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A idealidade da alteridade

4. A SOBRERREFLEXÃO E O QUIASMA

4.1. A má-ambiguidade do cogito tácito: o idealismo escondido de

4.1.2. A idealidade da alteridade

Passa o tempo, o monstro não se mostra, que demora para uma demonstração. Queriam colocar-me aí. Quero ficar aqui, me respeitem. Eu assumo várias formas, ou arrumo vários casos. Caí em mim e nos que me equivocam, arranjem um outro eu mesmo que eu não dou mais para ser o próprio.

(Leminski, O Catatau)

O problema da alteridade é de extrema relevância para se decidir a questão do método e da reflexão. Primeiramente, a possibilidade do outro não só põe em cheque a ideia de um sujeito universal constituinte, resultado das reflexões ditas absolutas por Merleau-Ponty, como também, e por isto mesmo, ele se impõe a qualquer reflexão radical, na medida em que o outro é uma transcendência inalienável descoberta na experiência.

No caso da filosofia merleau-pontyana, é também nesta questão que se decide o âmbito do transcendental. Como já foi dito anteriormente, para ele o verdadeiro transcendental não está nas operações constitutivas de um ego, que condicionariam o mundo, mas na vida ambígua em que se está em contato com as transcendências; ora, é neste contato que o conhecimento se torna possível280. Para Merleau- Ponty, as transcendências (meu corpo, o mundo natural, outro, o tempo, a morte) são aqueles fenômenos que me ultrapassam, que não dependem de mim e da minha constituição, mas que por outro lado só existem se

280

“Avec le monde naturel et le monde social, nous avons découvert le véritable

transcendental, qui n’est pas l’ensemble des opérations constitutives par lesquelles un monde transparent, sans ombres et sans opacité, s’étalerait devant un spectatuer impartial, mais la vie ambiguë oú se fait l’Ursprung des transcedances, qui, par une contradiciton fondamentale, me met en communciation avec elles et sur ce fond rend possible la connaissance.”

(MERLEAU-PONTY, 2005, p. 423) Ao fazer esta última afirmação, Merleau- Ponty apresenta uma posição que deverá ser melhor investigada, pois em verdade, ainda que ele reconfigure o “lugar do transcendental”, ele não deixa de colocá-lo como o plano da constituição.

os retomo e os vivo. O outro é, talvez, a mais desafiadora dentre elas, visto que me é dada junto com a minha experiência e sei dela justamente quando o declaro inacessível e falo de solidão281.

O problema da idealidade na caracterização de outrem é aquele enfrentado por uma perspectiva transcendental que postula a consciência como um campo evidente. Tal é o limite de Husserl, mesmo tendo ele admitido, nas “Meditações Cartesianas”, o advento do outro como um estranho que não se deixa apreender por uma evidência, ele acaba de algum modo, subsumindo até mesmo essa ‘estranheza’ à constituição da consciência transcendental. Com efeito, ele afirma:

Eu, o “eu humano” reduzido (“o eu psicofísico”), sou, portanto constituído como membro do “mundo”, com uma “exterioridade” múltipla; mas sou eu que constituo tudo isto, eu mesmo, na minha alma, eu carrego tudo isto em mim como objeto de minhas “intenções” (HUSSERL, 2001, p. 162) 282.

Segundo Husserl, em virtude do comportamento do organismo que me aparece, do seu corpo, posso lhe “transferir” minha estrutura e determiná-lo como um alter ego, porém, nunca poderei ter dele uma

intuição originária em qualquer modo que seja – o que não significa

que não posso ter intuição nenhuma. Neste caso, a associação se dá quando tal modo de aparecer, me “lembra o aspecto que teria meu

corpo se ele estivesse ali”. Com isto e também com o meu corpo, como

unidade sintética, torna-se possível apercepção assimiladora do corpo do

outro como um organismo. Em verdade, Husserl reconhece que, na

apercepção de meu corpo já se manifesta o limite da exclusão meramente eidética da redução: ela não pode se dirigir ao outro porque

281

“De même Il faut bien que mon expérience me donne en quelque manière

autrui, puisque, si elle ne le faisait pas, je ne parlerais pas même de solitude et je ne pourrais pas même déclarer autrui inaccessible.” (MERLEAU-PONTY,

2005, p. 417) É também neste momento que Merleau-Ponty vincula radicalmente outrem ao irrefletido. Assim como este deve ser dado para reflexão, aquele também deve ser dado para a experiência subjetiva, ainda que ambos permaneçam, em certa medida, circunscritos numa mesma experiência de mistério. Eles se dão de uma maneira tal que não se pode deles abster ou negar a existência.

