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A estética hipster para além de estabelecimentos e bairros hipsters

4. CAPÍTULO 3: O QUE SIGNIFICA SER HIPSTER?

4.5. A estética hipster para além de estabelecimentos e bairros hipsters

A recorrência do uso destes recursos visuais por diferentes estabelecimentos aponta, ainda, para alguns aspectos de interesse para a compreensão da circulação de elementos materiais presentes em uma “cena hipster” para além dos contextos de predominância deste público. O primeiro deles parte deste paradoxo já apontado: ainda que a busca por tendências e referências pretenda produzir um distanciamento daquilo que é percebido como massificado e produzir maior contraste destes estabelecimentos com relação a seus similares “não-hipsters”, a diferenciação entre os estabelecimentos hipsters entre si é pequena – sobretudo quando a concepção destes espaços é informada e influenciada pelas mesmas referências visuais, a partir

de repertórios e de gostos compartilhados. Isso resulta, por exemplo, que uma loja de plantas

hipster seja perceptivelmente diferente das floriculturas de bairro (mais tradicionais) e das lojas

de jardinagem (mais massificadas, voltadas a um público mais amplo) que existem às centenas por toda a cidade, mas que as diferentes lojas de plantas hipster existentes apresentem muito mais semelhanças do que diferenças entre si. É o caso do Jardin do Centro, na Rua General Jardim, e a Coffee Stories, na Rua Major Sertório – ambas lojas de plantas conjugadas com cafeterias, e as duas situadas na Vila Buarque. Isso indica que a produção de um discurso de originalidade, exclusividade e criatividade é sempre articulado em relação a um referencial relativo (no caso, tudo o que pode ser considerado mainstream), nunca absoluto: embora haja uma pretensão de ser (e se projetar enquanto tal) único, a reprodução recorrente destes mesmos referenciais estéticos a cada novo estabelecimento inaugurado sugere que há menos incômodo em ser parecido com outros estabelecimentos voltados ao mesmo perfil de consumidor do que ser percebido como “mais um” dentre os muitos outros lugares voltados a um público mais amplo, menos segmentado e menos sensível às proposições conceituais pretendidas.

Outro aspecto importante que pode ser observado é que, uma vez que cada solução, referência ou inspiração é adotada ou implementada por algum desses espaços “modernos” (e quanto mais esses mesmos recursos são reproduzidos por diferentes estabelecimentos), ela passa gradativamente a não pertencer mais apenas ao pequeno segmento de comerciantes e consumidores que reconhecem e valorizam o ineditismo, pioneirismo e o senso de novidade que estes recursos visuais representam. Lentamente, alguns destes elementos vão se tornando moda (em um sentido mais massificado da palavra), sendo incorporados até mesmo por estabelecimentos comerciais voltados a públicos mais abrangentes, em diferentes regiões da cidade. Ao longo da pesquisa passei a observar a adoção de uma combinação de vários destes elementos (como paredes de lousa, lâmpadas Edison, mobiliário de madeira com estruturas de metal pretas, plantas penduradas) em diversos estabelecimentos em locais não voltados a um público hipster, mas a um público bastante mais amplo (como, por exemplo, a rede de padarias Benjamin, que tem aberto diversas lojas em muitos pontos da cidade, todas adotando estes elementos estéticos e, indiretamente, se beneficiando de um discurso de tradição e de artesanalidade que evidentemente não correspondem a uma grande rede comercial). Outro exemplo de espraiamento de uma certa estética hipster a outros estabelecimentos, em diversas regiões da cidade (inclusive em avenidas comerciais nas periferias, e durante o período da pesquisa também pude observar pontualmente em outras cidades do país, como Salvador e Poços de Caldas) é a disseminação de um tipo bastante específico de barbearias, voltadas a um público masculino mais jovem, e que incorporam elementos retrô ou vintage na emulação de

ambientes que remetem aos anos 1950 e 1960. Estas barbearias são decorrentes da adoção da barba como um elemento de moda masculina nos últimos anos – e cujo referencial maior de estilo para essa nova geração são justamente as barbas dos hipsters “descolados” (mesmo que a adoção de elementos hipsters na decoração seja bastante pontual e não orientada pelo mesmo rigor estético buscado pelos estabelecimentos efetivamente voltados a um público hipster).

