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O “verdadeiro” transcendental

2. ATITUDE NATURAL: A REFLEXÃO RADICAL

2.2. Transcendental e redução transcendental

2.2.2. O “verdadeiro” transcendental

Geraets defende que havia em SC uma hesitação entre a aceitação e a recusa do transcendental tal qual ele é definido tradicionalmente, isto é, enquanto o âmbito das condições de possibilidade de toda experiência possível. A despeito de reivindicar o caráter original da consciência perceptiva, Merleau-Ponty expôs de modo extremamente positivo a análise reflexiva do ato de conhecer por pensar que desde Kant não saberíamos mais conceber uma filosofia que não fosse transcendental. Com isso, a possibilidade para o homem de aceder à plena consciência de si parecia ser negada e afirmada ao mesmo tempo.

Para Merleau-Ponty, quem inaugurou o movimento rumo ao pensamento transcendental foi o “verdadeiro Descartes”, como ele o designa, aquele das Meditações Metafísicas, ao abandonar as coisas extramentais, voltar a um inventário da experiência humana sem nada pressupor e se colocar no interior da percepção, analisando-a como pensamento de perceber. Nessa época, ele entendia que o cogito dava acesso a um método geral de investigar pela reflexão. Ao renunciar sua vida “nas coisas”, a consciência encontraria no interior de seu próprio pensamento o “domínio indubitável das significações”. Havia, segundo Geraets, também em Descartes uma hesitação: na sua teoria, a identificação da coisa com a significação coisa jamais é completa — justamente o que desde o início atraiu Merleau-Ponty. Embora a análise forneça as estruturas inteligíveis do universo do pensamento, elas não absorvem completamente o universo real. A imaginação e a percepção introduziriam no espírito uma alteridade irredutível, fazendo-o entrar novamente na mistura real entre a natureza e o corpo. Com isso, o corpo cessaria de ser apenas um fragmento de extensão diante do entendimento para tornar-se um indivíduo, obrigando Descartes a reconhecer a ordem vital157.

Segundo Geraets, antes do encontro com a fenomenologia

156

“Le seul sens légitime de la ‘réduction’ est de nous ramener à ce vrai

transcendantal, qui est essentiellement ‘ambigu’ dans ce sens qu’il ne se laisse

pas exprimer adéquatement dans les concepts purs ou absolus , comme sujet et

objet, comme en soi et pour soi”

157

Cf. “La position du problème : l’hesitation de Descartes”(in. : GERAETS, 1971, p. 86)

husserliana, em 1939, Merleau-Ponty já buscava uma nova filosofia transcendental que fosse também uma filosofia da existência e que reconhecesse a finitude da encarnação da consciência e a fragilidade da razão. Até então, Merleau-Ponty não teria visto como desenvolver essa filosofia transcendental anunciada nas Meditações Metafísicas em se renunciando a ideia de uma consciência constituinte universal. Renúncia que se impôs cada vez mais em sua obra, ao mesmo tempo em que ele procurava se informar sobre a promissora filosofia de Husserl. Em nenhum momento, contudo, ele abandonaria a ideia de uma filosofia transcendental158. Aliás, foi justamente a descoberta da fenomenologia que lhe possibilitou superar os embaraços há pouco mencionados e encontrar aquilo que constituiria em sua filosofia o verdadeiro transcendental, a saber: a experiência ela mesma.

A epoché em todos os seus níveis é uma tematização, o filósofo continua a viver sua vida natural tematizando o mundo sem aceitá-lo como fato “acabado”. Husserl quis transformar o saber pré-científico imperfeito em um saber perfeito. Nesse ponto, Geraets propõe uma questão extremamente pertinente, ora, “[...] a renúncia a esse ideal e à

figura do espectador estrangeiro que o anima, encaminha

necessariamente uma revalorização de todas as descrições situadas antes da segunda epoché”, mas seria uma filosofia ainda “transcendental”? Em que lugar ela se situa? (GERAETS, 1971, p. 160)159. De acordo com ele, a PhP responde a esta questão afirmando que “o verdadeiro transcendental é a Ursprung das transcendências”160.

O primado absoluto do Eu deve ser compreendido de uma maneira completamente diferente das filosofias transcendentais clássicas161. Na concepção merleau-pontyana, o verdadeiro transcendental

158

Cf. “Merleau-Ponty en 1938”(in. : GERAETS, 1971, p. 130-131) Vale lembrar que a análise de Geraets se limita à PhP e que, portanto, ele não leva em conta a reformulação da própria noção de transcendental operada posteriormente na filosofia merleau-pontyana tal como será explanado no último capítulo desta tese.

