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2. ATITUDE NATURAL: A REFLEXÃO RADICAL

2.1. O problema e a necessidade do método

2.1.3. A essência

Considerando que se deva manter uma sorte de recondução ao âmbito eidético, deve-se perguntar: o que é uma “essência”? Para Merleau-Ponty, ela é um meio, uma maneira de realizar este afastamento necessário que constitui a epoché. Com efeito, para compreender a percepção do mundo, é preciso afastar-se desta relação imediata que travamos com ele, saindo do fato de nossa existência, para a sua

essência. O campo da idealidade é necessário para conhecer e conquistar

a facticidade119. Ao admitir isto, Merleau-Ponty assume também que este é o campo da compreensão, da reflexão filosófica e que ele é um excesso no sentido de uma “diferença para mais”. Isto que a fenomenologia diz que a ciência faz, a saber, confundir o conceito com a

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Esta é a palavra que Merleau-Ponty usa em PhP, com efeito, examinando os limites da Gestaltheorie ele diz: “[...] elle ne s’aperçoit pas que toute une

reforme de l’entendement est nécessaire si l’on veut traduire exactement les phénomènes [...]” (grifo nosso) (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 75). Ela causa

certo embaraço, afinal, “traduzir exatamente os fenômenos” é uma demanda que parece ir contra a sua noção de reflexão radical que justamente deveria incorporar a impossibilidade desta tradução exata. Fica a suspeita para posterior análise, quando se aprofundará mais especificamente no problema da reflexão. 118

Cf. “L’atention’ et le ‘jugement’” in: MERLEAU-PONTY, 2005, p. 75-76. 119

percepção, seria na verdade apenas mais uma maneira de lidar com a necessidade de afastamento.

Já o próprio fato de que a percepção seja de algo é fruto de um êxtase da experiência (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 99)120. O que tacitamente a descrição fenomenológica ensina é que o objeto

intencional não é efetivamente dado na dispersão dos perfis, mas ainda

assim identifica-se a unidade das experiências. Para esse mistério, Merleau-Ponty quer dar uma solução diferente da kantiana, isto é, ele não quer partir do pressuposto de que o múltiplo da sensibilidade dependa da síntese categórica e judicativa do entendimento. Antes de pressupor a explicação das condições de possibilidade da percepção, como se a apreensão de algo fosse tributária de uma ação do entendimento sobre ela, ele pretende descrevê-la tal como ela se dá.

A percepção de algo se dá no que Merleau-Ponty chama de estrutura “objeto-horizonte”. O objeto percebido é penetrado por todos os olhares que recaem sobre ele; é o mesmo visto de todos os lugares. Além de oferecer vários pontos de vista distintos, ele está numa relação com outros objetos, num horizonte. Destacar um é ocultar inúmeros. Este esquema asseguraria a identidade do objeto na exploração, nele os objetos se dissimulam e se revelam. Eles só se mostram na visão porque estão escondidos uns atrás dos outros ou atrás de quem os vê:“[...] olhar um objeto é vir a habitá-lo e daí apreender todas as coisas conforme a face que elas voltam para ele” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 96)121. Esta estrutura também é válida desde a perspectiva temporal, isto é, o objeto é o mesmo visto a partir de “diferentes” momentos. Cada presente funda um ponto do tempo que solicita o reconhecimento de todos os outros. O presente conserva o passado imediato, que conserva o passado anterior: “o tempo escoado é inteiramente retomado” no presente. Há para o outro lado um futuro iminente, que também terá seu horizonte de iminência e o presente é o futuro desse passado imediato. O presente não é destruído, mas um ponto fixo e identificável em um tempo objetivo122.

Conforme esse esquema, a essência é o modo como esta dispersão é “domada”. Ela permite o recuo necessário para a compreensão, para a reflexão sobre o objeto percebido, mas não para a percepção dele. Na intimidade perceptiva, apesar do horizonte, o olhar

120

Grifo nosso. 121

“[...] regarder un objet, c’est venir l’habiter et de là saisir toutes choses

selon la face qu’elles tournent vers lui”

122

humano só põe uma face do objeto. No espaço e no tempo nunca se tem o objeto em sua plenitude. A síntese dos horizontes é presuntiva e só opera com certeza naquilo que pertence à circunvizinhança imediata do objeto. Quer dizer, é preciso um afastamento do tempo, mediado pela linguagem para confrontar tanto as visões precedentes quanto as alheias acerca de um mesmo objeto. O que está distante é um horizonte e deixa o objeto inacabado e aberto, tal como ele é na percepção. Escoa com isso sua substancialidade – o “objeto absoluto” unificaria a infinidade de perspectivas diferentes, mas elas jamais podem ser apreendidas de uma só vez.