282

“Moi, le ‘moi humain’ réduit (‘le moi psycho-physique), je suis donc

constitué comme membre du ‘monde’, avec une ‘extériorité’ multipla ; mais c’est moi qui constitue tout cela, moi-même, dans mon âme, et je porte tout cela em moi comme objet de mes ‘intentions’. ”

ele aparece como aquilo que me é estranho. Isso porque, para retomar uma das características distintivas do meu organismo, o meu corpo é o único dentre os corpos do mundo que jamais pode ser plenamente percebido por mim. Husserl já sabia disso e se via obrigado a se haver com fato de que também eu sou “estranho” a mim, mas ele reduz essa estranheza ao nível da constituição.

Na redução eidética, me apercebo como eu constituidor de

mundo. Por isto, na visada do objeto apreendo a mim mesmo. Porém,

quando se trata do outro, é uma intencionalidade particular: ele transgride meu ego se “refletindo” nele. Ao perceber o outro, me dou conta de que ali há um outro eu. O alter ego é a expressão do meu ego como alteridade. O outro não pode simplesmente ser reduzido. Ao percebê-lo me dou conta de que (como se trata de um outro eu) ele traz em si a sua corrente de vividos, as suas vivências particulares que me são estranhas.

Apesar da possibilidade de avanço na experiência do fenômeno do mundo com a abstração do que me é “estranho”, a saber, das “subjetividades estranhas” e da sua corrente de vividos, afinal a atitude

transcendental deve primeiramente descrever a esfera do que me é próprio, ainda assim “[...] minha vida permanece experiência do mundo

e, portanto, experiência possível e real disto que nos é estranho” (HUSSERL, 2001, p. 162-63) 283. Ou seja, ao ficar apenas com minha esfera de vinculações, me dou conta de que elas ocorrem no mundo, território das possíveis experiências do estranho. Dou-me conta, então, que minhas estruturas implicam a coexistência de outros egos, já que meu próprio ego só pode ter experiência de mundo se participar de uma comunidade.

É por isso que, para Husserl, a explicitação cabal da experiência do outro é sumamente necessária para que o idealismo fenomenológico

transcendental possa se tornar plenamente transparente (HUSSERL,

2001, p. 241), e é também por esse motivo que Merleau-Ponty não pode encampar seu projeto totalmente. Aqui reside a prova última de como, no âmbito de PhP, o passo transcendental, que levaria a redução à essa transparência plena, é inaceitável para ele. É pela noção de estranhamento que Merleau-Ponty se aproxima de Husserl quanto à concepção de alteridade, mas é pelo ideal da evidência que ele precisa se

283

“ [...] ma vie reste expérience du ‘monde’ et, donc, expérience possible et

réelle de ce qui nos est étranger”. Esta passagem husserliana demonstra como o

tema da intersubjetividade é importante ao da redução. Haja vista que sem desenvolver tal assunto não se pode falar de redução transcendental.

afastar284. No fim das contas, a análise transcendental escamoteia o problema da alteridade, pois, para uma consciência pura, meu eu empírico vale tanto quanto os demais e não há problema nenhum em constituí-lo.285 Para Merleau-Ponty, entretanto, outrem está para o sujeito tal como o irrefletido está para a reflexão, sendo, portanto, inultrapassável.

