para a resolução de problemas da navegação e da cartografia. Em 1537, Pedro Nunes traduziu para a língua portuguesa o Tratado da Esfera de Johannes de Sacrobosco.

resultados foram capazes de melhorar a convivência entre práticos e teóricos. No final do século XVI e início do XVII, também encontraremos Galileu Galilei (1564-1642), na Itália, no arsenal de Veneza, procurando dar soluções aos problemas de mecânica apresentados pelos artesãos e militares. No entanto, sua ação no arsenal não foi apenas de um teórico dedicado à solução de problemas práticos, como foi a de Pedro Nunes em Lisboa. Galileu buscava mais do que a solução para certos problemas. Em sua ação procurava desenvolver uma nova ciência útil. A antiga filosofia da natureza, enraizada nos exercícios verbais do aristotelismo, tinha excluído deliberadamente a utilidade do saber. Como afirmou Stillman Drake349,

Aristóteles nada tinha contra o conhecimento prático, a que chamava techne; simplesmente não o considerava da mesma espécie do conhecimento científico, a que chamava episteme. [...] Para Aristóteles, contudo, a diferença entre techne e episteme não era uma diferença entre aplicação e teoria, mas uma diferença de fontes de conhecimento e objetivos de conhecimento. A fonte de conhecimento técnico para a experiência prática, e o seu objetivo, falando de uma maneira geral, era saber o que fazer a seguir350. A fonte de conhecimento científico era a razão e o seu objetivo a compreensão das coisas por meio das suas causas.

Em busca de uma nova ciência útil, Galileu procurou juntar o conhecimento adquirido pela experiência prática com a espécie de conhecimento atingido por meio da razão, investigando leis em vez de causas351. Ao estudar o movimento dos corpos graves, procurou descobrir as leis que regiam os movimentos sem procurar dar explicações sobre a causa do movimento. Para Galileu, como para os aristotélicos, o peso continuou a ser uma propriedade dos corpos.

349DRAKE, 1981, p.29.

350O saber fazer estabelece protocolos de procedimentos.

351Em 1632, Galileu publicou Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, um livro sobre astronomia que foi censurado pela Inquisição em 1633, e seu autor, condenado a viver até o fim dos seus dias em prisão domiciliar. Em 1638, quando Galileu já estava vivendo em Arcetri em regime de prisão domiciliar, é publicado Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a Due Nuove Scienze, um livro dedicado ao estudo da Estática e a Cinemática dos corpos graves próximos da superfície da Terra.

O cargo ocupado por Galileu a serviço do grão-duque da Toscana o intitula como mestre em matemática e filósofo da natureza. No entanto, seu contemporâneo Marin Mersenne, assim o descreveu352:

[...] apesar de ter conhecimento do título de Galileu através das páginas de rosto dos livros impressos, [Mersenne] descreve-o como matemático e engenheiro [o grifo é meu] daquela corte, quando em 1634 publicou o comentário a uma tradução francesa daMecânica, baseado num manuscrito não publicado em italiano.

Não há dúvida de que Galileu escrevia para engenheiros militares. Os historiadores da ciência, habitualmente, trataram-no como um filósofo. Mas, como afirma DRAKE353,

Galielu nunca escreveu nada sobre filosofia [...]. Os professores de filosofia do seu tempo foram seus principais e mais reivindicadores adversários. A descrição que Mersenne deu a Galileu, considerando-o um engenheiro, é muito apropriada, apesar de nunca ter tido uma função militar, como era comum aos engenheiros do seu tempo. Mas, na corte tinha a função de controlar enchentes, estabelecer um comentário crítico sobre máquinas apresentadas à mesma, dar consultoria a projetos de estrutura, todas tarefas que implicavam em muita engenharia.

Galileu não foi um teórico puro, como infelizmente alguns autores insistem em apresentá-lo. Ao analisar os Discorsi, muito se fala sobre o estudo que ele fez sobre o movimento, uma mecânica racional, própria de um teórico, não deixando transparecer que tal trabalho seria parte de uma ciência útil aos engenheiros militares dedicados à Artilharia. Da mesma forma, como afirma Pierre Thuillier354,

Tudo se passa, de uma maneira geral, como se o nome de Galileu estivesse associado essencialmente a uma ciência considerada nobre, como a mecânica racional; como se o público quisesse esquecer a resistência dos materiais, tida como a ciência do engenheiro; muito utilitária e, por isso, pouco prestigiada .... Indiretamente, isto vem a estabelecer uma separação radical entre a ciência e a técnica; Galileu aparece assim como um teórico puro, um homem alheio às preocupações práticas.

352DRAKE, 1989, p.45

353DRAKE, 1989, p.46.

A ciência era uma propriedade natural das Universidades. Os primeiros estudos, geralmente na forma de manuscritos com poucas cópias, confinavam o conhecimento às principais Universidades, que se transformavam em centros do saber. No entanto, no início do século XVI, o grande número de cópias impressas pelos tipógrafos fez cair o preço unitário e produziu uma das maiores revoluções, tornando público o saber. Assim a ciência, finalmente, se espalhou para longe dos centros do saber355,356e, como ciência útil, pôde surgir fora das Universidades.

O estudo das trajetórias dos projéteis feito por Galileu atendeu a uma antiga necessidade que tinham os artilheiros para melhor determinarem o alcance e o efeito das bombas sobre seus alvos. Outros, antes de Galileu, já haviam se dedicado a este estudo, denominado Balística Externa.