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Feenberg (2005) afirma que, considerando a complexidade do debate apresentado anteriormente, a filosofia da tecnologia oferece relatos muito abstratos e a-históricos da essência da tecnologia. Por outro lado, a perspectiva construtivista, ao considerar que a tecnologia é socialmente construída, que os processos ―técnicos‖ de produção de conhecimentos são processos sociais passíveis de serem investigados como outros processos em que intervêm atores sociais, implicou uma considerável inflexão na trajetória dos estudos sociais da tecnologia. A sociologia deveria ter algo a dizer sobre aqueles processos, deveria considerá-los seu objeto de estudo. Nesse cenário, afirma o autor, os relatos da filosofia da tecnologia pareciam bastante frágeis quando comparados à complexidade dos estudos sociais da tecnologia. Assim, uma vez que vê algo correto em ambas as abordagens, como apresentamos anteriormente, Feenberg (1991) combinou as contribuições da crítica substantivista da tecnologia e do construtivismo social em uma estrutura comum a que chama de ―teoria da instrumentalização‖.

Nesse sentido, a tecnologia deve ser analisada em dois níveis, o nível de nossa relação funcional original com a realidade e o nível de propósito e implementação. Feenberg (2005) explica que o primeiro nível é o da instrumentalização primária, em que se busca achar recursos que podem ser mobilizados em dispositivos e sistemas para descontextualizar os objetos da experiência e reduzí-los às suas propriedades normais. Esse primeiro nível de instrumentalização inspira-se em categorias introduzidas pelos críticos substantivistas da tecnologia, como ―descontextualização‖ e "desmundificação", chamando assim a atenção para a natureza abstrata, não-local da tecnologia. Em outras palavras, essa dinâmica envolve um processo de ―desmundificação‖ em que os objetos são retirados de seus contextos originais e postos à análise e manipulação enquanto os sujeitos se colocam para controle à distância. Segundo Callon (2010), este nível, descreve o processo pelo qual os

especialistas técnicos focam-se nas funcionalidades dos artefatos que eles estão projetando, enfoca as maneiras pelas quais as tecnologias precisam ―trabalhar‖ para servir a um propósito particular (MELO-MARTÍN et al, 2011). Ou seja, os objetos são simplificados, descontextualizados do mundo da vida, de seu ambiente original, para incorporação a um dispositivo, reduzidos a coisas com uma função específica e um conjunto limitado de propriedades úteis.

Mas, como destaca Wyatt, os objetos ―obviamente‖ não existem isoladamente (MELO-MARTÍN et al, 2011). Eles podem ser combinados de várias maneiras de forma a alcançar uma variedade de finalidades sociais.

Existe, assim, o nível de instrumentalização secundária em que os objetos anteriormente simplificados são integrados a um mundo social. Segundo Feenberg (1991), nesse segundo nível introduzimos propósitos que podem ser integrados a outros dispositivos e sistemas já existentes, tais como princípios éticos e estéticos. Enquanto o nível primário simplifica objetos para incorporação a uma tecnologia, o segundo nível integra os objetos simplificados a um ambiente natural e social. Inspirada no estudo empírico da tecnologia da corrente construtivista, é o nível da implementação da tecnologia por determinados grupos sociais. Assim, nesse segundo nível, revelam-se as maneiras como os agentes percebem os significados dos dispositivos e sistemas que constroem e usam. É a integração do novo arranjo técnico no mundo da vida, nas práticas específicas, em que é ligado a outros dispositivos e enriquecido com significado e utilização específicos. Callon (2010) complementa que instrumentalização secundária (também chamado de recontextualização ou divulgação4) é o momento em que as relações de poder e as condições socioculturais especificam o desenho definitivo, o nível em que determinados grupos sociais integram esses objetos em um ambiente simplificado, enriquecendo-a com sentido, ética e os objetivos sociais que são ―fixados‖ ou embutidos em dispositivos.