É preciso dizer da experiência de outrem isto que dissemos alhures da reflexão: que seu objeto não pode jamais lhe escapar absolutamente, já que nós só temos noção dele através dela. É preciso ainda, de alguma maneira, que a reflexão dê o irrefletido, pois, de outra forma, não teríamos nada a lhe opor e ela nem se tornaria problema para nós. Do mesmo modo, é preciso ainda, que minha experiência me dê outrem de alguma maneira, já que, se ela não o fizesse, eu não falaria mesmo de solidão e não poderia declarar outrem inacessível. Isto que, inicialmente, é dado e verdadeiro, é uma reflexão aberta sobre o irrefletido, a retomada reflexiva do irrefletido, — e do mesmo modo é a tensão de minha experiência para uma outra, da qual a existência é incontestada no horizonte de minha vida, mesmo quando o conhecimento que tenho dela é imperfeito (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 417)286.

284

Sobre isso cf. MULLER-GRANZOTTO, M. Outrem em Husserl e Merleau- Ponty. In. BATTISTI, César A. (org). Às voltas com a questão do sujeito posições e perspectivas. Ijuí: Ed Unijuí; Cascavel: Edunioeste, 2010. (pp. 315- 333).

285

“De la conscience que je découvre par réflexion et devant qui tout est objet,

on ne peut pas dire qu’elle soit moi: mon moi est étalé devant elle comme toute chose, elle le constitue, elle n’y est pas enfermée et elle peut donc sans difficulté constituer d’autres moi.”

286

“Il faut dire de l’expérience d’autrui ce que nous avons dit ailleurs de la

réflexion : que son objet ne peut pas lui échapper absolument, puisque nous en avons notion que par elle. Il faut bien que la réflexion donne en quelque manière l’irréfléchi, car, autrement, nous n’aurions rien à lui opposer et elle ne deviendrait pas problème pour nous. De même il faut bien que mon expérience me donne en quelque manière autrui, puisque, si elle ne le faisait pas, je ne parlerais pas même de solitude et je ne pourrais pas même déclarer autrui inaccessible. Ce qui est donné et vrai initialement, c’est une réflexion ouerte sur l’irréfléchi, la represie réflexive de l’irréflechi, et — de même c’est la tension de mon expérience vers un autre dont l’existence est incontestée à l’horizon de

Eis que Merleau-Ponty se pergunta: como posso, entretanto, saber de outrem? Para ele, justamente não seria por mera analogia, supondo seus comportamentos pelos meus como se o eu fosse um x oculto nesta fórmula. Em verdade, a percepção do outro suscita o “paradoxo de uma consciência vista pelo lado de fora” (MERLEAU- PONTY, 2005, p. 406). A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo, e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si. Meu corpo é o que percebe o corpo de outrem como uma maneira familiar de tratar o mundo, ambos formam um todo, verso e reverso, e a existência anônima habita ambos. Para ele, ao contrário do que é para Husserl, o estranhamento me constitui e por isso me é familiar – retorna aqui o tema da passividade. A minha existência pessoal dura um tempo que não constituo, minhas percepções se perfilam sobre um fundo de natureza que também não é constituído por mim. Conforme supramencionado, minha percepção é um lançamento para um futuro que reencontra um passado, esse passado é justamente o mundo. Adivinho a presença de outrem quando reencontro o mundo da cultura e da linguagem, visto que neles o mundo que reencontro é aquele em que meus pensamentos e os de outrem, que a rigor seriam o que temos de mais íntimo, formam um terreno comum (MERLEAU- PONTY, 2005, p. 406-411).

Esse estranhamento familiar é uma exigência que vinha se preparando desde SC e se traduz na demanda de substituir a noção de corpo como objeto e de consciência enquanto Ego puro pela noção de comportamento. Por ela aprendemos também, em PhP, que a linguagem é um comportamento, um gesto, e que na fala, portanto, os signos não são cindidos de um pensamento puro, mas constituem sua presença no mundo sensível, seu emblema, seu corpo. Afinal, para que a palavra possa ser a ‘fortaleza’ do pensamento e este possa procurar expressão, as falas devem por si mesmas ser um texto compreensível e possuir uma potência de significação que lhes seja própria.

