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5. CAPÍTULO 4: TRABALHO E IDENTIDADES

5.3. Trabalho e precarização

Todos esses exemplos de imbricamento entre identidades hipsters, diferentes noções de empreendedorismo e formas de inserção no mercado de trabalho apontam para um fenômeno contemporâneo que não se restringe, evidentemente, apenas a territorialidades específicas (como a Vila Buarque), que são os impactos do neoliberalismo sobre as relações de trabalho

por todo o mundo. Embora haja linhas de pesquisa que investigam as diversas formas como a precarização do mercado de trabalho e a redução de oportunidades afetam diretamente as camadas mais vulneráveis da população em todo o mundo, os estudos que evidenciam essas reverberações perante as camadas médias são menos abundantes. Em uma coletânea de investigações sobre jovens, culturas urbanas e redes digitais coordenada por Néstor García Canclini, Francisco Cruces e Maritza Urteaga Castro Pozo (2012), relatos de pesquisas etnográficas realizadas na Cidade do México reforçam as já mencionadas mudanças na estrutura do mercado de trabalho, além das alternativas buscadas por jovens para conciliar a realização de atividades criativas com uma remuneração que lhes permita a subsistência:

“No final do século passado no México, como em outros países, ainda se diferenciava a estabilidade dos empregos estatais e a insegurança dos privados. Hoje ouvimos relatos de jovens que combinam suas atividades empreendedoras – como artistas, curadores ou editores – com trabalhos em organismos públicos, e encontram, em ambos os terrenos, semelhante vulnerabilidade” (CANCLINI; CRUCES; POZO, 2012, p. 14, tradução minha)145”.

Neste contexto específico, o principal impacto do neoliberalismo sobre o mercado de trabalho voltado a profissionais vinculados a áreas profissionais criativas (ou pertencentes à

creative class descrita por Florida) reside na gradual redução dos recursos públicos destinados

à área de cultura – o que se refletiu em uma crescente precarização das condições de trabalho em instituições estatais (como os inúmeros museus existentes na capital mexicana). Com a redução do número de vagas e contratações, bem como dos salários, além da supressão de direitos e benefícios trabalhistas, carreiras antes consideradas estáveis passaram a exigir dos profissionais a elas vinculados que diversificassem suas atividades profissionais para a composição total de suas rendas, e que viessem a trabalhar não apenas em função de carreiras ou empregos (compreendidos aqui como de longo prazo), mas também de projetos de curta duração. Um aspecto importante a ser ressaltado é que essas táticas que combinam diferentes atividades de curta duração interferem não apenas na estabilidade dos empregos, mas também na continuidade da formação profissional destes jovens profissionais, cada vez menos atrelados a carreiras que permitam um aprimoramento crescente e gradual ao longo do tempo. Como alternativa, o processo de empreender em projetos próprios acaba por representar não apenas a busca por alternativas de renda, mas também na experimentação de inovações que

145 Do original: “A fines del siglo pasado en México, como en otros países, aún se diferenciaba entre la estabilidad

de los empleos estatales y la inseguridad de los privados. Ahora escuchamos relatos de jóvenes que combinan su actividad emprendedora – como artistas, curadores o editores – con trabajos en organismos públicos y encuentran en ambos terrenos semejante vulnerabilidad.”

“abrem perguntas estimulantes sobre como se pode ser criativo hoje, inteirar-se do que acontece, conhecer mais sobre uma interpretação dos processos e compartilhar isso com os outros. Ver estas iniciativas múltiplas e polivalentes apenas como resistência, vê-las unicamente em chave política e, portanto, exigir que preencham o vazio deixado pela inaptidão dos partidos políticos ou pela escassa imaginação social dos empresários é excluir do horizonte significados menos convencionais e menos unidirecionais destas variações da paisagem. Mais que substituir um sistema por outro, os empreendimentos despontam como complementação de aprendizados múltiplos, relações de amizade junto à colaboração com grandes instituições, colaborações e competência, autoemprego e inserção imaginativa em redes preexistentes” (Idem, p. 19, tradução minha)146.

