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Consciência e ego — a analítica de Sartre

3. IRREFLETIDO E COGITO: A AMBIGUIDADE

3.1. Reflexão e cogito em Sartre

3.1.1. Consciência e ego — a analítica de Sartre

Apesar das inúmeras críticas dirigidas à fenomenologia husserliana, “La Transcendance de l’Ego” é também uma tentativa de radicalizar a descrição fenomenológica da região da consciência pura. Para fazê-lo, Sartre põe a questão: toda consciência precisa ter ego? Contra o que chama de teorias da “presença formal” e da “presença material” do “Eu” na consciência, ele advoga a tese de que com a introdução do Eu enquanto sua estrutura necessária, o primeiro, que é “opaco”, é elevado ao nível de absoluto da consciência, que é translúcida. Para ele, este teria sido o problema de Husserl (especialmente nas Meditações Cartesianas) e os resultados da fenomenologia estariam sob ameaça caso não se compreendesse que o Eu é, do mesmo modo que o mundo, um existente relativo, um objeto para consciência (SARTRE, 2003, p. 98-99). Sartre defende que ao Eu também deve ser aplicada a redução fenomenológica, pois enquanto um

existente, ele se dá como transcendente e só é apreendido por um ato

reflexivo, numa intuição de tipo especial, como estando “atrás” da

consciência refletida.

O aparecimento deste conceito indica que, no desenrolar do texto sartreano, pode-se encontrar todos os elementos que estão em jogo nesta tese. O problema da reflexão é pensado aqui justamente partindo da perspectiva da relação entre a consciência empírica (que não será mais consciência no sentido em que Sartre entenderá) e a transcendental. Ainda que Kant esteja certo em afirmar que um Eu deve poder acompanhar todas as minhas representações189, ele não afirma, com isso, nada de fato sobre a existência de uma consciência empírica. Para Sartre, o problema da existência de fato do Eu na consciência poderia ser enfrentado pela fenomenologia, pois a consciência apreendida pela

epoché é uma consciência real e acessível a qualquer um que operar a

redução. Por outro lado, ele se pergunta: é mesmo preciso duplicar o eu físico e psicofísico num eu transcendental? (SARTRE, 2003, p. 96).

Com essa pergunta, Sartre parece não propor nada mais do que uma depuração conceitual. O Eu enquanto produto da síntese da

189

“O eu penso tem que poder acompanhar todas as minhas representações; pois, do contrário, seria representado em mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada” (KANT, I. Crítica da razão pura. 5. ed. rev. Trad. V. Rohden e U. B. Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Coleção Os Pensadores), p. §16, p. 121).

consciência não poderia ser confundido com a consciência mesma. Trata-se de uma tentativa de despersonalizar a consciência ou ainda, de separar as instâncias, quer dizer, o empírico do transcendental. Para ele, a fenomenologia prescindiria deste suposto Eu, necessário apenas para unificação e identificação das consciências individuais, pois ela contava com a noção de intencionalidade pela qual se reconhece que a consciência se transcende a si mesma. Ela se unifica se escapando no objeto transcendente que, em permanecendo, permite a constituição de unidades reais. O Eu é apenas uma expressão da síntese produzida pelos jogos intencionais da consciência190, mas, de modo algum, sua condição de possibilidade.

Esta confusão que faz do Eu uma estrutura necessária da consciência poderia ser imputada às filosofias do cogito: à sua falta de clareza em separar os elementos que pertencem à descoberta do evidente

eu penso. É aí que aparece o problema da reflexão, para Sartre: o cogito

é um produto da consciência reflexiva ainda inexistente na consciência

irrefletida. Ele é operado por uma consciência dirigida à consciência

que a toma por objeto. Neste caso, a consciência torna-se posicional, de

algo, porém, a consciência de si não é posicional, não é tética. Assim, a

consciência que diz “Eu penso” não é precisamente aquela que pensa, ao se pôr como objeto ela visa a consciência refletida que ela mesma não era antes da reflexão. A crítica se estende também à fenomenologia husserliana que teria tomado o cogito por absoluto, acreditando que ele salvaguardaria o princípio da intencionalidade: ora, se há uma unidade indissolúvel da consciência reflexionante, logo, nela se estaria diante de uma síntese de duas consciências, da qual uma é consciência de outra.