Para Merleau-Ponty, as palavras trazem uma primeira camada de significação que oferece ao pensamento enquanto estilo, valor afetivo e mímica existencial, antes do que como um enunciado conceitual. É a isso que ele chamava de significação existencial e que não pode apenas ser traduzida pela conceitual, mas habita a fala e lhe é inseparável. O benefício da expressão não é consignar num escrito pensamentos que poderiam se perder, mas ela faz a significação existir como uma coisa

no coração do texto. Potência bem conhecida na arte e na música. A expressão estética confere àquilo que exprime uma existência em si, põe-no na natureza como coisa percebida e acessível. É por isso que no mundo da linguagem (e, por consequência, da cultura), a palavra enquanto gesto introduz o seu sentido, e então o pensamento de outrem pode ser retomado através da fala287.

Essa retomada, entretanto, nunca é completa. É que não se percebe outrem nivelando Eu e Tu, mas sim enquanto comportamentos que nunca se sobrepõe. Quer dizer, encontro um mundo comum, nele reconheço o outro por suas manifestações, seus comportamentos, que indicam para mim aquilo que eu mesmo já vivenciei, tal como o amor ou a cólera, mas há uma espécie de egoísmo intransponível da subjetividade, pois entre eu e os comportamentos que reconheço não há equivalência: a coexistência deve ser vivida por cada um. É nesse sentido que se pode interpretar a afirmação de Merleau-Ponty de que “[...] esse intermundo é ainda um projeto meu e seria hipocrisia crer que quero o bem de outrem como o meu, já que mesmo esse apego ao bem de outrem vem ainda de mim” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 414)288.

Isso indica que Merleau-Ponty contraiu com o solipsismo transcendental uma dívida que não foi capaz de pagar nos limites de PhP, e por isso também designaria mais tarde como má a ambiguidade que aí reconheceu. Apesar de criticar toda espécie de contato imediato consigo, ele se viu obrigado a reconhecer que somente por estar engajado num mundo e por ser de algum modo dado a mim mesmo, é que posso transcender em direção a esse mundo, assim como a outrem. Eis a ambiguidade radicada em meu corpo: ele pode ser apenas um espaço expressivo entre outros, mas é ao mesmo tempo a origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, o que projeta as significações no exterior e as faz existirem como coisas sob nosso corpo.

É nesse sentido que ele exprime a existência; mas que não se pense tratar de uma relação de expressão convencionalmente entendida como exterioridade entre o signo e a significação. No seu caso, o expresso não existe separado da expressão, a existência se realiza no

287

“Il y a donc une repreise de la pensée d’autrui à travers la porale, ue

réflexion en autrui, un pouvoir de penser d’aprés autrui qui enrichit nos pensées propres.”

288

“Mais cet intermonde est encore um projet mien et il y aurait de l’hypocrisie

à croie que je veux le bien d’autrui comme le mien, puisque même cete attachement au bien d’autrui vient encore de moi”

corpo. O sentido é encarnado em corpo e espírito, assim como signo e significação são para Merleau-Ponty momentos abstratos de um mesmo todo. Enquanto realiza e é a atualidade da existência, o corpo lhe permite sair de si mesma em direção ao seu anonimato e passividade. Ele se torna o “esconderijo da vida” e a existência pode esquivar-se de suas situações inter-humanas enquanto possui um corpo. Justamente porque pode fechar-se, meu corpo é também o que me abre para o mundo e me põe em situação. Embora não imponha ao humano, como ao animal, instintos definidos desde o nascimento, o corpo dá a nossa vida a forma da generalidade. O nosso corpo é, enfim, um meio geral de ter um mundo, que ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e me oferece um mundo biológico, ora brinca com meus gestos e cria para eles um sentido figurado, manifestando um novo núcleo de significação e construindo em torno de si um mundo de cultura.