Na atitude naturalista esquece-se desse horizonte de tempo e de espaço por onde escoam os perfis do percebido, que a percepção é um êxtase da experiência, no qual a posição de objeto faz ultrapassar os limites da efetividade e, numa “obsessão pelo ser”, conclui-se que as partes do objeto coexistem e seu presente não apaga seu passado123. Ao instalar-se naquilo que Merleau-Ponty chama de pensamento objetivo, o presente deixa de ser o ponto de vista sobre o tempo para ser um momento do tempo entre outros, quer dizer, decola-se da experiência e passa-se à ideia. Nesse pensamento de sobrevôo não é necessário se ocupar do corpo, do tempo ou do mundo tal como eles são vividos no saber antepredicativo. O problema para ele é que, assim procedendo, perde-se contato com a experiência perceptiva da qual esse tipo de pensamento é, em verdade, resultado e consequência natural124.

Mais uma vez, Merleau-Ponty parece apelar para uma espécie de dialética — desta feita, entre fato e essência. Nem as essências funcionam como conceitos criados para dar conta do múltiplo, ou como condições a priori da possibilidade de sua síntese (em ambos os casos elas estariam separadas do fato); nem elas são o próprio fato, o que seria uma contradição. O sentido de uma experiência não transcende o tempo se instalando na rede de uma superestrutura transcendental, tampouco nossas experiências se reduzem a um feixe de vivências dispersas e sem conexão. Entre uma solução e outra deve haver um “meio-termo”, uma dialética que faça comunicar a singularidade de cada aspecto e a idealidade do objeto.

Nos moldes em que a filosofia merleau-pontyana se constrói, o problema da essência remete a uma questão de linguagem, de expressão e não mais de ousia, de substância. Deste ponto de vista, ela não constitui um terceiro termo entre sujeito e objeto. Ela não é uma

123

Cf. MERLEAU-PONTY, 2005, p. 98-99. 124

construção mental que opera como um índice de objetos intra e extramentais, meus e alheios. Merleau-Ponty se vale então da noção

essência concreta. Quando a análise intelectualista faz a “função

simbólica” ou “de representação” repousar sobre si mesma, ela a destaca dos materiais nos quais ela se realiza125. O que, entretanto, o filósofo francês quer com esta noção de essência concreta é demonstrar que na verdade só encontramos “essências materialmente preenchidas”.

A passagem da ordem da existência à ordem do valor feita no intelectualismo equivale a uma abstração, pois nela a variedade dos fenômenos torna-se insignificante e incompreensível. A pretensão merleau-pontyana é a de eliminar esta distinção entre os dados sensíveis e a sua significação. Dizer que a essência é concreta ou que ela é

encarnada significa dar ao singular o valor que ele tem e tirar do

essencial o peso de imutável e definitivo que a tradição nele colocou. Significa também, reconhecer que a essência não vem de um “céu transcendental” para esquematizar e organizar os dados da sensibilidade. Ela brota junto com eles, numa necessária contingência. Merleau-Ponty ressalta aqui a dialética fenomenológica entre matéria e forma, a

Fundierung, a relação de fundação entre ambas. Com efeito, ele

remarca:

[...] a função simbólica repousa sobre a visão como sobre um solo, não que a visão seja sua causa, mas, porque ela é este dom da natureza [...]. A forma se integra ao conteúdo ao ponto que ele acaba por aparecer como um simples modo dela mesma e as preparações históricas do pensamento como um truque da Razão disfarçada em Natureza — mas, reciprocamente, até sua sublimação intelectual, o conteúdo permanece como uma contingência radical (MERLEAU- PONTY, 2005, p. 160-161)126.

Pode-se remeter aqui à visão ou intuição de essência e à sua

125

Cf. “La spacialité du corps propre et la motricité” in: MERLEAU-PONTY, 2005, p. 157.

