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Diversas críticas tem sido direcionada à abordagem teórica proposta por Feenberg. Uma crítica à Teoria Crítica da Tecnologia é de que, ao defender que a tecnologia é ambígua, a mesma aproxima-se muito da idéia de neutralidade da tecnologia que o próprio Feenberg combate. O autor responde a essa critica afirmando que sua posição de a tecnologia é ambivalente não equivale à noção de neutralidade de tecnologia. Na abordagem da neutralidade, nem a tecnologia é influenciada pelo contexto social nem possui um poder de determinar a sua evolução, sendo então desprovidas de valor e dele independente (DAGNINO, 2007).

Nesse sentido, afirma Feenberg (2011), a versão atual da Teoria Crítica da Tecnologia dirige-se não apenas à primeira geração da Escola de Frankfurt, mas também a certo consenso contemporâneo em filosofia política sobre a neutralidade, defendida por Habermas, por exemplo. O autor explica que a filosofia política abstrai sistematicamente da tecnologia e, desse modo, omite o potencial distópico5 da sociedade avançada. Sob sua ótica, Habermas considera a esfera técnica como um background neutro contra o qual indivíduos e grupos perseguem objetivos pessoais e políticos. Tais objetivos são, de maneira geral, vistos como idéias mais ou menos racionalmente justificáveis a respeito de direitos, vida boa e assim por diante.

Como filósofo da tecnologia, Feenberg afirma rejeitar a concepção da neutralidade da tecnologia. Para o autor, o que significa ser humano não se decide apenas por nossas crenças, mas também, em grande parte, pela forma de nossos instrumentos. E, na medida em que podemos planejar e conduzir o desenvolvimento técnico por vários processos públicos e escolhas privadas é que temos algum controle sobre nossa própria humanidade. A neutralidade geralmente refere-se à indiferença de um meio específico quanto ao alcance de fins a que pode servir. Não existe uma tecnologia indiferente. A tecnologia específica empregada hoje tem

5 Dagnino (2007) descreve as sociedades tecnocráticas em que a ordem política está baseada em perícia e conhecimento técnicos em lugar de cidadania. A esse cenário, descrito pela ficção científica como sendo uma sociedade, ao mesmo tempo plena de horrores, mas fundamentada nas maravilhas científicas e tecnológicas, e perfeitamente racional, Feenberg (1999) denomina "distopias" (utopias negativas).

limitações que não decorrem apenas do estado de nosso conhecimento, mas também das estruturas de poder que influenciam esse conhecimento e suas aplicações. Essa tecnologia contemporânea e realmente existente não é neutra, pois favorece alguns fins específicos e impede outros. Neutralidade é, então, diferente de ambivalência em que, podendo ser concebida de várias formas, a tecnologia incorporará em seu design valores desse contexto social.

Outra forte crítica à Teoria Crítica da Tecnologia diz respeito à dúvida sobre em que medida seria possível combinar abordagens como o Substantivismo e o construtivismo social em uma estrutura comum, como defende Feenberg. Arikasa (MELO-MARTÍN et al, 2011) afirma que uma das características dessa proposta é sua natureza dialética, movimentando-se através de distintas, talvez incompatíveis ou até mesmo contraditórias posições ao invés de apontar uma posição certa. O preço pago, segundo Arikasa, é que isso leva a que a Teoria Crítica da Tecnologia seja tida pelos críticos como demasiadamente otimista e pelos entusiastas como demasiadamente crítica. De fato, ao apresentar sua Teoria da Instrumentalização, Feenberg (1991) reconhece estar propondo o cruzamento da linha que separa claramente a crítica substantivista da tecnologia do construtivismo social, duas abordagens que geralmente são vistas como opostas.

Um obstáculo para a combinação de ambas as abordagens seria o acriticismo da abordagem sociotecnica. Os Estudos Sociais da Tecnologia, ao tratarem nos últimos anos da influência da política, da cultura e da economia no desenvolvimento científico-tecnológico, possibilitaram a apreensão da construção social da tecnologia como algo intrínseco à sua dinâmica. Entretanto, as pesquisas conduzidas no âmbito do construtivismo focam casos particulares de desenvolvimento tecnológico sem referir-se ao contexto social maior no qual estes casos estão inseridos e desempenham um papel politicamente significativo.