A princípio, meu corpo objetivo me faz encontrar uma natureza que não precisa ser percebida para existir. Nesse mundo que se apresenta primeiramente como existente em si, independente de sua existência para mim, meus comportamentos são impessoais e ainda não reconheço minha própria existência. Por isso, é apenas quando se considera o meio afetivo que se pode fazer a gênese do ser para nós, isto é, quando se considera o setor da experiência que só tem sentido e realidade para nós e que, aparentemente, não teria uma ‘pré-existência’. É nele que reconhecemos as intenções de outrem e que somos colocados diante das nossas. O que reconheço no comportamento alheio, no entanto, é o seu olhar que me transforma em objeto visto tal como ele se apresenta para mim quando o visava apenas como um corpo dentre os demais. Quer dizer, reconheço minha própria capacidade de ser subjetividade, de me transcender. É então que Merleau-Ponty se trai:

Que se trate de meu corpo, do mundo natural, do passado, do nascimento ou da morte, a questão é sempre de saber como eu posso ser aberto aos fenômenos que me ultrapassam e que, entretanto, só existem na medida em que os retomo e os viso,

como a presença a mim mesmo (Urpräsenz), que me define e condiciona toda presença estrangeira

é ao mesmo tempo des-presentação

(Entgegenwärtigung) e me lança fora de mim

(MERLEAU-PONTY, 2005, p. 422)289.

289

“Qu’il s’agisse de mon corps, du monde naturel, du passé, de la naissance

É que a noção de corporeidade como termo da redução, justamente por colocar o cogito em situação no mundo, supõe uma subjetividade tácita que reúna as perspectivas imanentes (impostas pela condição corporal) à sua intimidade e as reencontre nesse passado transcendente. Por isso, aposta Müller-Granzotto, Merleau-Ponty sentiu a necessidade de revisar sua descrição da experiência da percepção do outro; segundo ele, a má ambiguidade aí presente é de reconhecer que “vivemos num mundo coletivo, disponível a todos, mas cujo acesso só pode se dar de modo parcelar, a partir de uma subjetividade individual” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2010, p. 324).

É como se, no final das contas, a reflexão radical encontrasse e assimilasse aquilo que ela mesma havia interditado, a saber, o irrefletido, pois do modo como as categorias operavam no seio de PhP, era como se o contato com o outro me devolvesse um reflexo de mim mesmo, ainda que pálido, ainda que parcial. Por isso, VI vai propor também uma revisão categorial, admitindo que é preciso rejeitar os prejuízos seculares que colocam o corpo no mundo e o vidente no corpo. É preciso abandonar de vez essa filosofia que se pretende coincidência, rejeitando-se os instrumentos da reflexão e da intuição onde ainda não se distinguem ‘sujeito’ e ‘objeto’ e ‘essência’ e ‘existência’. Ora, antes da distinção absoluta da reflexão, ver, falar e mesmo pensar são experiências desse gênero: irrecusáveis e enigmáticas (MERLEAU- PONTY, 2009, p. 170).

Ora nesse tipo de interrogação, que se poderia designar aqui por sincera, haja vista que não pré-julga o que irá encontrar, percebe-se que o visível parece repousar em si mesmo, em volta de nós, e nos é tão estreitamente familiar quanto o são entre si o mar e a praia. Não é possível, apesar disso, que nos fundemos a ele sob pena do desaparecimento da nossa visão. Não há, portanto, coisas idênticas que se ofereceriam ao vidente, nem um vidente vazio que as espera, mas coisas das quais só nos aproximamos apalpando pelo olhar que as envolve e as veste com sua carne (MERLEAU-PONTY, 2009, p 171).

Já antes da redação de VI, era possível encontrar na obra de Merleau-Ponty, vestígios de que se encaminhava a superação da reflexão radical. Ela ainda pressupunha que o que encontraria como resultado de sua aplicação era qual reflexo no espelho — um espelho

des phénomènes qui me dépassent et qui, cependant, n’existent que dans la mesure où je les reprends et les vise, comment la présence à moi même

(Urpräsenz) qui me d´finit et conditionne toute présence étrangère est en même tempos dé-présentation (Entgegenwätigung) et me jette hors de moi”

opaco, é bem verdade — e que devolveria ao sujeito sua imagem como tacitamente suposta por sua própria visão. Na “Prosa do mundo” ele intuía que não se pode olhar outrem de frente. Ele jamais se apresenta de face, mesmo numa calorosa discussão o adversário nunca é totalmente localizado; ele surge como uma resposta inesperada, ele é inconcebível caso se tente abordá-lo de frente. Eu não saberia localizar outrem nesse corpo que vejo. A impossibilidade de localizar a percepção alheia sobre