• Nenhum resultado encontrado

4. CAPÍTULO 3: O QUE SIGNIFICA SER HIPSTER?

4.2. Um olhar sobre o cosmopolitismo

Conforme já argumentado na introdução deste trabalho, tanto o uso da categoria hipster como a adoção de modos de vida e hábitos de consumo a ela associadas são sincrônicas ao avanço da internet e das redes sociais digitais, e à rápida expansão da possibilidade de compartilhamento e difusão de informações em escala global, teoricamente por qualquer pessoa conectada à rede. Se, em teoria, poderia haver uma simetria entre informações produzidas e consumidas em qualquer lugar do mundo, na prática observa-se a manutenção da influência de modos de vida, de consumo e de comportamento das grandes cidades do Norte global sobre todo o mundo. Desta forma, a categoria hipster (nascida no contexto de desindustrialização das grandes cidades globais do Norte e ascensão da categoria de serviços) passa a ser uma palavra que viaja juntamente com as tendências político-econômicas que contribuem para a reconfiguração das grandes metrópoles ao redor do mundo, carregando consigo uma série de códigos e significados que também viajam e que, por sua vez, são traduzidos, apropriados e ressignificados em cada contexto local. A diferenciação proposta por Néstor García Canclini

108 A relação entre a categoria hipster e o mercado de trabalho será melhor aprofundada no Capítulo 4 desta

para os conceitos de internacionalização e globalização permitem uma interpretação significativa deste fenômeno:

“O que diferencia a internacionalização da globalização é que no tempo da internacionalização das culturas nacionais era possível não estar satisfeito com o que se possuía e procurá-lo em outro lugar. Mas a maioria das mensagens e dos bens que possuíamos era gerada na própria sociedade, e havia alfândegas estritas, leis que protegiam o que se produzia em cada país. Agora o que se produz no mundo todo está aqui e é difícil de saber o que é o próprio. A internacionalização foi uma abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade para incorporar bens materiais e simbólicos das outras. A globalização supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais dispersas, bens e serviços gerados por muitos centros, no qual é mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições geográficas a partir das quais se está agindo” (CANCLINI, 2010, p. 32).

A partir dessa proposição esquemática, é possível afirmar que, se a internacionalização facilitou a descoberta e o acesso a tudo aquilo que vem de fora e que não existe aqui (considerando que o tanto o fora quanto o aqui são mediados por limites e restrições espaciais, geográficas e políticas), no contexto da globalização a circulação de bens e informações é tão intensa que muitas vezes torna-se difícil até mesmo de se identificar o que seria o próprio e o que seriam importações ou traduções locais de ideias, informações e tendências estrangeiras. Evidentemente, isso não significa que estas fronteiras entre o que é e o que não é local tenham deixado de existir – até mesmo porque as condições de acesso ao que é produzido em todo o mundo sempre são desiguais, e requerem recursos e repertórios específicos para que possam ser acessados, identificados e, eventualmente, importados ou traduzidos para contextos locais. Porém, essa desigualdade permite lançar luz sobre quem são os agentes dotados de recursos (culturais, intelectuais, econômicos) para cumprir com este papel.

A partir de suas pesquisas no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, Gilberto Velho relata a existência de um segmento cosmopolita das camadas médias, pelo qual

“circulavam pessoas de várias partes do mundo, da área dos negócios, do entretenimento, do meio artístico-cultural, entre outros. Suas referências eram claramente internacionais. Viajar pelo mundo era atividade rotineira e participavam de redes sociais intercontinentais. Falavam, pelo menos, mais de uma língua, quando não três ou quatro, do mesmo modo que elites sociais da cosmopolita Palmira, nos séculos II e III, que, segundo Paul Veyne (2009), falavam grego, latim e aramaico” (VELHO, 2010, p. 18).

Velho ressalta o papel de mediadores que esses sujeitos cosmopolitas desempenham na sociedade urbana moderna: são dotados de uma “plasticidade sociocultural que se manifesta na capacidade de transitar e, em situações específicas, de desempenhar o papel de mediador entre distintos grupos e códigos (...), com potencial de desenvolver capacidade e/ou empatia de perceber e decifrar pontos de vista e perspectivas de categorias sociais, correntes culturais e de indivíduos específicos” (Idem, p. 19). Essa associação entre a mediação cosmopolita e um

