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A redução e a reflexão radical

2. ATITUDE NATURAL: A REFLEXÃO RADICAL

2.1. O problema e a necessidade do método

2.1.4. A redução e a reflexão radical

Na obra o PP, Merleau-Ponty apresenta o dilema da reflexão posta nos moldes em que ele o faz. Com efeito, ele admite: “a experiência perceptiva é contraditória porque ela é confusa; é preciso pensá-la; quando se pensa, suas contradições se dissipam à luz da inteligência” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 53)130. Parece então que o único meio de reportar-se ao mundo percebido, sem “deformá-lo” de suas contradições originárias, seria permanecer na maneira como ele é vivido sem refletir ou pensar sobre ele. Como equacionar esse problema à luz da reflexão?

A proposta merleau-pontyana de uma reflexão radical é a demanda de uma postura crítica frente ao que ele considera o ideal científico no que tange à investigação sobre o mundo vivido e sobre a percepção. Ora, é relativamente natural na esfera de uma investigação que se pretende científica se preocupar em poder falar de seus objetos desde uma perspectiva universalmente válida, em não explicar apenas

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“[...] en tant qu’il a un contenu concret, Il est inseré dans le système de

l’expérience, il n’est donc pas sujet, — en tant qu’il est sujet, Il est vide et se ramène au sujet transcendantal”

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“l’expérience perceptive est contradictoire parce qu’elle est confuse; Il faut

la penser; quand on la pensera, ses contradictions se dissiperont à la lumière de l’intelligence.”

experiências singulares; enfim, em ser capaz de chegar a um conhecimento que explique diversos fatos que possam ser encaixados na mesma ‘categoria’. Isto responde a um ideal de ciência há muito difundido e para o qual se pode encontrar já nas formulações aristotélicas uma fecunda expressão.

Com efeito, no primeiro livro da Metafísica, Aristóteles alega que não há ciência do particular e ao investigar as características da Sabedoria conclui que a primeira delas é a de conhecer todas as coisas, por isso quem a possui: “possui a ciência do universal. De fato, sob certo aspecto, este sabe todas as coisas particulares, enquanto estão sujeitas ao universal” (ARISTÓTELES, 2005, p. 9). Desta perspectiva, De Waelhens bem aponta que para Merleau-Ponty: “conhecer o mundo, no sentindo científico da palavra, é negligenciar o ente na sua significação individual, é desenhar uma ou as estruturas [s.i.c.] no interior das quais o ‘isto’ ou a ‘ecceidade’ de tal ‘isto’ não tem nenhuma significação” (DE WAELHENS, 1978, p. 94)131.

Embora o problema do método pensado enquanto epoché tal como se encontra na PhP ainda não apareça devidamente caracterizado em seus primeiros escritos, em especial na SC, pode-se afirmar que, assim como a crítica à tese naturalista, já se apresentava precocemente na obra merleau-pontyana uma motivação para o estabelecimento do método. De acordo com o detalhado estudo de Geraets sobre estas duas primeiras publicações, a filosofia de Merleau-Ponty “parece um grande esforço para ultrapassar a discordância entre ‘o ponto de vista reflexivo’ e o ‘ponto de vista objetivo’, entre isto que ele chama na Fenomenologia

da Percepção ‘a perspectiva idealista’ e ‘a perspectiva realista”

(GERAETS, 1971, p. 32)132. Tal projeto encaminha a uma revisão das categorias mais elementares que já fora iniciada pela análise do comportamento. A própria escolha desta noção indica uma conversão metodológica interessante: a de se partir dos fenômenos tal como eles são vistos do exterior e não depois de eles já terem se tornado objeto de reflexão.

Intentava-se, assim, evitar a introdução prévia da consciência

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“connaître le monde, au sens scientifique du mot, c’est négliger l’étant dans

sa signification individuelle, c’est dessiner une ou des structures à l’intérieur desquelles le ‘ceci’ ou l’eccéité de tel ‘ceci’ n’a aucune signification.”