Diante disso, Callon (2010) destaca que, por sua constituição, qualquer tecnologia demanda uma análise que considere a existência de um processo de instrumentalização dupla. Enquanto a primeira instrumentalização tende a

circunscrever interações, discussões e da oposição dos especialistas e peritos que projetam a tecnologia, a segunda amplia este debate para incluir as causa de grupos que se consideram afetados pelo uso e efeitos dessas tecnologias,. Esses grupos então se esforçam para moldar as tecnologias desenhadas de forma a resolverem os problemas causados pelas próprias tecnologias. Para o autor, através da estruturação do projeto e integração social das tecnologias, essa dupla instrumentalização torna-se acessível nao somente a experts e especialistas técnicos, mas também a leigos e não-especialistas.

Mas existem várias maneiras de organizar as instrumentalizações. Uma característica relevante do processo é que essas duas fases de instrumentalização acontecem não somente uma vez, mas diversas vezes ao longo do desenvolvimento da tecnologia. Callon (2010) afirma que passar da conceituação inicial funcional (instrumentalização primária) para a realização efetiva de um dispositivo introduz uma série de novas restrições e possibilidades que refletem o ambiente técnico e social existente. Assim, em cada etapa da elaboração de um dispositivo técnico, desde sua criação original à sua forma acabada final, mais e mais decisões indeterminadas de design são tomadas em resposta às restrições sociais. Restrições legais, morais e estéticas intervém no processo de concepção e produção, determinando um artefato capaz de entrar num mundo social específico.

Além dessas sucessivas instrumentalizações, outra característica importante do processo é que embora as fases de instrumentalização primária e secundária sejam analiticamente distintas, estão inextricavelmente imbricadas na prática e não devem ser tomadas como fases subseqüentes no tempo. Segundo Callon (2010), os dispositivos estão, pois, em dois contextos radicalmente diferentes, mas essencialmente interligados: o contexto técnico de desenvolvimento e de produção e o contexto do mundo da vida, da revelação e utilização, em relações mais ou menos harmoniosas, mais ou menos tensas (dependendo de cada caso). O autor afirma que, diante disso, a solução que respeita a essência da tecnologia é a que faz ambas as instrumentalizações explícitas, sem procurar confundi-las ou dissociá-las. Assim, a criação tecnológica é feita simultaneamente feito da descontextualização dos elementos chave de seu mundo original, e da recontextualização que reorganiza esses elementos em artefatos para que recomponha um dos novos mundos. Os próprios especialistas técnicos já incorporaram valores sociais durante o seu

trabalho de design - de modo implícito, ou até mesmo de forma explícita. Assim, recontextualização apela para a intervenção e participação dos grupos interessados. Assim, para a Teoria Crítica da Tecnologia, a única solução plausível é a colaboração entre os grupos interessados e especialistas profissionais, uma colaboração que garante que a dupla exigência de descontextualização e recontextualização é cumprida e, simultaneamente, garante que cada uma dessas fases esteja intimamente ligada à outra. Quando ambas as instrumentalizaçoes acontecem simultaneamente, o resultado é preferível ao que teria sido obtido se a segunda instrumentalização estivesse dissociada da primeira, de acordo com o princípio da separação das esferas, extraindo assim o trabalho técnico da discussão política (CALLON, 2010). Apesar disso, Feenberg (2005) afirma que o desenvolvimento tecnológico na modernidade caracteriza-se por uma forte diferenciação desses dois processos, numa nítida distinção entre os fins técnicos e sociais. Às vezes isto pode tomar forma institucional quando, por exemplo, os departamentos de engenharia e design de uma organização são separados.

Estes dois níveis de instrumentalização são codificados num artefato, geralmente invisível para o usuário comum. Para articular essa relação entre necessidades sociais e técnicas em um artefato tecnológico Feenberg introduz o conceito de ―código técnico‖. Um código técnico seria a realização tecnicamente coerente de um interesse numa solução a um problema. Onde tais códigos são reforçados pela lei e pelos interesses próprios de indivíduos, sua importância política geralmente passa despercebida. Eis o que significa chamar uma determinada maneira de vida de culturalmente segura e a força correspondente de hegemônica. Assim como a filosofia política problematiza formações culturais cujas raízes estejam na lei, também a filosofia da tecnologia problematiza formações que com sucesso tenham raízes nos códigos técnicos.