159

“[...] le renocement à cet idéal, et à la figure du spectateur étranger qui

l’anime, entraîne nécessairement un revalorisation de toutes les descriptions se se situant avant la seconde epochè”

160

“[....] le vrai transcendantal est l’Ursprung des transcendances” 161

Na verdade, pareceria mais preciso afirmar que não há em Merleau-Ponty um “primado absoluto do eu”, contudo, Geraets parece concordar com isto, apesar da imprecisão na formulação, o que fica claro com a citação que se segue.

[...] não se reduz mais a um Eu, nem mesmo a um ‘Eu relativo e pré-pessoal’, nem aliás a uma consciência absoluta, transparente, sem eu. O verdadeiro transcendental é a vida ou a experiência, origem das transcendências, origem mesmo da oposição entre sujeito e objeto (GERAETS, 1971, p. 161)162.

Trata-se da experiência que funda Eu e mundo não como realidades que ocorreriam fora dela, mas como sua própria estrutura.

Ora, é por conta disso que, para Merleau-Ponty, o primado da experiência é a última instância de nossos conhecimentos. E é nesse sentido que eu não posso me afirmar como sujeito transcendental. Eu estou em situação e me defino como possibilidade de situações, ao passo que um Eu transcendental nunca estará sujeito a qualquer situação. Para Merleau-Ponty, o Eu concreto é o elemento essencial da vida, ao passo que vida concreta é a origem das transcendências. Assim “buscar o originário é remontar a fonte de todas as nossas ideias e esta fonte apenas só saberia ser a experiência no sentido definido anteriormente, que não deixa nada fora dela, sequer a atividade reflexiva” (GERAETS, 1971, p. 167)163.

Para Husserl, a redução é, no fim das contas, o retorno a uma consciência transcendental, mas Fink fornece, segundo Merleau-Ponty, a melhor fórmula do método ao recolocar em questão a ideia do mundo e do pensamento objetivo que pertencem à perspectiva do espectador estrangeiro. É daí que se origina a tese aqui defendida de que na concepção merleau-pontyana a redução satisfaz uma necessidade de recusar nossa cumplicidade com o mundo. Recusa temporária, é verdade, visto que o que ela reencontra é próprio mundo. Para ele, o fato de Husserl jamais ter cessado de se interrogar sobre o método é um sinal de sua incerteza quanto à sua possibilidade e mesmo um acordo implícito com sua impossibilidade radical164. Geraets entende que era preciso esta tentativa de uma redução completa para estabelecer sua impossibilidade.

162

“[...] ne se réduit plus à un Je, même pas à un ‘Je relatif et prépersonnel’, ni

d’ailleurs à une conscience absolue, transparente, sans je. Le vrai trascendantal, c’est la vie ou l’expérience, origine des transcendances, origen même de l’opposition entre sujet et objet.”

163

“rechercher l’originaire, c’est remonter à la source toutes nos idées, et cette

source ne saurait être que l’expérience dans le sens défini plus haut, qui ne laisse rien en dehors d’elle, même pas l’activité réfléchissante”

164

Este fracasso vem a ser o ponto de partida de Merleau-Ponty. A redução deverá fazer aparecerem as evidências originárias da atitude natural (não naturalista ou científica) na sua característica paradoxal. A passagem à atitude transcendental não se configura mais como aquela em que eu ocuparia um ponto de vista totalmente outro, de alguém que não estaria mais no mundo. Na verdade, para Merleau-Ponty, “o ‘espectador estrangeiro’ transcendental é uma idéia irrealizável que, justamente enquanto tal, nos revela ao mesmo tempo nossa ancoragem originária e inultrapassável no mundo e nossa capacidade de ultrapassar cada ponto de vista particular” (GERAETS, 1971, p. 170)165.

Isso indica que para Merleau-Ponty a atitude propriamente fenomenológica ou transcendental será então essa que se arraiga no mundo ao mesmo tempo em que procura descrever nosso modo de acesso a ele. E é assim desde que em SC ele procurava, com a escolha dos termos, um âmbito neutro de atuação que embora jamais se reduzisse a um mero naturalismo, também não abandonava a ordem física em favor de uma explicação estritamente psicológica ou intelectualista.

