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2. CAPÍTULO 1: O BAIRRO, O CENTRO E O OLHAR PARA A CIDADE

2.5. Repertórios de fazer cidade

Todos esses exemplos de ações ativistas e de mobilização, somados à intensa circulação de notícias, registros, análises e relatos de outras experiências comparáveis, em nível local, nacional e internacional (seja pela mídia tradicional, por veículos alternativos que passaram a ganhar cada vez mais visibilidade na internet, ou por relatos individuais nas redes sociais), auxiliaram na produção e circulação de uma série de repertórios e referências – tanto das formas de articulação e manifestação (DI GIOVANNI, 2015), como também de formas de se olhar para a cidade, compreendê-la, debatê-la e reivindicá-la. Estes repertórios, somados a outros acontecimentos locais – como as diferenças de visão de cidade entre as mais recentes gestões municipais, as já relatadas disputas em torno de espaços urbanos centrais, o crescimento de eventos que assumem o espaço público como cenário – como o Festival Baixo Centro, o crescimento do Carnaval de rua em São Paulo e a concentração de turistas durante grandes eventos esportivos (FRÚGOLI JR., 2017) – e a consolidação destas novas manchas de lazer e sociabilidade jovem indicam um cenário em que o olhar para o urbano passa a ser pautado por que tipo de cidade pode ser desejada e reivindicada (e quais modos e estilos de vida correspondem a esta experiência urbana almejada). Raquel Rolnik, em um breve balanço comparativo entre a São Paulo do início dos anos 2000 e a São Paulo de meados dos anos 2010, comenta que houve

“uma década de intenso crescimento econômico, um enorme aumento na capacidade de consumo dos mais pobres, a agudização da crise da mobilidade e sua transformação em política pública prioritária. Mas também uma mudança importante na cultura urbana, com a emergência de uma nova relação dos cidadãos com os espaços públicos, na contramão das cidades dos enclaves” (ROLNIK, 2017, p.71).

Este aumento da sensibilidade às questões da cidade e maior atenção a novos modos de vida urbanos desejáveis passou, ao menos para uma rede cultural e social de jovens progressistas de classes elevadas, a amplificar uma postura mais crítica às dinâmicas estruturais do funcionamento da cidade. Como exemplo, é possível ressaltar questionamentos às políticas públicas de infraestrutura que privilegiam o automóvel em detrimento do transporte coletivo ou de modais de transporte ativo62, e aumento da desconfiança nas movimentações do mercado imobiliário, do capital especulativo, e das imbricações do Estado com interesses privados. Além disso, essa nova postura também fomenta novas formas de ativismo, articulação e

62 Definem-se como “transporte ativo” os modais de transporte propulsionados pelo corpo humano, sem o auxílio

reivindicação, cada vez menos vinculadas às pautas e formas de mobilização política dos movimentos sociais tradicionais e legendas partidárias.

“Como território, a cidade permanece como elemento central no qual emerge uma construção identitária que vai do individual-grupal ao global. Os jovens desenvolvem uma relação muito particular com as cidades; deixam suas marcas, exercitam suas sensibilidades, ocupam as ruas e esquinas” (OLIVEIRA, 2014, p.4).

Heitor Frúgoli Jr. complementa:

“a dimensão eminentemente espacial de várias intervenções promovidas por tais coletivos implica pensar numa relação incontornável dos agentes entre si e deles com o espaço urbano (espaços públicos e equipamentos urbanos), ou seja, recorrer à ideia consolidada pela antropologia urbana de que a cidade não é um pano de fundo ou local neutro onde se dão tais ações, mas um contexto dinâmico com o qual os agentes efetivamente dialogam” (FRÚGOLI JR., 2018, p. 76).

Esta construção identitária e esta relação desenvolvida com as cidades reverberam para além dos contextos de manifestações ou de dissenso político: elas também pautam uma série de modos de vida que se manifestam na vida cotidiana, numa produção contínua da cidade, por meio de uma infinidade de “maneiras de fazer” que “constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (CERTEAU, 2008, p.41)63. Emerge, desse modo, uma série de preferências de uma parcela das camadas médias pautadas por escolhas tais como: viver no Centro e fruir de sua diversidade, caminhar a pé ou andar de bicicleta, usar transporte público e abrir mão de possuir um carro, morar próximo ao trabalho e aos seus principais locais de interesse, valorizar o comércio local e a produção em pequena escala, consumir alimentos orgânicos e artesanais, usufruir intensamente das áreas verdes, equipamentos e manifestações culturais e espaços de lazer abundantes no entorno, participar de (novas) articulações da esfera civil em defesa de uma manutenção ou de melhoramentos de determinadas características do bairro ou da cidade.