Para Sartre, entretanto, é justamente por contar com a descoberta da intencionalidade que a fenomenologia poderia abrir mão dessa noção de cogito. Nela afirma-se mais do que se deve. Ora, na

consciência de primeiro grau ou irrefletida, não há lugar para um eu,

pois ela jamais é posicional. Embora ela seja consciência de si mesma, ela não se toma por um objeto. A fórmula é um tanto complexa, mas de

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Sartre se refere aqui, de modo especial, aos desenvolvimentos empreendidos em “A consciência íntima do tempo”, em queHusserl se pronuncia sobre as

intencionalidades transversais que comporiam o princípio de unidade na duração e que garantiriam que o fluxo contínuo das consciências fosse

suscetível de pôr os objetos fora de si (SARTRE, 2003, p. 96). Independentemente da complexidade de detalhes desta discussão, interessa aqui o grifo sartreano de que é nos esquemas intencionais da consciência ela mesma que se encontram as possibilidades de unificação e identificação do eu.

fato (e esta é uma expressão importante aqui) ela só é consciência de si enquanto sendo consciência de um objeto transcendente. Ao passo que

todo objeto está fora dela, ela, por sua vez, só se conhece como interioridade absoluta. “Estar fora”, na concepção sartreana, significa não pertencer à esfera de clareza absoluta da consciência191: enquanto transcendente, o objeto lhe é opaco; por outro lado, ela é simplesmente consciência de ser consciência dele, e isto é translúcido.

Entre a consciência reflexionante e a consciência irrefletida, apenas a primeira necessita do Eu formulado no cogito. Ao passo que toda consciência reflexionante é irrefletida (sendo posta pelo ato de um terceiro), para ser consciência de si mesma, a consciência não tem necessidade alguma de ser reflexionante. Sartre estabelece uma hierarquia entre os dois “conceitos de consciência”. Na verdade, aquela que põe o cogito não é a consciência transcendental. É possível questionar então: qual a relação entre essa consciência irrefletida e o eu? Na concepção sartreana, o eu é justamente a modificação que ela sofre na reflexão.

Embora toda experiência concreta pareça ser provida de um eu, o filósofo acredita que é sempre possível, por definição, procurar reconstituir o momento onde só havia esta consciência irrefletida, que é sempre consciência não tética de si mesma. Enquanto tal, ela deixaria uma lembrança também não tética passível de ser consultada. Esse fato torna evidente que, para Sartre, o problema da reflexão se configura de uma maneira peculiar. Para ele, a consciência reflexiva é uma mutação causada pela reflexão, que, por sua vez, parece ser a responsável pela confusão categorial entre eu e consciência.

Desse ponto de vista crítico em relação à reflexão, ele até poderia ser colocado ao lado de Merleau-Ponty192, mas, eles se distanciam na medida em que Sartre acredita ser possível transpor esta modificação e dar conta do âmbito irrefletido anterior a ela. Esta perspectiva parece ser advinda da sua concepção existencialista da fenomenologia, tal como se apresenta em “La transcendance de l’ego”. Com efeito, numa espécie de inversão da concepção husserliana, Sartre afirma que a “fenomenologia é uma ciência de fatos”193 na medida em que seu procedimento essencial é intuitivo, de modo que a intuição põe

191

Aqui, fica latente uma das distinções em relação a Merleau-Ponty, para quem o alcance desta clareza não passa de um ideal.

192

Que de fato também acredita que a reflexão é uma espécie de criação. 193

Como Sartre mesmo admite em nota, para Husserl trata-se de uma “ciência de essências”.

a presença da coisa. É isto que para ele define seu processo descritivo. Nesse sentido, “[...] os problemas fundamentais das relações do Eu à consciência são, portanto, problemas existenciais” (SARTRE, 2003, p. 95)194.

Na medida em que a fenomenologia (assim como o problema do Eu penso) não é tomada por uma filosofia crítica da consciência, ela será incumbida de resolver o problema da existência de fato do eu na consciência. E o fato é que, quando alguém procura se lembrar das circunstâncias passadas, o que ocorre é que ressuscita os detalhes exteriores e certa densidade da consciência irrefletida, quer dizer, ainda que os objetos não pudessem ter sido percebidos se não por esta consciência, foca-se a atenção sobre os objetos ressuscitados e sobre ela, verá que enquanto esta ação era realizada não havia um Eu na consciência irrefletida.