Um autor com uma importante leitura sobre as tensões entre liberdade criativa e necessidade econômica, trabalho precário e empreendedorismo é Michael Scott. Em um artigo sobre empreendedorismo hipster (SCOTT, 2017), afirma que

“a publicidade, a arquitetura, as artes, softwares de computadores, filmes, música e as novas mídias digitais são os arquétipos exaltados desta nova economia cultural. Entretanto, coexistindo com este setor fluido está uma extensa periferia de produtores culturais independentes a criar microempresas a partir de pequenos investimentos de capital, e que provêm os bens e serviços de estilo, gosto e bem-viver a habitantes urbanos” (Idem, p. 61, tradução minha)147.

Segundo Scott, essas microempresas culturais e produtos “neo-artesanais” representam mudanças culturais intermediárias da posição de empregados para a de trabalhadores autônomos. Ao referir-se aos hipsters como o “tipo ideal de pessoa descolada”, o autor sugere que estes agentes

“não são apenas consumidores ‘descolados’ ou figuras da contracultura. Postos contra a parede dos mercados de trabalho neoliberalizados e do avanço de políticas de austeridade do Estado, os hipsters também professam interesses em empreendedorismo e na conversão do cool em comércio. Aqui, o hipster migra do mundo do consumo para a esfera da produção” (Idem, p. 62, tradução minha)148.

146 Do original: “Abren preguntas estimulantes acerca de cómo se puede ser hoy creativo, enterarse de lo que pasa,

conocer más de una interpretación de los procesos y compartir todo esto con otros. Ver estas iniciativas múltiples y polivalentes sólo como resistencia, verlas únicamente en clave política y por tanto encomendarles que llenen el vacío dejado por la ineptitud de los partidos políticos o la escasa imaginación social de empresarios, es excluir del horizonte significados menos convencionales, menos unidireccionales, de estas variaciones del paisaje. Más que sustituir un sistema por otro, los emprendimientos se despliegan como complementación de aprendizajes múltiples, relaciones de amistad junto a colaboración con grandes instituciones, colaboraciones y competencia, autoempleo e inserción imaginative en redes preexistentes.”

147 Do original: “Advertising and architecture, the arts, computer software, film, music and new digital media are

the exalted archetypes of this new cultural economy. Yet, co-existing within this fluid sector is an extensive periphery of independent cultural producers creating micro-enterprises using small capital investments, and which provision the goods and services of style, taste, and living well to urban dwellers.”

148 Do original: “These actors are not just ‘cool’ consumers or counter-cultural figures. Set against the backdrop

of neoliberalised labour markets and ongoing state austerity policies, hipsters also profess interests in entrepreneurship and the conversion of cool into commerce. Here the hipster shifts from the world of consumption to the sphere of production.”

Neste cenário, a figura do “descolado” não se restringe somente aos bens de consumo e aos espaços onde estes são oferecidos: estende-se também ao trabalho cultural, onde empregos

cool “tornam o trabalho divertido e o fluxo de dinheiro mais fácil, ajudado pela ausência de

hierarquias organizacionais ‘quadradas’. Ao invés de se rebelarem contra o capitalismo e a necessidade material, nada é mais cool do que converter o moderno em comércio” (Idem, p. 63, tradução minha)149. Em diálogo com Bourdieu (2011), o autor afirma que estes agentes responsáveis pela criação de trabalhos autônomos voltados a nichos culturais costumam emergir de posições subordinadas dentro do espaço cultural, munidos de poucos recursos econômicos, mas de um capital cultural ainda a ser consagrado – embora ocupem uma posição que oferece flexibilidade para empreender em estratégias que julgam estar mais alinhadas tanto com seus gostos e capitais culturais, como com suas trajetórias sociais desejadas e em processo de construção (SCOTT, 2017, p. 66).