Estes agrupamentos, pautados por inúmeras experiências no espaço público como as aqui relatadas, por vivências no exterior (seja por meio de rápidas viagens ou de experiências mais longas), ou ainda pela difusão na internet e nas plataformas de redes sociais de referências de modos de vida urbanos desejáveis, podem ser assemelhados ao que Gilberto Velho define como mediadores na constituição de um ambiente cosmopolita:

63Aqui, é possível estabelecer um diálogo com a ideia de fazer-cidade proposta por Michel Agier, marcada por

práticas que revelam “uma certa universalidade da cidade, no sentido de que deixam entrever inícios, gêneses, processos e lógicas da cidade cujo final não conhecemos” (AGIER; AGIER, 2015, p. 494) – e para quem a cidade é vista “não como uma abstração, mas como uma imanência, uma construção em curso e em movimento” (Idem, p. 492).

“O mediador, mesmo não sendo um autor no sentido convencional, é um intérprete e um reinventor da cultura. É um agente de mudança quando, através de seu cosmopolitismo objetivo e/ou subjetivo, traz, para o bem ou para o mal, informações e transmite novos costumes, hábitos, bens e aspirações. (…) Nas suas diversas vertentes pode associar-se a estilos de vida que demarquem fronteiras de status, mas pode ser também um difusor de informações e de ideias que contribuam para formas de intercâmbio mais democratizantes, estabelecendo novas pontes entre distintos níveis de cultura. (VELHO, 2010, p. 21)

É dessas “fronteiras de status”, entretanto, que emergem alguns dos conflitos nas discussões acerca dos devires da cidade, suas prioridades e suas urgências. Contrastados com problemas estruturais da cidade, tais como déficit habitacional, precariedade da infraestrutura e a enorme desigualdade social, as demandas e proposições destas camadas médias e superiores progressistas, normalmente vinculadas a gostos de classe específicos e a privilégios sociais e econômicos, ora podem ser classificadas, num debate mais amplo, como ingênuas ou limitadas por visões de classe, ora podem ser associadas a processos de intensificação destes problemas estruturais (como, por exemplo, servir como vetores de processos de especulação imobiliária e

gentrification – conceito a ser debatido com mais profundidade no Capítulo 2).

Entretanto, as pessoas pertencentes a estas camadas médias urbanas também costumam ser detentoras de um alto capital cultural, e possuem concentração de renda e poder de influência suficientes para projetar no debate público suas preferências e interesses, com mais visibilidade, alcance e com mais chances de efetividade do que as pautas e reivindicações de outros grupos sociais64. Assim, é importante compreender que estes agrupamentos jovens e cosmopolitas, engajados com questões da cidade e interessados em produzir e participar de uma ambiência urbana mais inclusiva e plural, também podem agir cotidianamente conforme um

habitus (BOURDIEU, 1977) proveniente de grupos e trajetórias sociais distintas, que não

necessariamente compartilhem das mesmas visões e interesses acerca da cidade. Nas palavras de Velho, o que está em jogo é uma “plasticidade sociocultural que se manifesta na capacidade de transitar e, em situações específicas, de desempenhar o papel de mediador entre distintos grupos e códigos” (VELHO, 2010, p. 19). Tal mediação, entretanto, sempre será parcial, por não haver um “efeito mágico que transforma os indivíduos, dissolvendo a sua socialização e anulando valores, crenças, preconceitos, gostos, anteriormente constituídos através de participação em sua cultura e meio de origem” (Idem).

64 Neste sentido, é possível estabelecer um paralelo com as observações de Bianca Chizzolini, cuja dissertação de

mestrado trata sobre relações entre associações de moradores da região central e as Ações Locais e Conselhos Comunitários de Segurança. Segundo a autora, embora haja uma pretensa noção de igualdade entre os participantes das reuniões dos Conselhos, as redes de relações em que cada interlocutor está inserido são determinantes do nível de escuta e de sucesso de suas reivindicações (CHIZZOLINI, 2013, p. 59).