Nesse sentido, Winner (1993) critica contundente o construtivismo, argumentando que este tem passado ao largo da possibilidade de que a interação entre os grupos sociais relevantes no processo de construção de um artefato não explicita a possibilidade de que existam aspectos culturais, intelectuais ou econômicos recorrentes presidindo as suas escolhas. Assim, ao ignorar relações de poder e não atentar para as implicações sociais desse processo, o construtivismo apenas contemplaria o status quo e suas injustiças. Na mesma linha, Katz (apud DAGNINO, 2007) afirma que o principal problema do construtivismo é sua tendência

a conceder ao acaso um rol central na mudança tecnológica. O autor afirma que a perspectiva construtivista conclui erroneamente que a "construção social do artefato" é um acontecimento indeterminado e dependente do comportamento de atores, cuja ação não está claramente contextualizada.

Considerando essas críticas à abordagem construtivista, em que medida, como questiona Dagnino (2007), o argumento central de que a tecnologia é socialmente construída por ―grupos sociais relevantes‖ no âmbito do ―tecido sem costuras‖ da sociedade pode ser estendido para acomodar a colocação de que esse processo de construção social da tecnologia possui um conteúdo de classe, como defende a Teoria Crítica da Tecnologia?

O próprio Feenberg (2005) afirma que, por um lado, enxerga as potenciais contribuições do debate construtivista, mas que por outro essa vertente não oferecia argumentos fortes contra o determinismo tecnológico que poderiam ser empregados para apoiar a idéia de mudança democrática na esfera técnica. Diante disso, Feenberg (1991) afirma que nega a recusa das escolas de pensamento sociotecnicas de engajarem-se com os temas mais amplos da modernidade abordados pela Escola de Frankfurt. Ao apresentar a vertente construtivista da Teoria Crítica da Tecnologia, o autor destaca reiteradamente essa recusa, como pode ser observado:

Mais uma vez mais, sou seletivo ao delinear essa tradição. Não aceito seu empirismo e sua rejeição das categorias da teoria social tradicional. Em vez disso, tento integrar seus insights metodológicos numa teoria da modernidade que seja concebida de maneira mais ampla. (FEENBERG, 2005, pg. 7)

Nesse sentido, Feenberg (2011) defende que a Teoria Crítica da Tecnologia vai além de meramente afirmar que as tecnologias são estruturas sociais em que os grupos incorporam identidades sociais e pessoais. Adotando uma abordagem crítica, chama a atenção para a suspeita que questiona relações de desigualdade e poder nessas estruturas sociais.

Uma terceira crítica diz respeito a se, e como, caminhos alternativos e de resistência, especialmente aqueles que desafiam os padrões dominantes, realmente desenvolvem. Arikasa (MELO-MARTÍN et al, 2011) destaca um desafio - uma vez que intervenções culturais em concepções técnicas podem ocorrer nas periferias e até mesmo, em alguns casos, integrarem-se ao sistema global, na economia global

dominada por corporações transnacionais (que controlam não somente os designs técnicos, mas também definem valores técnicos e culturais), como podem os caminhos alternativos e de resistência, especialmente aqueles que desafiam os padrões dominantes, realmente desenvolverem-se? Nesse sentido, prossegue o autor, a desigualdade de poder, acessibilidade, conhecimento técnico, recursos e infraestrutura, entre outros, são obstáculos para aqueles que não tem poder serem capazes de desenvolver uma voz própria. Na mesma linha, Ingram (MELO-MARTÍN et al, 2011) destaca que um desafio que se impõem para a Teoria Crítica da Tecnologia é como democratizar o sistema, para torná-lo sensível a um maior gama de forças sociais do que geralmente prevalece nas condições atuais.