O exemplo dado por Sartre é o da lembrança da leitura de um livro: “[...] enquanto eu lia, havia consciência do livro, do herói do romance, mas o Eu não habitava esta consciência, ela era somente consciência do objeto e consciência não posicional de si mesma” (SARTRE, 2003, p. 100-101)195. Não se trata aqui de negar que o Eu aparece na lembrança da consciência refletida, mas de opor ao lembrar reflexivo um lembrar não reflexivo. Este mostra que o eu está jogado num mundo de objetos, são eles que constituem a unidade de suas consciências, com seus valores, suas qualidades — mas o eu desapareceu, foi aniquilado. Se me lembro da vista que apreciei ao passear pelo parque Montsouris, não me lembro que eu via o parque, mas, sim do parque sendo visto, do desfile colorido de suas flores, estátuas, transeuntes, etc. O mais apropriado seria dizer que, no lugar de “eu tenho consciência de”, “há consciência de”. O que Sartre quer remarcar é que, para a estrutura da consciência, a fórmula que inclui o

eu é totalmente dispensável. No plano irrefletido, não há lugar para ele.

Do ponto de vista do problema da reflexão, o que interessa aqui é a tese sartreana de que “[...] minha vida reflexiva envenena ‘por essência’ minha vida espontânea, e aliás a vida reflexiva supõe em geral a vida espontânea” (SARTRE, 2003, p. 107)196. Com ela, Sartre

194

“[...] les problèmes des rapports du Je à la conscience sont donc des

problèmes existentiels”

195

“[...] tandis que je lisais, Il y avait conscience du livre, des héros du roman,

mais le Je n’habitait pas cette conscience, elle était seulement conscience de l’objet et conscience non positionnelle d’elle-même.”

196

demonstra querer radicalizar a fenomenologia husserliana, levando a busca por ‘pureza’ às últimas consequências possíveis. Com efeito, ao descrever os elementos constitutivos do Ego, ele admite que, para além desta reflexão que se dirige para um objeto situado fora da consciência, há uma reflexão pura que ele, inclusive, desvincula da reflexão fenomenológica.

Qual seria, então, o campo de atuação desses dois gêneros de reflexão? Para Sartre, a unidade das consciências refletidas é dada de duas maneiras: uma direta e imanente, trata-se do fluxo da Consciência se constituindo a si mesmo como unidade de si197, e outra indireta e transcendente, isto é, os estados e ações unificados pelo Ego. Na atitude irrefletida, é transcendente o polo-objeto; na atitude de reflexão, o Ego também o é. A reflexão que o visa tem limites de fato e de direito: “nós não devemos fazer da reflexão um poder misterioso e infalível, nem crer que tudo isto que a reflexão atinge é indubitável por ser alcançado pela reflexão” (SARTRE, 2003, p. 108)198. Eis o domínio da reflexão

impura, ela age sobre os objetos que aparecem através da consciência.

Com efeito, a consciência espontânea não se engaja no futuro, diferentemente do que acontece com a consciência refletida, que se unifica em atos. O exemplo sartreano é o do “odiar”. Ora, odiar não é uma consciência espontânea, mas um ato que se manifesta através dela. Na espontaneidade só se tem o sentimento de repulsão (ou qualquer outro que se unifique no ódio) por alguém neste momento. O ódio é justamente isto que se dá em e por cada sentimento que o unifica (desgosto, repulsão, cólera) escapando a cada um e afirmando sua permanência. A reflexão impura age, portanto, sobre esse domínio transcendente cuja existência implica dubitabilidade. Aqui, Sartre lança mão do escopo conceitual husserliano ao afirmar que “[...] a reflexão tem um domínio certo e um domínio duvidoso, uma esfera de evidências adequadas e uma esfera de evidências inadequadas” (SARTRE, 2003, p. 110)199. O domínio da reflexão pura, ao contrário, será aquele que se desvinculará das pretensões que transcendem a consciência instantânea.

d’ailleurs la vie réflexive suppose en général la vie spontanée”

197

Neste ponto Sartre ressalta em nota de rodapé que se trata da

Zeitbewusstsein, justamente a “consciência do tempo” (SARTRE, 2003, p. 108).

198

“nous ne devons pas faire de la réflexion un pouvoir mystérieux et infaillible,

ni croire que tout ce que la réflexion atteint est indubitable parce qu’il est atteint par la réflexion”

199

“[...] la réflexion a-t-elle un domaine certain et un domaine douteux, une

Nessa obra ora comentada, Sartre se atém, sobretudo, na descrição do Ego transcendente. Ele admite, entretanto, a defasagem de tal tarefa, pois, afinal, o Ego é “por natureza fugidio”. Ele se dá de uma forma toda especial à consciência reflexiva, aparecendo apenas quando ela se volta para ele. Caso se procure apreender o Ego por si mesmo como um objeto direto da consciência, ele recairá no plano do irrefletido e desaparecerá (SARTRE, 2003, p. 122).