Essa atitude deverá voltar-se para a experiência vivida como o verdadeiro transcendental. Isso significa, como já foi mencionado, voltar-se para a percepção. Ora, diz Merleau-Ponty, o sentir investe a qualidade de um valor vital apreendido primeiramente na sua significação para nós, para nosso corpo. “O sentir é esta comunicação vital com o mundo que o torna presente a nós como lugar familiar de nossa vida. É a ele que o objeto percebido e o sujeito senciente devem sua densidade” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 79)166.

Diferentemente do intelectualismo kantiano que, na concepção merleau-pontyana, pensava o transcendental enquanto condição de possibilidade alheia a própria experiência sensível, o transcendental agora deverá ser visto enquanto brotando dela, junto com ela. Nesse sentido, ele alega que mesmo a noção de entendimento precisa ser redefinida, pois a função geral de ligação que Kant lhe atribuía é comum a toda vida intencional. Segundo Merleau-Ponty, é preciso ver

165

“le ‘spectateur étranger’ transcendantal est une idée irréalisable qui,

justement en tant que telle, nous révèle à la fois notre ancorage originaire et indépassable dans le monde et notre capacité de dépasser chaque point de vue particulier”

166

“Le sentir est cette comunication vitale avec le monde qui nous le rend

présent comme lieu familier de notre vie. C’est à lui que l’objet perçu et le sujet percevant doivent leur épaisseur.”

simultaneamente a infraestrutura instintiva e as superestruturas que se estabelecem sobre ela no exercício da inteligência. É preciso resgatar a percepção enquanto este momento decisivo de brotamento de um mundo

verdadeiro e exato167. A reflexão terá encontrado o centro do fenômeno se for igualmente capaz de esclarecer a inerência vital e a inerência racional (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 80).

Por conta do que acaba de ser afirmado, deve-se compreender o corpo como termo da redução. Para Merleau-Ponty a humanidade está vinculada ao modo de constituição do corpo, à sua tensão entre ser vidente e ser visível. Temática que aparecerá com mais força em outros textos posteriores como “L’oeil et l’esprit”, em que ele afirmará que o mundo é feito do mesmo estofo que o corpo e que:

Tudo isto que eu vejo está, por princípio, a meu alcance, ou ao menos, ao alcance de meu olhar, inscrito no mapa do ‘eu posso’. Cada um dos dois mapas é completo. O mundo visível e aquele de meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser (MERLEAU-PONTY, 2010, p. 1594)168.

167

Essas são as palavras de Merleau-Ponty e também o grifo é dele; elas aparecem no momento em que ele critica o empirismo de mutilar a percepção por tratá-la como um conhecimento e esquecer-se de seu fundo existencial, o que segundo ele é “[...] tenir pour acquis et passer sous silence le moment

décisif de la perception: le jaillissement d’un monde vrai et exact”

(MERLEAU-PONTY, 2005, p. 80). Com isso, depara-se novamente com a questão central dessa tese, é possível perguntar: existe alguma atitude humana, filosófica, científica ou artística que seja capaz de apreender com fidelidade e exatidão esse momento originário da percepção? Ora, os encaminhamentos merleau-pontyanos indicam que ele não crê nessa possibilidade – esse, aliás, é o mote de toda crítica da reflexão por ele empreendida. No entanto, o que implicam afirmações como essa acerca da percepção? A rigor, o que se pode deduzir é que se trata de lembrar que verdade e exatidão são noções oriundas da percepção e não servem simplesmente para classificá-la. De todo modo, fica a impressão de que a atitude fenomenológica conteria o modo de acesso a esse momento. Algo em que Merleau-Ponty não acredita, mas em relação a que suas teses de PhP ainda oscilam muito. D’onde pode se defender aqui que ainda havia uma recondução ao nível eidético, em que as impressões se transcenderiam em perceber e ganhariam sentido e unidade, uma possibilidade transcendental da constituição do corpo e do mundo, como se veráno parágrafo seguinte.

168

“Tout ce que je vois par principe est à ma portée, au moins à la portée de

mon regard, relevé sur la carte du ‘je peux’. Chacune des deux cartes est complète. Le onde visible et celui de mes projets moteurs sont des parties

O tema da visão é de extrema importância, na medida em que por ela se vivencia o dilema da ambiguidade entre presença e ausência que figuram nessa nova noção de transcendental proposta pelo filósofo. Por ela o ser me é dado, ao mesmo tempo em que me ausento de mim mesmo para assistir ao seu espetáculo. Ora, é possível que Merleau- Ponty só tenha sido capaz de constatar isso por ter antes feito o transcendental radicar na corporeidade que nos faz partícipes do mundo. É chegada a hora de se aventurar por tal conceito.