determinado conjunto de habilidades ou de capacidades de se articular e traduzir códigos locais e estrangeiros também é apontada por Huon Wardle, que afirma que uma pessoa cosmopolita é capaz de desviar de regras e códigos locais habituais, criando brechas, justamente em função de técnicas ou capacidades específicas (WARDLE, 2010, p. 385). Essas “técnicas ou capacidades específicas” são uma importante chave para compreender o tipo de mediação cosmopolita associado à categoria hipster: para se operacionalizar uma mediação eficiente entre referências estrangeiras e hábitos locais, é importante que se tenha certa competência (EUGENIO, 2006, p. 35) ou habilidade. Aqui, a noção de habilidade aproxima-se da definição proposta por Tim Ingold, como “as capacidades e tecnologias utilizadas por sujeitos particulares para significar um corpus de conhecimento generalizado e objetivo, e que é passível de aplicação prática” (INGOLD, 2011, p. 315, livre tradução minha)109, e que são “tácitas, subjetivas, dependentes do contexto, um ‘saber como’ prático, tipicamente adquirido por meio da observação e da imitação – e não de instruções verbais e formais” (Idem, p. 316, tradução minha)110.

No contexto desta pesquisa, tais habilidades se manifestam na capacidade de observar (e aprender com) referências e modos de vida desejáveis em diversos lugares do mundo, distinguir aquilo que é de vanguarda daquilo que é massificado ou que não representa oportunidades para a produção das distinções desejadas e, mais importante, de executar com eficiência suas próprias criações e performances – de forma que os valores estéticos pretendidos sejam corretamente reconhecidos e validados por seus pares (e, no caso dos estabelecimentos comerciais, dos públicos consumidores a quem se destinam). Para que haja o acesso, a observação e o aprendizado a partir das referências escolhidas, é necessária uma intensa circulação destes sujeitos por diversos lugares (o que, por sua vez, também requer a habilidade de reconhecer em quais lugares as melhores referências podem ser encontradas): “Isso pode ser feito, hoje em dia, por meio de velozes viagens internacionais ou mesmo diante do computador, através de acesso potencial a um repertório quase ilimitado de dados, notícias, informações em geral” (VELHO, 2010, p. 20). Wardle complementa: “Cosmopolitismo, portanto, é compreendido como um estado subjetivo de abertura, tenta capturar uma situação ou momento de tensão em que qualidades desconhecidas ou não-reconhecidas, dados, categorias culturais,

109 Do original: “The capabilities of particular human subjects, and technology to mean a corpus of generalised,

objective knowledge, insofar as it is capable of practical application”.

110 Do original: “Tacit, subjective, context-dependent, practical ‘knowledge how’, typically acquired through

pessoas e fenômenos tornam-se realidade em uma estrutura subjetivamente revisada da interconectividade humana” (WARDLE, 2010, p. 385–386, tradução minha)111.

É importante ressaltar, no entanto, que para diversos autores o cosmopolitismo não está somente associado a camadas privilegiadas da sociedade. Em uma entrevista concedida a Pnina Werbner, Stuart Hall aponta dois tipos de cosmopolitismo:

“Há um ‘cosmopolitismo da camada de cima’ – empreendedores globais seguindo os caminhos do poder corporativo global e os circuitos de investimento e capitais globais, que não conseguem dizer em qual aeroporto estão porque todos eles parecem o mesmo, e que têm apartamentos em três continentes. Esse é um cosmopolitismo global de um tipo muito limitado, mas é muito diferente de um ‘cosmopolitismo da camada de baixo’ – pessoas levadas a cruzar fronteiras, obrigadas a se desenraizarem de suas casas, seus lugares e suas famílias, vivendo em campos transitórios ou se pendurando em paus-de-arara, em barcos furados ou no fundo de trens e aviões para chegar a algum outro lugar” (WERBNER; HALL, 2008, p. 346, tradução minha).112

Em sua argumentação, Hall defende que os “cosmopolitas da camada de baixo” não escolhem, mas são forçados a serem cosmopolitas e são obrigados a adquirirem as mesmas habilidades de adaptação e inovação requeridas de um empreendedor, mas partindo de um outro extremo – tendo de viver em um constante estado de tradução cotidiana. Assim, não vivem uma “vida global como recompensa por seu status, educação ou riqueza, mas uma vida global como uma das necessidades impostas pelas disjunções da globalização moderna” (Idem, p. 347, tradução minha)113. Em abordagem similar, Michel Agier ressalta, a partir de suas pesquisas com refugiados, que “uma condição cosmopolita se forma ao mesmo tempo em que a modernidade se transforma em um regime mundial, híbrido, ainda nascente” (AGIER, 2013, p. 7, tradução minha)114, e resulta em “lugares incertos, tempos incertos, com identidades incertas, ambíguas, incompletas, opcionais, em situações indeterminadas, situações intermediárias e

111 Do original: “Cosmopolitanism, then, understood as a subjective state of openness, attempts to capture a

situation or moment of tension in which unrecognised or unknown qualities, data, cultural categories, people and phenomena acquire reality in a subjectively revised framework of human interconnectedness.”