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“semble un grand effort pour surmonter la discondance entre ‘le point de

vue réflexif’ et ‘le point de vue objectif’, entre ce qu’il appelle dans la

Phénoménologie de la perception ‘la perspective idéaliste’ et ‘la perspective

pura ou transcendental e o risco de se perder com isto o essencial do fenômeno da percepção. Este passo metodológico é designado como a “perspectiva do espectador estrangeiro”133, a partir do qual Merleau- Ponty entende ser necessário se iniciar um estudo da percepção (o que não implica que se deve aí permanecer). Por isto, ele “[...] se engaja à fundo num estudo verdadeiramente exterior: empregando os procedimentos tradicionais da ciência, estudando os comportamentos animais e humanos do ponto vista do espectador estrangeiro” (GERAETS, 1971, p. 38)134.

É esta medida que o leva a escolher a noção de estrutura. Ela corresponde às exigências metodológicas de base, por exprimir o comportamento sem ser enquanto coisa ou enquanto ideia e por se tratar de algo que se oferece tanto à percepção quanto ao pensamento. Enquanto estruturado em diferentes níveis (as tais formas de que se falou anteriormente), o comportamento é observável em gestos, na aprendizagem, etc. O organismo “traça” no mundo suas intenções. Desde a perspectiva do espectador estrangeiro observa-se esta distinção entre uma ordem do em-si e do para-si: a primeira, relativa aos comportamentos inferiores, dependentes dos estímulos físicos, e a segunda, aos comportamentos superiores que não têm dependência material, são uma prospecção. Ambas, se tomadas isoladamente, são transparentes para a inteligência, seja como ordem exterior para o pensamento físico; seja como a ordem do interior que depende de uma intenção, para a reflexão. Aqui vale fazer notar que já neste momento da sua obra, Merleau-Ponty identifica o termo reflexão ao pensamento, seja o do psicólogo ou o do filósofo, que se põe numa interioridade em relação ao mundo, retorna sobre si e crê nesta volta poder ter clareza acerca de seu objeto, que neste caso é ele mesmo.

Justamente o comportamento, entretanto, escapa a esta clara distinção reflexiva; graças a seu caráter ambíguo, ele se deixa entrever nas duas ordens e, ao mesmo tempo, não pode ser definido por nenhuma isoladamente. As variáveis das quais ele depende não se encontram em estímulos reais do mundo físico, mas em relações que não estão contidas neles. A proposta merleau-pontyana é a de pensá-lo desvinculado de uma relação estritamente realista com isto que se observa, mas,

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Sobre Merleau-Ponty, Geraets dedica uma boa parte de sua obra, cf. “La

pensée du spectateur etranger” (in: GERAETS, 1971, p. 38-77).

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“[...] s’engage à fond dans une étude véritablement extérieur : en employant

les procédés traditionnels de la science, en étudiant les comportements animaux et humains du point de vue d’un spectateur étranger.”

tampouco se deverá pressupor que atrás disto que é visível se “esconda” uma consciência. O que se mostra é apenas uma “certa maneira de tratar o mundo”, de “ser no mundo”, enfim, “de existir”135.

Ao se pôr diante disto que é observável no comportamento do organismo, contudo, o espectador até então meramente estrangeiro

pensa encontrar estruturas, mas pode ele fazê-lo sem apelar a uma

reflexão? Mesmo em caso afirmativo, ele deixaria de ser estrangeiro visto que buscaria neste retorno o sentido para expressar tais estruturas. De acordo com Geraets, “esta problemática constitui o primeiro encontro de Merleau-Ponty com isto que ele chamará mais tarde ‘a luta da expressão e do exprimido’” (GERAETS, 1971, p. 47-48)136. Já desde a perspectiva biológica, o conhecimento do comportamento humano demanda a apreensão imediata de certos gestos e atitudes que não são completamente apreendidos na percepção comum. O cientista deve corrigir estas imperfeições, e o faz com a formação de ideias mais adequadas tais como a de macho e fêmea. Geraets, porém, põe a questão: pode o biólogo ater-se ao ponto de vista do espectador estrangeiro? Estas noções significam realmente um estudo do comportamento visto de fora? Eis o problema da relação entre pensamento científico e percepção, no qual se engaja Merleau-Ponty desde este momento germinal de seu pensamento.