Figura 20: Dois exemplos de estabelecimentos comerciais que adotam elementos vintage, fortemente associados à estética hipster, mas inseridos em contextos e voltados a públicos que não correspondem à categoria. Na primeira imagem, uma padaria na Rua Santa Ifigênia, em São Paulo. Na segunda, uma barbearia no centro de Poços de Caldas, MG. Fotos do autor (2018 e 2019).

Estas observações permitem, por fim, a elaboração de uma classificação tipológica quanto a diferentes escalas e perfis de negócios que adotam, de uma maneira ou de outra, elementos visuais associados à categoria hipster. O primeiro perfil de negócios (sobre o qual esta pesquisa se dedica prioritariamente) é aquele em cujo público é predominantemente classificável como hipster, que oferece produtos compatíveis com o alto nível de segmentação e especialização associado às preferências de consumo dos hipsters, e cuja configuração espacial incorpora de maneira bastante eficiente uma grande parte das referências globais que orbitam um imaginário sobre preferências estéticas dos hipsters. Não pertencem a cadeias de lojas e tampouco a grandes redes de investidores (em muitos casos, trata-se de uma única loja), constituídos com um capital inicial limitado e que, por isso, operam em imóveis pequenos (cujos alugueis são mais acessíveis tanto pela baixa metragem, como pela ampla oferta e diversidade de imóveis disponíveis para locação na região central). Além disso, recorrem a diversos improvisos calculados na formulação do espaço e na oferta de seus produtos – em um planejamento que permite garantir a melhor performance possível diante de seu público, apesar de uma eventual limitação orçamentária (sobretudo no início destes negócios, em que os investimentos iniciais são mais altos e o giro de clientes e produtos ainda é limitado).

Outra característica comum a estes estabelecimentos é a ausência de funcionários ou um número bastante reduzido destes, de forma que não é incomum que quem esteja por trás do balcão atendendo ao público ou produzindo os produtos oferecidos sejam os próprios sócios e proprietários (ou ainda seus amigos, com remunerações e escalas de trabalho acordadas informalmente). Para além da redução de custos, isso também permite a observação das similaridades entre o perfil dos consumidores e dos atendentes, de forma que os estabelecimentos se tornam não apenas uma fonte de renda, mas também uma plataforma de visibilidade e de sociabilidade dos proprietários e atendentes diante de seus pares – em outras palavras, possuir ou trabalhar em um estabelecimento hipster acaba por se tornar um importante marcador que confere um status privilegiado destas pessoas dentro de uma “cena hipster” crescente, sendo percebidos como inovadores, “descolados”128.

O segundo perfil de estabelecimentos representa uma versão mais profissionalizada do primeiro: trata-se de bares e restaurantes que, ainda que adotem um visual hipster em sua decoração e que ofereçam produtos também com um alto nível de diferenciação, envolvem uma outra escala de investimento, e se projetam a um público mais amplo: são estabelecimentos maiores, com vários funcionários contratados (em regimes mais hierarquizados do que os acordos informais entre amigos que podem ser observados no primeiro perfil), financiados por investidores com maior expectativa com relação aos rendimentos financeiros, e pertencentes a empresários ou grupos que muitas vezes possuem mais de um negócio dentro do mesmo segmento. Ocupam imóveis maiores, muitas vezes têm o conceito visual do espaço assinado por arquitetos especializados, e que evidenciam um grau elevado de investimento no equipamento, mobiliário e decoração – o que contrasta com os improvisos calculados que são mais evidentes no perfil anterior. Além disso, não é incomum que o cardápio seja assinado por algum chef renomado (que, muitas vezes, é um dos proprietários ou acionistas). Em função da maior escala dos negócios e de uma necessidade de maiores retornos financeiros, estes estabelecimentos dependem de uma clientela maior do que apenas a frequência cotidiana da concentração de moradores e frequentadores hipsters do entorno. Por isso, recorrem a serviços profissionais de divulgação, publicidade e assessoria de imprensa que garantam a atração de uma clientela mais ampla, vinda de outras regiões da cidade (não necessariamente de um perfil

hipster, mas com poder aquisitivo que permite o usufruto dos locais e seus produtos). Um