Arikasa destaca que, embora a Teoria Crítica da Tecnologia possa conceber teoricamente alternativas de dissidência e transformação democrática, a sobredeterminação da cultura técnica global através da estrutura de poder global praticamente elimina essa possibilidade (MELO-MARTÍN et al, 2011). Nesse cenário, será que os engenheiros e os técnicos em desenvolvimento se tornariam progressivamente mais conscientes politicamente? Ou a resistência se daria através de organizações internacionais ou uma coalizão de governos nacionais que supervisionem e regulem os desenvolvimentos tecnológicos que sejam globalmente mais democráticos? Ou indústrias progressistas incentivariam financeiramente formas globalmente mais justas e / ou sustentáveis de tecnologia?

À pergunta sobre se tecnologias alternativas podem ser desenvolvidos em um mundo tão completamente dominado pelo capitalismo global, Feenberg (2011) responde que, se isso não fosse possível, sua demonstração da possibilidade de alternativas, em princípio, seria sem aplicação. Como argumento, o autor cita o movimentos que ocorrem na América Latina como um exemplo bem sucedido de aplicação da Teoria Crítica da Tecnologia. Nesse cenário, explica Feenberg (2011), a exclusão de bilhões de pessoas pobres da modernização parcial que tem tido lugar em sociedades em desenvolvimento desestabiliza e suscita idéias para cenários alternativos de desenvolvimento. Assim, os movimentos de "tecnologia social" na América Latina reúnem parcerias de profissionais técnicos e pessoas de baixa renda e não são mais marginais, e começam, segundo o autor, a ganhar o apoio de governos e grandes instituições econômicas.

Finalmente, Callon (2010) e Wynne (2010) sugerem que a Teoria Crítica da Tecnologia e a sociologia da tecnologia compartilham a preocupação de desenvolver

uma política tecnológica mais democrática (o que significa, inclusive, que os pesquisadores de sociologia da tecnologia podem ter que se reengajar com questões normativas, num reconhecimento dessa ―insuficiência‖ atual da abordagem construtivista, como mencionado antes). Mas uma questão que ambos colocam é: com o que essa política tecnológica democrática se pareceria? O desafio é se os insights teóricos inspirados por essas vertentes poderiam de fato ser úteis para a mudança e ação política, assim como são úteis para pesquisas empíricas. A esse questionamento, Feenberg (2011) responde haver muitas possibilidades de ação política, através de atos individuais e coletivos de resistência, assim como tanto de formas representativas quanto participativas de engajamento democrático. O autor cita que outros teóricos da sociologia da tecnologia já estão engajados em experimentações e teorizações de novas formas de política tecnológica democrática. Feenberg (2011) reconhece, por exemplo, que a noção de democracia tem recebido muito menos atenção do que a noção de tecnologia, de forma que as maneiras em que a democracia varia ao longo do tempo, a localidade, e emissão ainda precisam de mais atenção.

2.7 – DESDOBRAMENTOS

Feenberg (2011) defende que ainda há muito trabalho a ser feito. A filosofia da tecnologia fez um longo trajeto desde Heidegger e Marcuse, mas é preciso inventarmos nossa própria resposta para a situação em que nos encontramos.

O autor afirma que o capitalismo suplantou suas várias crises e agora organiza o mundo todo numa rede fantástica de conexões, com conseqüências contraditórias. A manufatura fluiria dos países adiantados para a periferia de baixos salários à medida que as doenças penetram, os direitos humanos revelariam um desafio a costumes regressivos em alguns países ao mesmo tempo em que fornecem a outros álibis para novas aventuras imperialistas. Para Feenberg, a consciência ambiental nunca teria estado maior, no entanto pouquíssimo é feito para dirimir desastres como o aquecimento do planeta. A proliferação nuclear finalmente é combatida com energia num mundo em que um número cada vez maior de países tem boas razões para adquirir armas nucleares.