Começar do ponto de vista “exterior” visava não pôr previamente o cogito como dado, mas, quando o biólogo diz, por exemplo, que o animal está cansado ele ultrapassa este ponto de vista e a ciência da vida parece implicar o uso da experiência que o cientista tem de si mesmo137. Enquanto se trata de um estudo puramente externo, as

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“Les gestes du comportement, les intentions qu’il trace dans l’espace autour

de l’animal ne visent pas le monde vrai ou l’être pur, mais l’être pour-l’animal, c’est-à-dire un certain milieu caractéristique de l’espèce, ils ne laissent pas transparaître une conscience, c’est-à-dire un être dont toute l’essence est de connaître, mais une certaine manière de traiter le monde, d’‘être au monde’ ou d’‘exister. ” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 136)

136

“cette problématique constitue la première rencontre de Merleau-Ponty avec

ce qu’il appellera plus tard ‘la lutte de l’expression et de l’exprimé”

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Há aqui um desdobramento concernente à percepção que ainda não seria reconhecido por Merleau-Ponty. “[...] d’abord parce que les comportements

animaux et humains qui font l’objet de cette étude sont, du moins par un côté, des comportements perceptifs, ensuite parce que celui qui effectue cette étude s’y trouve engagé en tant que sujet perceptif. Il est évident que dans la mesure où ce second aspect est explicité, un changement de méthode se produit : d’une étude de la perception comme comportement vue du dehors, on passe à une

unidades de significação que uma consciência vê se desenvolver diante

dela são estruturas e o pensamento do espectador estrangeiro é apenas

estrutural. Sem esta experiência do “interior”, porém, a biologia seria reduzida a certa esterilidade e, ao mesmo tempo, isto não deve conduzir à uma teoria da projeção que isola a experiência exterior como sendo uma interpretação feita desde uma interioridade. Os sentimentos só são “projetados” no comportamento visível do animal se algo nele nos sugere esta inferência.Eis que a experiência do “interior” se infiltra, a palavra “eu” aparece. O valor expressivo de um gesto permaneceria opaco se ele não reencontrasse afinidades e potencialidades implicadas na experiência do corpo próprio138.

O método sofre com estas constatações uma reviravolta: a perspectiva do espectador estrangeiro é um ponto de partida, mas que demanda superação na sua dinâmica interna. A unidade de significação dos organismos não é inteiramente redutível à existência de relações estruturais entre as estruturas particulares que compõem o comportamento e sua estrutura total; é justamente a experiência do biólogo que ensina isso, com efeito:

O laço de significação que religa os fatos biológicos entre eles não é contemplado de fora pelo biólogo: com a experiência que ele tem de si mesmo como vivo, ele se encontra aí implicado, e sua percepção do organismo vivo não é aquela de um espectador estrangeiro, mas de alguém que sabe “saborear” isto que ele vê (GERAETS, 1971, p. 67)139.

Por aqui se compreende que o dilema no método é oriundo do seu objeto. Ao introduzir uma descrição direta da percepção vivida, Merleau-Ponty é conduzido a voltar às evidências da consciência e ao método de descrever a experiência tal como a vejo. Especialmente quando se trata da descrição da ordem humana — mas, não apenas neste caso —, é preciso sair desta postura do espectador estrangeiro. Nela, as unidades de significação que uma consciência vê se desenvolver diante

étude de la perception vécue du dedans. ” (GERAETS, 1971, p 39)

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Cf. “Vers une pensée purement strucuturale?” (in :Gerates, 1971, p. 62-67) 139

“Le lien de signification qui relie les faits biologiques entre eux n’est pas

contemplé du dehors par le biologiste : avec l’expérience qu’il a de lui-même comme vivant, il s’y trouve impliqué, et sa perception de l’organisme vivant n’est pas celle d’un spectateur étranger, mais de quelqu’un qui sait ‘goûter’ ce qu’il voit.”

de si não passam de estruturas140, porém, “no estudo da ordem humana, esta consciência vai se revelar ao mesmo tempo no comportamento humano que eu observo de fora e na minha própria atividade de observação e de compreensão” (GERAETS, 1971, p. 69)141.

Um dos objetivos da reflexão radical proposta por Merleau- Ponty é o de dar ao sujeito descoberto pela redução um estatuto de situação no mundo. Não se trata mais de investigar como a consciência pode apreender o mundo, o que demandaria uma explicação causal no caso do empirismo, ou uma explicação transcendental no caso no intelectualismo, mas, de apreendê-la em curso de apreender. Pode-se seguramente interpretar que as motivações que conduzirão o filósofo a reformular o método fenomenológico apareceram quando ele enfrentou estas dificuldades de se apreender o comportamento humano e a relação entre consciência e mundo.