128 As relações entre estes estabelecimentos hipsters e o mercado de trabalho serão melhor aprofundadas no

exemplo de estabelecimento com este perfil é o restaurante A Casa do Porco129, que há alguns anos vem sendo reconhecido como um estabelecimento de destaque na cena gastronômica paulistana (inclusive mencionado nos guias Michelin) – e que forma grandes filas de espera de clientes, com perfis muito mais diversos do que o perfil dos frequentadores da maioria dos demais estabelecimentos no entorno. Se na primeira categoria tipológica o estabelecimento funciona como uma extensão da identidade ou da imagem pessoal de seus proprietários (e cujo alcance é mais restrito a públicos específicos), este segundo perfil estaria mais próximo de uma imagem corporativa, com maior alcance e voltada a um público mais amplo – imagem esta que pode eventualmente conferir um status de “celebridade” a algum de seus proprietários.

Por fim, o terceiro perfil é composto pelos já mencionados estabelecimentos que não necessariamente estão localizados em bairros com alta predominância hipster, e tampouco são voltados a um público tão segmentado e específico – mas que se apropriam das tendências e estilos que são percebidos como estando “na moda” para tornar seus espaços ou produtos mais atrativos para uma clientela mais ampla e diversificada. Esta terceira classificação tipológica representa um maior espraiamento dos múltiplos signos, referências e sinais diacríticos comumente associados à categoria hipster a uma infinidade de tipos de estabelecimentos que não são destinados a um público hipster, e tampouco têm a pretensão de oferecer produtos e serviços com alto nível de diferenciação quanto aos demais estabelecimentos similares. Os códigos adotados são respostas a novas demandas de mercado (como é o caso das novas barbearias existentes em toda a cidade, como resposta a uma tendência crescente do uso de barbas por jovens de todas as classes sociais), ou reproduções de referências que despontam como tendência – como é o caso de alguns bares e padarias observados ao longo desta pesquisa que, diante de uma oportunidade de reforma ou remodelação, adotam elementos que os tornem mais parecidos com outros lugares atualmente percebidos por um senso mais amplo como modernos, bonitos, “descolados” etc. Em uma comparação mais esquemática, este terceiro perfil tipológico, muito mais diversificado, possui menor pretensão de um pioneirismo ou exclusividade na adoção de tendências do que os outros dois, muito provavelmente porque os perfis de consumidores (igualmente diversificados) também não priorizem ou sejam tão sensíveis às mesmas referências estéticas dos clientes dos demais perfis (sobretudo o primeiro). Em uma comparação geral, é possível afirmar que o segundo perfil de estabelecimentos detém alto poder econômico para contratar especialistas que concebam seus espaços e produtos para

129 Juntamente com o Bar da Dona Onça, Sorveteria do Centro e a lanchonete Hot Pork, a Casa do Porco pertence

que eles sejam atrativos para um público mais diversificado, mas com alto poder aquisitivo. Por sua vez, o primeiro perfil de estabelecimentos não possui o mesmo capital financeiro do segundo, e é direcionado a um público (também com alto poder aquisitivo) que pertence a círculos sociais similares aos dos proprietários – logo, compartilham dos mesmos gostos e referenciais estéticos globais. Neste caso, os proprietários fazem uso de seus elevados capitais culturais e criativos e de suas habilidades para divulgação de seus negócios dentro de seus próprios círculos sociais (e de seus clientes) – garantindo, assim, a adequação de seus espaços e produtos aos gostos e expectativas dos consumidores, mesmo com um poder de investimento financeiro mais limitado. Já o terceiro perfil beneficia-se da propagação e da consolidação das ideias e referências produzidas pelos dois primeiros, reproduzindo e adaptando livremente estes códigos aos seus próprios contextos, sempre bastante diversos, e sem a pretensão ou necessidade de demonstrar um grande domínio das últimas novidades globais para garantir a adesão de seus clientes.