126

“[...] la fonction symbolique repose sur la vison comme sur un sol, non que

la vision en soit la cause, mais parce qu’elle est ce don de la nature [...]. La forme s’intègre le contenu au point qu’il apparaît pour finir comme un simple mode d’elle-même et les préparations historiques de la pensée comme une ruse de la Raison déguisée en Nature, — mais réciproquemente, jusque dans sa sublimation intellectuelle, le contenu demeure comme une contigence radical

relação íntima com a intuição individual, que sempre foram temas caros à fenomenologia husserliana. Para ele, não só toda intuição individual pode ser convertida em essencial (e vice-versa), como na sua base se encontra uma parcela importante de intuição individual. Esta apreensão intuitiva pode ser adequada, mas para todas as realidades em geral ela é, na verdade, inadequada. É próprio à essência de certas categorias eidéticas só poderem ser dadas por um lado: “[...] toda qualidade física nos enreda nas infinidades da experiência, mesmo fazendo abstração dessa inadequação, que se mantém constante apesar de todo ganho e qualquer que seja o avanço que se faça em intuições contínuas” (HUSSERL, 2006, p. 36). Essências e fatos são inseparáveis. Os fatos se encontram sob “verdades de essência de diferentes níveis de

generalidade”. Cada indivíduo é composto de predicáveis essenciais que

devem lhe ser atribuídos, mas também se reproduzem em outros indivíduos127.

A fidelidade merleau-pontyana a Husserl encontra, contudo, um limite; na fenomenologia husserliana a apreensão intuitiva pode ser não só “adequada” n’alguns casos, como também apodítica: trata-se da apreensão da essência da consciência. Mesmo em Husserl, a redução nunca deixa de ser eidética, mas as relações essenciais que serão investigadas no nível transcendental remontam ao ser absoluto que resta como resíduo da epoché. Este ser absoluto abriga em si todas as transcendências mundanas, as “constitui” (HUSSERL, 2006, p. 117) e suas relações devem poder ser clarificadas de modo absoluto.

Este “mal passo” husserliano teria comprometido seu vínculo com as melhores intenções da filosofia contemporânea e denunciado um resquício de modernidade na sua teoria. Embora também ele se ocupe do

fato, o tome por tema e, principalmente, ocupe-se da resistência da

passividade (em relação à constituição) e do outro, Husserl não teria dado conta do problema da reflexão aí envolvido. Por esta tentativa de clarificação translúcida do ser absoluto da consciência, ele se enquadra na mesma acusação que a análise reflexiva intelectualista de um modo geral: nivelar a experiência do naturalismo científico à da consciência constituinte universal, fazendo do eu empírico “[...] uma noção bastarda, um misto de em si e para si, ao qual a filosofia reflexiva não podia dar estatuto” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 82)128. Vê-se, então, que com o

127

Sobre isto cf.: “§2. Fato. Inseparabilidade de fato e essência” e “§3. Visão de essência e intuição individual”. In: HUSSERL, 2006, p. 34-38

128

“[...] une notion bâtarde, un mixte de l’en soi et du pour soi, auquel la

problema dos níveis metodológicos a discussão atingiu a concepção de subjetividade, por um lado, e de reflexão, por outro, à medida que a redução ao transcendental não conseguiria dar conta deste eu concreto, pois, “[...] enquanto ele tem um conteúdo concreto, ele está inserido na experiência, não é portanto sujeito — enquanto é sujeito, é vazio e se reduz ao sujeito transcendental” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 83)129.

Por um lado, isto ajuda a compreender porque neste momento de sua obra Merleau-Ponty assume a redução eidética, mas condena a passagem ao nível transcendental. Por outro esta discussão indicou os termos envolvidos no problema da reflexão: trata-se de investigar o hiato que existe entre o sujeito individual, que conhece as coisas desde uma perspectiva particular, e a subjetividade, enquanto conceito que define suas relações com mundo – isto sem suprimir a possibilidade de se teorizar acerca deste conceito e também sem cair numa perspectiva psicologista. Uma árdua tarefa que, para Merleau-Ponty, consiste em fazer justiça ao irrefletido desde onde a reflexão parte.