Relacionando esse debate especificamente aos efeitos da Internet, ao mesmo tempo em que esta abre fantásticas oportunidades para a comunicação humana, se vê inundada por comercialismo. Sendo assim, o debate que desde os anos 90 polariza a natureza da relação entre as TIC e a democracia prossegue: por um lado, entusiastas baseiam-se em processos como a emergência das discussões em comunidades virtuais e a arrecadação de fundos na campanha eleitoral norte- americana, por exemplo, para reafirmar que as novas tecnologias podem ser soluções para alguns dos problemas da democracia representativa ou restauração da esfera pública. Por outro lado, os críticos vêem Internet como apenas um shopping center digital, um aprofundamento da racionalização capitalista em cada aspecto de nossas vidas, uma rede cada vez mais densa de tecnologias de vigilância que ameaçam a autonomia individual.

Nesse cenário, Feenberg (2011) defende que, como o processo ainda está em aberto, o debate entre entusiastas e críticas não apenas não arrefeceu como está longe de acabar. Nesse sentido, a contribuição da Teoria Crítica da Tecnologia para essa discussão é, como apresentamos, se abster de definir a priori, como outras perspectivas teóricas fazem, a natureza mais ou menos democrática dos artefatos tecnológicos. Assim, embora uma tendência de dominaçao racional esteja presente na funcionalização perseguida pelos especialistas no primeiro nível de instrumentalizaçao, existe também um potencial de resistência no reapropriação dos grupos interessados envolvidos na segunda instrumentalização. Nesse cenário, assim como a Internet ainda está inconcluída, está em aberto também a resposta sobre seus efeitos transformadores na sociedade, e a maioria das implicações democráticas inovadoras da Internet estão somente começando a emergir.

Assim, construir um quadro integrado e unificado do mundo contemporâneo tem se tornado muito mais difícil à medida que os avanços tecnológicos derrubam as barreiras entre esferas de atividade a que correspondem às divisões entre as disciplinas. Nesse cenário, Feenberg defende (2005) que a Teoria Crítica da Tecnologia possibilita reconciliar muitos pontos de reflexão aparentemente conflitantes sobre a tecnologia e que, apenas por intermédio de uma abordagem que seja tanto crítica quanto empiricamente orientada é que será possível encontrar um sentido para o cenário atual.

Nesse sentido, Feenberg (2005) defende que uma contribuição da Teoria Crítica da Tecnologia seria a possibilidade de unir as duas vertentes, a do empirismo

construtivista e a crítica mais ampla da modernidade. Por um lado, a Teoria Crítica tem interpretado o mundo à luz de suas potencialidades, e, por outro lado, a pesquisa empírica pode ser mais do que uma coleção de fatos e pode dar forma a uma discussão de nossos tempos. Entretanto, isto ainda é pouco percebido pela maioria dos atores sociais envolvidos com o tema e a compreensão da tecnologia enquanto instrumento neutro, verdadeiro, universal e indiferente aos interesses políticos é ainda predominante.

Nesse contexto, Feenberg (2005) defende que a filosofia da tecnologia pode unir dois extremos, a potencialidade e a efetivação, as normas e os fatos, de um modo com o qual nenhuma outra disciplina pode rivalizar.

3. UM FRAMEWORK ANALÍTICO PARA A PARTICIPAÇÃO DIGITAL

Tendo apresentado no capítulo anterior os principais conceitos da Teoria Crítica da Tecnologia, neste capítulo identificamos as potenciais contribuições desse framework teórico para um modelo analítico aplicável na investigação empírica de iniciativas de participação digital. Para tanto, em primeiro lugar apresentamos os pressupostos teóricos da área de participação digital, incluindo algumas definições adotadas para conceituá-la e sua relação com o conceito de democracia digital. Em seguida, descrevemos as categorias que compõem o Modelo Panorâmico de Saebo, Rose e Flak (2008), o principal framework analítico adotado na pesquisa em participação digital. Finalmente, são propostas alterações ao Modelo Panorâmico que, sob o ponto de vista da Teoria Crítica da Tecnologia, poderiam contribuiriam para enfrentar alguns dos desafios atuais da área, sobretudo aqueles relacionados à equidade e ao design da tecnologia.