Callon (2010) define esse códigos técnicos como sendo versões institucionalizadas das interações entre a codificação inicial realizada pelo especialista técnico e a recodificação do mundo da vida, e permitem explicar porque se afirma que os artefatos tecnológicos não são neutros e carregam valores. Arikasa (MELO-MARTÍN et al, 2011) afirma que a virtude dessa concepção de desenvolvimento de códigos técnicos é permitir identificar dimensões sociais e políticas no desenvolvimento de uma tecnologia, ou seja, demonstrar que as forças sociais têm conformado até o que poderia ser visto como uma decisão puramente

técnica, como evidencia o determinismo da tecnologia. Uma das funções do código técnico é obscurecer as dimensões sociais, políticas e estéticas dos processos técnicos. Nesse sentido, a análise dos códigos técnicos permite compreender o cenário de tomada de decisões técnicas em que certas escolhas parecem racionais. A Teoria Crítica da Tecnologia enfatiza a ambigüidade e possibilidades de liberdade e democracia no desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, a tecnologia é ambivalente diante da possibilidade de se constituir, simultaneamente, como tendência ao controle tecnocrático inerente às sociedades modernas, mas também como resistência democrática aos padrões dominantes (MELO-MARTÍN et al, 2011). A tecnocracia é um caminho possível de desenvolvimento, mas a tecnologia tem outros potenciais benéficos que são suprimidos ao longo de seu desenvolvimento.

Mas essa tendência tecnocrática só pode ser revertida pela democratização da tecnologia. Se a tecnocracia tende a restringir a participação em design, a possibilidade de resistência está na democratização desse design, ou seja, na possibilidade de se encontrar maneiras de incluir os valores excluídos em novos arranjos técnicos. De maneira mais específica, a democratização da tecnologia diz respeito a encontrar novas maneiras de privilegiar esses valores excluídos e concretizá-los em novos arranjos técnicos. A solução é abrir a tecnologia a uma extensão mais ampla de interesses e propósitos, para alem das visões dos experts técnicos e das elites políticas e econômicas (CALLON, 2010).

Esse processo requer uma aliança técnica democraticamente constituída de agentes, que inclua os grupos despotencializados afetados pela tecnologia, de modo a resistir a projetos e designs prejudiciais logo de início. Essa aliança levaria em consideração os efeitos destrutivos da tecnologia sobre o ambiente natural bem como sobre os seres humanos. Movimentos democráticos na esfera técnica objetivam constituir tais alianças, autorizando que multiplos grupos interessados, incluindo leigos e não-especialistas expressem seus valores e reivindicações (CALLON, 2010)

Nessa perspectiva, o trabalho de Feenberg enfatiza, segundo Nagel (2008), o interesse público de democratizar o design e implementação de tecnologia para transformar o desenvolvimento tecnológico em direção a outros fins, que não a acumulação de capital e poder. A Teoria Crítica da Tecnologia opera, assim, com uma concepção de democracia que valoriza o processo de deliberação aberto e

participativo (no próprio design da tecnologia) como sendo ele próprio um bem público (NAGEL, 2008).

Considerando essas características, uma vez que os códigos técnicos podem estar explicitamente formulados em especificações técnicas ou implícitos na cultura, formação e design, sua decodificação exige uma análise sociológica. Callon (2010) destaca que o ponto em que o trabalho de Feenberg é estratégico é quando este afirma que, para compreender a essência de uma tecnologia, é necessário mergulhar no ―coração‖ dessa tecnologia e estudar suas características técnicas, as opções alternativas, suas avaliações, e escolhas que eles sustentam. Ao fazer isso, Feenberg, segundo Callon (2010) transforma o pensamento filosófico de cabeça para baixo, ao se colocar, enquanto analista, no lugar exato em que as tecnologias foram projetadas, testadas criticadas, revistas e redirecionadas.

Nesse ponto, tendo então apresentado os principais conceitos que permitem aplicar os fundamentos da Teoria Crítica da Tecnologia na análise empírica de uma tecnologia específica, apresentamos um caso, descrito por Feenberg, que ilustra essa aplicação.