112 Do original: “There is a ‘cosmopolitanism of the above’ – global entrepreneurs following the pathways of global

corporate power and the circuits of global investment and capital, who can’t tell which airport they’re in, because they all look the same, and who have apartments in three continents. This is global cosmopolitanism of a very limited kind but it is very different from ‘cosmopolitanism from below’ – people driven across borders, obliged to uproot themselves from home, place and family, living in transit camps or climbing on to the backs of lorries or leaky boats or the bottom of trains and airplanes, to get to somewhere else.”

113 Do original: “Global life as a reward for status, education or wealth, but the global life as one of the necessities

imposed by the disjunctures of modern globalization”.

114 Do original: “Une condition cosmopolite se forme en même temps que la modernité se transforme en un régime

relações incertas” (Idem, p. 7, tradução minha115) – mas que, ainda assim, a terminologia está associada a um conjunto de práticas e modos de vida que estão ligadas a “encontros e experiências que põem em relação um aqui e um acolá, um próprio e um outro, um fato ‘local’ com um contexto ‘global’” (Idem, p.7, tradução minha)116.

Evidentemente, o tipo de mediação operacionalizada pelos agentes que promovem o fenômeno de “hipsterização” de determinados bairros em uma grande metrópole assemelha-se mais aos cosmopolitas das camadas de cima do que das camadas de baixo. Entretanto, não têm exatamente as mesmas condições de livre circulação dos jetsetters descritos por Hall. Seus recursos econômicos são muito mais limitados, suas motivações para o trânsito entre diferentes contextos urbanos ao redor do mundo são mais diversas, e o alcance das “traduções” ou “importações” (de referências, preferências estéticas, estilos de vida e modos de consumo) que eles realizam é bastante pequeno. Isso significa que muitos dos valores, ideias e referências que esses cosmopolitas das camadas médias trazem consigo, quando não se refletem apenas em suas escolhas privadas e em seus estilos de vida individuais, acabam por serem reconhecidos e validados somente pelo reduzido universo de pessoas que também compartilham dos mesmos gostos e interesses associados ao universo hipster.

Um exemplo disso é a fala de Bruno Bertoli, proprietário do bar de vinhos naturais Beverino (localizado na Rua General Jardim, próximo à Rua Dona Veridiana), inaugurado em 2018. Em uma breve conversa, ele me contou que havia morado vários anos na Itália, onde trabalhou em vinícolas e aprendeu sobre vinhos naturais e biodinâmicos – que, segundo ele, diferenciam-se dos vinhos produzidos pela indústria convencional por não utilizarem produtos químicos ou conservantes em sua fabricação, resultando em produtos de altíssima qualidade e produzidos em menor escala. Ao retornar ao Brasil, Bruno escolheu a Santa Cecília como seu bairro de moradia, e articulou-se para abrir na Vila Buarque o bar que, além dos vinhos naturais, também serve produtos de charcutaria artesanal e queijos de pequenos produtores. Durante o relato, afirmou que seu interesse era o de estimular uma cultura diferente de consumo de vinho na cidade, em que as pessoas pudessem chegar no final da tarde e consumir uma taça em um bar (e não somente em jantares, refeições mais formais ou ocasiões especiais) – fazendo, assim, com que seu produto passasse a competir em contextos onde normalmente a cerveja é a bebida predominante. Para isso, Bruno afirmou ter contado com a ajuda de outros comerciantes da 115 Do original: “Les lieux incertains, les temps incertains, les identités incertaines, ambiguës, incomplètes,

optionelles, les situations indéterminées, les situations d’entre-deux, les relations incertaines”.

116 Do original: “Des racontres et des experiences qui mettent en relation in ici et un alleurs, un même et un autre,

cena local para estabelecer seu ponto (como os proprietários do Takkø Café, por exemplo). Este exemplo ilustra o caráter mediador entre experiências de fora (vivência na Itália, aprendizado sobre novos tipos de vinhos), a tradução destas experiências na proposição de novas práticas de consumo contrastantes com hábitos locais (como a preferência pela cerveja em momentos mais informais enquanto o vinho é destinado a momentos específicos de consumo). Esta tradução é sempre mediada por uma percepção de que algo que existe fora é algo que falta aqui, e que se manifesta não apenas em uma oportunidade de negócio, mas também em uma possibilidade de expressão pessoal de Bruno e de sua trajetória diante de seus pares e clientes – que não se confundem com os frequentadores de toda a diversidade dos demais bares do bairro e da cidade.